Blog do Flavio Gomes
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LONG WAY HOME (2)

SÃO PAULO (ah, a vida…) – Tudo começou com este despretensioso post de 30 de dezembro, quando a gente não tem nada para escrever e escreve qualquer coisa — ninguém vai ler blog no último dia útil do ano: alguém me mandou um link com fotos de Twingo e lembrei do meu, que comprei no distante, […]

SÃO PAULO (ah, a vida…) – Tudo começou com este despretensioso post de 30 de dezembro, quando a gente não tem nada para escrever e escreve qualquer coisa — ninguém vai ler blog no último dia útil do ano: alguém me mandou um link com fotos de Twingo e lembrei do meu, que comprei no distante, mui distante, ano de 1994.

Vinte anos atrás. Duas décadas.

No post, dei a placa do meu, que lembrava de cabeça. Três dias depois, um blogueiro me mandou um e-mail. “Trabalho em tal lugar e tenho acesso a alguns dados de carros. Achei o seu Clio”, me escreveu o blogueiro que vamos chamar de “Dolglas” (inventei agora, ninguém se chama “Dolglas”), porque não sei se pode levantar dado de carro por aí apenas pela placa.

Pois “Dolglas” me mandou a ficha completa do carro, não sem antes levar uma dura: “Não era Clio, era Twingo!”. Tinha tudo lá, inclusive o nome e o endereço da proprietária. O carrinho, meu Twingo, ainda existia. E estava em São Paulo.

Isso foi no dia 2 de janeiro. Comecei a procurar alguma forma de encontrar a dona. Hoje, o Facebook é o primeiro a ser consultado. Mas o nome dela era razoavelmente comum e vieram várias. Não tinha como sair perguntando a todas se elas tinham um Twingo. Achei melhor apelar para um estilo “old fashion”. Escrevi uma carta. Afinal, tinha um endereço. E, com ele, aproveitei para dar uma olhada naquele treco do Google que tem fotos de todas as ruas da Terra, de Vênus e de Marte. Achei a casa, vi uma garagem fechada. Bom sinal. Ele não dormia na rua, se ainda estivesse com essa proprietária.

Coloquei a carta no correio. Me apresentei, contei que tinha sido o primeiro dono do carrinho, disse que ele tinha um certo valor sentimental e, com todo respeito, falei que compraria de volta se ela quisesse vender.

No dia 20, recebi um e-mail. Simpaticíssimo, da dona do “Goiabinha”, como ela chama o Twingo. Não sei se ela quer ser identificada, então vou chamá-la apenas de “Sol”. Gosto de “Sol”. “Sol” me contou que comprou o carro em outubro de 1997 por 7.900 reais. Eu me lembro de tê-lo vendido por 7 mil mais ou menos em julho daquele ano. Ela era, portanto, a segunda dona do Twingo. E sim, o carro estava com ela e ela tinha interesse em vendê-lo.

Contou suas aventuras com o Twingo, que cerca de um ano e meio atrás foi atingido na traseira por um ciclista maluco que amassou a tampa do porta-malas e quebrou o vidro. Depois desse incidente, “Sol” encostou o “Goiabinha”. Estava sem grana e sem disposição para arrumá-lo mais uma vez — alguns anos antes, um tonto com um Citroën (claro…) bateu nele dentro de um posto de gasolina. Quando recebeu minha carta, estava prestes a tomar uma decisão drástica: mandar o coitadinho para um ferro-velho. Tinha desistido dele, depois de muitas idas e vindas. No e-mail, mandou o telefone. Liguei na hora.

“Sol” é uma querida, uma gatona falante e simpática, e parecia não acreditar no que estava acontecendo. “Esse carro parece ter vida própria. Toda vez que ia me desfazer dele, por alguma razão, ele fazia alguma coisa para ficar comigo. Não queria ir embora. Agora que eu ia vender para o ferro-velho apareceu você.” Perguntei quanto ela queria pelo Twingo. “Ele está com documentos atrasados, alguns débitos, e se você pagar tudo ele é seu. Eu te dou.” E olha que ele correu riscos gravíssimos. “Minha sobrinha chegou até a escrever para o Luciano Huck”, disse, e na hora fiquei arrepiado só de pensar nas merdas que aqueles caras seriam capazes de fazer com ele.

