Blog do Flavio Gomes
F-1

GUIA DO MOCHILEIRO DA F-1

SÃO PAULO (feito) – Nunca fui muito de fazer guia de coisa nenhuma, porque tudo que não quero é gente fazendo o que eu faço e indo onde eu vou para depois achar que fez o que não devia e foi onde não valia a pena. (Este foi um dos piores parágrafos que escrevi na […]

mochileiro2SÃO PAULO (feito) – Nunca fui muito de fazer guia de coisa nenhuma, porque tudo que não quero é gente fazendo o que eu faço e indo onde eu vou para depois achar que fez o que não devia e foi onde não valia a pena.

(Este foi um dos piores parágrafos que escrevi na vida.)

Mas a Fórmula 1 de 2014 está meio confusa para muita gente, que não entende por que, por exemplo, os carros estão feios e lentos, comparados com os do ano passado — que eram igualmente feios, mas mais rápidos. E eu tinha prometido, então vou cumprir.

Nunca a categoria passou por uma mudança tão radical de regulamento. Porque não se trata apenas de uma redução de cilindrada e do número de cilindros nos motores, acrescida da adoção de turbo no lugar dos motores mais convencionais, aspirados.

Tem mais, muito mais. Falar em motor, apenas, não vai fazer muito sentido, agora. Os carros terão “Unidades de Força”, que não vou escrever nunca mais assim, entre aspas e com maiúsculas. Serão unidades de força. Um horror, mas é assim. Genericamente, de vez em quando, falaremos apenas em “motor” neste ano. Mas que todos vocês saibam que isso será uma simplificação de algo bem mais incompreensível e modernoso.

Essas unidades de força são complicadas e sofisticadas, exigem muita refrigeração de todos os sistemas, dezenas de caixinhas eletrônicas, e além disso haverá limite de uso de combustível, diminuição de asas e otras cositas más. Assim, o que segue é uma espécie de guia para que vocês tentem entender a bagaça toda. Serei o mais didático possível e vou separar tudo em itens.

E se não entenderem, azar.

MOTORES
Esqueçam aquela coisa antiga de um motor aspirado a explosão, igual aos primeiros inventados no século XIX — eram muito parecidos com os de hoje, no seu princípio de funcionamento.

Os carros de F-1 neste ano terão unidades de força. Em inglês, a turma está usando a expressão “power unit”.

Foram aposentados os aspirados V8 de 2,4 litros de cilindrada, 750 hp e limitados a 18 mil rpm. Essa configuração vinha sendo usada desde 2006.

As novas unidades de força são compostas por três motores diferentes. Um deles, o principal, é um V6 turbo de 1,6 litro de cilindrada com giros limitados a 15 mil rpm. Motor normal, a explosão, quatro tempos, tudo direitinho. Mas turbinado. Só para lembrar, os turbos foram banidos da F-1 no final da temporada de 1988. Os turbos que serão usados neste ano vão girar a 125 mil rpm. E os motores vão funcionar integrados a um negócio chamado ERS, Energy Recovery System, ou sistema de recuperação de energia. Uma evolução do KERS.

São motores com mais torque, o que significa que o desgaste dos pneus traseiros será mais acentuado neste ano. Serão permitidos cinco motores por piloto para toda a temporada. Quem passar disso vai perder posições no grid.

O TAL DO ERS
Os motores V6 turbo trabalharão, como já informado, de maneira integrada ao sistema de recuperação de energia, doravante denominado apenas “ERS”. Este sistema é composto por dois outros motores: o MGU-K e o MGU-H.

O primeiro é a sigla para “motor generator unit-kinetic”, montado diretamente no motor principal. É o velho KERS, que acumula a energia desperdiçada nas frenagens. Essa energia se dissipa em forma de calor, e também acaba sendo desperdiçada de outra forma porque a rotação do motor, quando o carro está brecando, não é transformada em potência, não leva o carro para a frente (ele está parando, não se esqueçam). Um desperdício dos infernos.

