Meses antes, eram 250 mil na Praça da Sé. Na TV, disseram que a multidão comemorava o aniversário da cidade. Ora, ora, ora…
16 de abril, 1984. Eu morava na Vila Clementino, numa rua de nome esquisito, Loefgren. Estava na faculdade e estudava à noite. Naquela segunda-feira, porém, não haveria aula nenhuma. Saí de casa antes do almoço. Preguei um button branco na camiseta, vesti meus jeans mais surrados, um tênis velho e coloquei numa bolsa de couro cru, decorada com canetinha em verde e amarelo, meu RG e algum dinheiro. A bolsa ficou murcha e meio ridícula, então acrescentei alguma coisa para fazer volume. Uma barra de chocolate, um lenço de pano, e ela continuou murcha e ridícula. Subi a pé até a Domingos, peguei o metrô na Santa Cruz e, emocionado porque muita gente no trem estava indo para o mesmo lugar, rumei para o centro.
Dali a nove dias seria votada a emenda Dante de Oliveira, que pedia a volta das eleições diretas para presidente depois de 20 anos de ditadura. Era uma das últimas chances de pressionar o Congresso e de gritar aos milicos que a gente não queria mais aquilo.
Foi minha primeira manifestação, e fui sozinho.
Ao desembarcar na estação da Sé, segui a multidão e tive pela primeira vez a sensação de que vivia num país de verdade e que pertencia a uma nação. Havia um clima de festa e não me lembro de ter notado a presença ostensiva da polícia. Estávamos todos lá querendo a mesma coisa. Viva o povo brasileiro.
Caminhei até o Vale e fiquei perambulando meio sem direção, porque não conseguia me aproximar do Viaduto do Chá — de onde Osmar Santos comandaria, ao lado de políticos, artistas e jogadores de futebol o maior dos comícios. Ali na frente era coisa para profissional, sindicatos, partidos, militantes, operários, estudantes, todos já acostumados com a mecânica desse tipo de coisa. Eu era apenas um moleque magrinho de 19 anos, que estudava numa faculdade particular de classe média e cuja vida política se resumia à venda de sanduíches num evento no MIS para arrecadar fundos para as Diretas, alguns dias antes. Não vendi nenhum, não foi ninguém no evento e não sei direito como aqueles fundos seriam entregues para as Diretas. Comi alguns dos sanduíches que deveria vender, dei prejuízo às Diretas e isso foi tudo.
Acabei ficando bem longe, na altura do Buraco do Adhemar, quase debaixo do Viaduto Santa Ifigênia, sem enxergar direito, mas escutando tudo e sentindo aquele país todo pulsando à minha volta. Foi também a primeira vez que compreendi que alguém oferecia alguma esperança àquela gente toda, a nós: Lula. Quando sua voz rouca invadiu o Vale, depois de alguns discursos inflamados de um monte de gente, o povo entrou em êxtase. O mesmo êxtase que vi 18 anos depois, na avenida Paulista, quando o operário virou presidente.
As Diretas não passaram, como se sabe. Mas olho para essa foto e me vejo nesse milhão. Olho para trás, e tenho saudades de um tempo em que tínhamos algo para lutar. Olho para esse milhão de pessoas e vejo que conseguimos alguma coisa, afinal.