Hoje reencontrei meu Twingo. Tirando o vidro quebrado e a tampa do porta-malas amassado, está zerado. Interior inteiro, limpinho, conservado. Carro de mulher. Cuidado com carinho nesses 17 anos desde que eu o vendi.

Anos atrás, tinha cruzado com ele na avenida Ibirapuera. Eu num sentido, “Sol” no outro. Fiquei desesperado, tentei ir atrás. Não consegui, não tinha retorno, foi uma enorme frustração. Hoje tinha um endereço e um mapinha. Saí da TV, peguei a lambreta e cruzei a cidade até suas franjas. Fui recebido com um sorriso e um café. E muitas histórias. Quando “Sol” falou que ia pegar a chave para dar uma olhada no interior, eu disse que não precisava. Tirei a reserva, que guardei por 20 anos. “Não é possível que você tem a chave!”, ela disse. “É sim.” E abri a porta, e sentei naquele mesmo banco, e abri o mais largo sorriso que alguém que reencontra um amigo pode abrir.

“Sol” tem o manual do Twingo e as guias de IPVA preenchidas por mim quando não existia internet para pagar as coisas pelo computador. No manual, a data de entrega: 26 de abril de 1994. Terça-feira da semana do GP de San Marino. Quando meu Twingo foi entregue, eu não pude retirá-lo na CAOA da Ibirapuera. Estava a caminho do aeroporto para cobrir a corrida que mudou a vida de tanta gente, a minha inclusive. Depois de tudo que aconteceu em Imola, voltei já demitido pelo jornal via Madri. Numa quarta-feira de sol na Espanha, três dias depois da corrida, fui a uma revenda Renault e comprei acessórios originais para meu Twingo: vidros elétricos, caixinhas de som, um toca-fitas Grundig com botões verdes e até um porta-luvas emborrachado, na verdade uma pequena bolsa colorida que encaixava direitinho no porta-trecos diante do banco do carona. Pequenas bossas de um carro espertíssimo que já fazia muito sucesso na Europa.

Fui conhecer meu Twingo no aeroporto, quando minha mulher foi me buscar. Claro que depois de tudo que tinha acontecido em Imola, um carro novo deixara de ter importância. Nele entrei pela primeira vez sem nenhuma emoção especial. Com o passar do tempo, apenas, nos tornamos amigos. Sim, sou amigo dos meus carros.

Foram apenas três anos com ele. Hoje, quando o vi, fiquei emocionado e feliz. “Sol” também. Ela tinha jogado uma água no carrinho, que estava empoeirado. Ontem, quando combinamos o horário da visita, ela me disse: “Vou descer lá e dizer para ele que seu pai virá buscá-lo. Ele vai gostar”. Sim, a “Sol” também fala com seu “Goiabinha”. Faz todo sentido.

O Twingo está de pé, completamente de pé. Precisa de uma maçaneta interna nova, do controle do espelhinho do lado direito, de um vidro traseiro e uma tampa de porta-malas e de novas rodas. Uma lanterna traseira também. Uma boa lavagem, um polimento, pintura do para-choque (recuperar a textura original dessas peças plásticas é difícil, mas pintando de cinza fosco fica ótimo), uma revisão mecânica e pronto.

Vou quitar os débitos até o fim da semana e daqui a uns dez dias vou lá buscá-lo de vez. Prometi para “Sol” que em um ou dois meses estará pronto. Para que no dia 26 de abril, quando ele completar 20 anos, a gente possa comemorar dando umas bandas pela cidade.

Valeu, “Sol”. Valeu, “Goiabinha”. Bem-vindo de volta.