Para entender melhor: quando um carro está parado no farol (semáforo, sinal, sinaleira), em marcha-lenta, há desperdício de energia. Afinal, os pistões e bielas continuam virando, há queima de combustível, mas a potência gerada vai para o espaço sideral porque o automóvel está desengatado, não há transferência para os eixos que o movem. Entenderam? Em outras palavras, carro com motor ligado desperdiça energia, o que a gente chama de maneira chula de “gasta gasolina à toa”. Pronto. E carro brecando também gera um desperdício de energia, porque aquilo que o motor está tentando fazer, fazer o carro andar para a frente, acaba entrando em confronto aberto com o sistema que faz com que ele freie. Um empurra, o outro segura. É mais ou menos isso. Nesse empurra-segura, há desperdício de energia. Essa energia, cinética, é acumulada em baterias e jogada no nosso querido MGU-K, que a um comando singelo despeja mais energia no motorzão V6 turbo.

Deu para entender, ou entenderam sem dar?

O MGU-H, que na prática é o terceiro motor dessas unidades de força compostas também pelo turbão V6 e pelo MGU-K, significa “motor generator unit-heat”. É um gerador de energia que pesca o calor produzido pela turbina do turbo (ah, o didatismo) e, da mesma forma que o nosso querido “K”, encaminha essa energia a uma bateria. Mais energia acumulada, pois. Essa salada toda de energia acumulada em baterias vai gerar 160 hp extras, que poderão ser usados durante 33s33 a cada volta, o dobro do que o KERS gerava para uso durante apenas 6s7 por volta no ano passado. Sem o KERS, neguinho perdia alguns décimos de segundo por volta, mas dava para se virar. Se o ERS não funcionar direito, os engenheiros calculam que o piloto pode perder mais de 2s por volta neste ano, o que será um desastre completo. Ou seja: ou esse negócio funciona direito, ou o piloto está fodido e mal pago. Simples assim.

Ao contrário do KERS, o ERS não vai carregar plenamente as baterias apenas com as freadas de uma volta. O piloto vai ter de administrar essa carga para poder usá-la adequadamente, para ultrapassar alguém ou se defender de outrem. Gestores de energia, é o que serão os pilotos e seus engenheiros nos boxes.

OS FREIOS
Tem uma novidade neste ano nos freios, chamados de “brake-by-wire”. Sim, eles serão eletrônicos nas rodas traseiras. Tudo para otimizar não os fluxos de ar, mas sim o acúmulo de energia do ERS. O sistema vai “ler” a pressão que o piloto coloca no pedal e a partir das informações disponíveis sobre a energia disponível no ERS vai determinar a pressão ideal que deverá ser aplicada nas pinças de freio, de modo que o carro breque como o piloto quer, mas otimize o acúmulo de energia necessária para recarregar as baterias.

É complicado e eu diria que inseguro, até. Por isso que os pilotos têm comentado que é estranho administrar os freios eletrônicos, que vão precisar aprender a lidar com eles, esses esquisitos. Suponho que às vezes eles possam ser surpreendidos por uma “leitura” equivocada dessa pressão no pedal. E o carro pode frear menos do que o desejado. Ou mais. Porque os sensores do ERS vão determinar quanto de energia gerada pelos freios precisam para trabalhar de maneira ótima e plena.

COMBUSTÍVEL
Os carros de 2014 serão mais econômicos. O fluxo máximo de combustível (ou consumo, se preferirem) foi determinado pela FIA em 100 kg de gasolina por hora — a gente está acostumado a falar em km por litro para falar em consumo, mas acho que dá para entender; na F-1, é kg/hora. Os tanques vão levar no máximo 100 kg de combustível — no ano passado, podiam carregar até 160 kg de gasosa. E as corridas duram mais de uma hora, como se sabe. Ou seja: neguinho vai ter de dosar o pé e administrar o consumo. Se o cara fizer a prova toda gastando a média de 100 kg/h, o máximo de fluxo de combustível permitido, quando der uma hora de corrida a gasolina vai acabar. Sacaram a conta? Ótimo.

TESTES
Além dos quatro dias de Jerez, outras sessões de pré, inter e pós-temporada foram definidas pela FIA, porque esses carros vão precisar de mais desenvolvimento e se algo errado acontecer no início do ano, dá para arrumar com treinos depois que começar o Mundial. Teremos mais duas sessões de quatro dias no Bahrein antes da primeira corrida (marcada para 16 de março em Melbourne) e, depois, quatro sessões de dois dias cada após GPs: 8 e 9 de abril no Bahrein, 13 e 14 de maio em Barcelona, 8 e 9 de julho em Silverstone e 25 e 26 de novembro em Abu Dhabi (esta última, após o encerramento do campeonato).

CHASSI
Todo mundo está achando engraçados os bicos dos carros, batizados de todas as formas possíveis: tamanduá, aspirador, beija-flor, rodo, Lula Molusco etc. Para não falar nos apelidos eróticos. Eles têm a ver com segurança. Mas outras mudanças aerodinâmicas foram definidas. As asas dianteiras perderam 15 cm na largura, de 180 cm para 165 cm. Isso para evitar que quando um carro esbarra no outro, o bico quebre ou um pneu seja rasgado.

Na asa traseira, foi eliminado o elemento inferior, aquele que ficava na altura da lanterna (sim, carro de F-1 tem lanterna). E a largura da “caixa” que abarca o flap principal foi reduzida de 22 cm para 20 cm. Na prática, os carros passam a ter uma configuração aerodinâmica básica parecida com a que se usava normalmente numa pista veloz como Spa. Isso vai reduzir a velocidade de contorno nas curvas. Os tempos de volta devem subir. A asa-móvel, em compensação, abria 5 cm ano passado; neste, a abertura será de 6,5 cm. Mais velocidade em reta, pois.

Os bicos ficaram estranhos porque neste ano a ponta deles deve ficar a no máximo 18,5 cm do plano do solo. Ano passado, podiam ficar a 55 cm de altura. A FIA fez isso para evitar decolagens na traseira alheia e, também, para reduzir os riscos nas batidas em “T” — quando um carro entra na perpendicular na lateral de outro; com a altura anterior dos bicos, eles podiam varar o cockpit do infeliz atingido, um perigo bastante claro.

O peso mínimo dos carros passou de 642 para 691 kg, incluindo o piloto. Só para constar, o peso mínimo das unidades de força é de 145 kg. Ou seja: os três motores representam 21% do peso total do carro.

ESCAPAMENTO
Os espertinhos dos engenheiros, nos últimos anos, passaram a usar os gases emitidos pelos escapamentos com função aerodinâmica, dirigindo os fluxos diretamente para as asas traseiras. Eram os “difusores soprados”. A FIA acabou com a moleza. Agora, a saída dos gases é única, no centro do carro, em altura determinada pelo regulamento — ligeiramente acima da lanterna. E como arrancaram o elemento inferior da asa, esses gases deixam o carro e se dispersam no éter, sem influenciar em nada a aerodinâmica.

CÂMBIO
Ah, antigamente o piloto sentava a bunda no carro e depois de algumas voltas sugeria as relações de marcha ideais para cada pista. Claro que há anos essa escolha das relações é eletrônica e determinada pelos engenheiros: aqui vale uma terceira mais longa, ali seria bom uma quarta mais curta, e por aí vai. Ou ia. Porque neste ano, cada equipe tem de eleger uma única relação de marchas que vai ser usada na temporada inteira. Ou seja: o câmbio de Mônaco será o mesmo de Monza, embora os circuitos sejam completamente diferentes. Como é a primeira vez que isso será feito, a FIA vai dar a chance às equipes de reeleger sua relação de marchas uma única vez durante o campeonato. E cada câmbio tem de durar seis corridas. Ah, e faltou dizer que serão oito marchas. Sempre e para todos.

PONTOS NA CARTEIRA
A FIA estabeleceu um sistema de pontuação para pilotos mal-comportados. As penas serão de um a três pontos. Se o sujeito acumular 12, será suspenso da corrida seguinte. E os pontos vão ficar marcados na superlicença durante 12 meses.

PONTOS NO CAMPEONATO
Acho que todos já sabem que a pontuação do último GP, em Abu Dhabi, será dobrada. O vencedor leva 50. Só para constar.

NÚMEROS
Depois de não sei quantos séculos, o sistema de numeração dos carros foi relaxado. Cada piloto escolhe o seu. Massa será o 19. Bottas, 77. Maldonado, 13. Vettel, 1. Raikkonen, 7. Herbie, 53. Meianov, 69. Não decorei todos, mas oportunamente publico aqui a lista toda, que é fácil de encontrar por aí.

2015
O peso mínimo vai passar para 701 kg. Os cobertores térmicos para aquecer pneus serão proibidos.

Entenderam tudo? Me deu um trabalho desgraçado escrever. Se não entenderam, voltem para a escola.