Blog do Flavio Gomes
Gomes

RIO

SÃO PAULO (era ontem, mas não tem problema) – Mãe, quando é que eu vou aprender a falar carioca? Existem frases marcantes que dizemos na vida, e essa foi uma delas. Lembro até onde estava, no Aterro do Flamengo, primeiros dias de Rio, muito provavelmente no Fusca branco de minha mãe, que tinha aprendido a […]

ricamar2

SÃO PAULO (era ontem, mas não tem problema) – Mãe, quando é que eu vou aprender a falar carioca?

Existem frases marcantes que dizemos na vida, e essa foi uma delas. Lembro até onde estava, no Aterro do Flamengo, primeiros dias de Rio, muito provavelmente no Fusca branco de minha mãe, que tinha aprendido a dirigir poucos anos antes para poder nos levar à escola no Campo Belo, Dona Chiquinha Rodrigues, onde fiz o primeiro ano.

Era um mundo bem novo e diferente, aquele. Do lado direito, a baía de Guanabara e o Pão de Açúcar. Do lado esquerdo, algo mais familiar: outros carros passando.

Claro que aos 7 anos eu não sabia nem que a baía era de Guanabara, nem o que era uma baía, muito menos Guanabara. O Pão de Açúcar me parecia algo excepcional, duas montanhas com alguma coisa subindo e descendo, pendurada entre elas.

Mudamos para o Rio porque meu pai foi transferido para lá e tenho poucas memórias sobre o choque de sair de uma casinha geminada nas franjas de São Paulo, onde moramos um ano, para cair naquela cidade que tinha mar, algo igualmente desconhecido e impressionante.

Mas lembro de ter perguntado à minha mãe quando iria aprender a falar carioca porque achava muito bonito o jeito que as crianças falavam comigo na escola, e eu não conseguia falar igual.

O primeiro dia no Colégio Rio de Janeiro em Ipanema foi razoavelmente traumatizante. A rua, se bem me lembro, era estreita e as pessoas paravam seus carros em cima da calçada. Fomos os três para a escola, eu, o mais novo e o mais velho. Na entrada, recebemos as instruções para a hora de ir embora, que não eram fáceis. No crachá de cada criança tinha uma bolinha pintada. Quem levava a bolinha azul ia de perua escolar. Os de bolinha verde podiam sair sozinhos do colégio. Eram os mais velhos, quase adultos, ou moravam muito perto. Bolinha vermelha, a nossa, proibia que se colocasse um pé na calçada — a mãe vinha buscar. E tinha a bolinha preta que, sinceramente, não lembro direito o que significava. Alunos proscritos, talvez, proibidos até de tomar lanche ou de olhar para fora do prédio.

Meu pavor durante toda aquela tarde foi com o mais novo. Ele tinha quatro anos, não iria entender nunca aquela história de bolinhas coloridas no crachá, iria se perder e nunca mais veríamos o moleque. Do alto da minha quase dezena de carnavais, tomei a decisão de, assim que tocasse o sinal, sair em disparada rumo à sua sala, que guardei mais ou menos onde era, para pegá-lo pela mão e levá-lo à fila das bolinhas vermelhas, caso contrário ele desapareceria para todo o sempre, engolido pelos seres que falavam de um jeito muito, mas muito diferente do meu.

Tive aula de inglês no primeiro dia. Yes, no, car, window. Não aprendi nada, estava apavorado demais diante da possibilidade iminente de perder um irmão, OK, eu tinha outro, mas era um irmão, e eu, como mais velho do que ele, tinha a obrigação de colocá-lo na fila das bolinhas vermelhas para que esperássemos em segurança pelo conforto do Fusca branco de minha mãe.

Acabou a aula, saí correndo para a sala do caçula, mas me perdi nos corredores desconhecidos e hostis, desesperei-me, e quando me dei conta do tamanho da encrenca estava sozinho, eu, minha lancheira, minha mochilinha e meu crachá com a bolinha vermelha. Desatei num choro compulsivo até ser resgatado por alguém, que ao ver a bolinha vermelha no crachá me levou à fila correspondente, onde já estavam, felizes e animados esperando pela mãe, o mais velho e o mais novo, que nunca soube dessa tentativa frustrada e desnecessária de resgate.

E foi assim um dos meus primeiros dias no Rio, mas no Rio a gente aprende tudo muito rápido, a fila das bolinhas nunca mais foi problema, mesmo quando por alguma razão a minha série foi transferida para a unidade da Gávea, cujo caminho, saindo de Copacabana, incluía o Corte do Cantagalo, a Lagoa, a AABB, o Flamengo, um supermercado que tinha o teto curvo e, finalmente, o Colégio Rio de Janeiro numa rua mais tranquila e arborizada, cujo pátio, lá no fundo, terminava em algo que creio fosse uma montanha.

Moramos três anos no Morro do Caracol, em Copacabana, onde joguei bola na rua de paralelepídos, subi e desci a escadaria do cinema Ricamar várias vezes para comprar Minister para meu pai, onde vi pela primeira vez uma criança fumando, o Serginho, onde comecei a jogar futebol de botão — eu mesmo comprava os enormes zagueiros de galalite e os dadinhos, porque carioca não joga botão com bolinha de feltro –, e era só descer a escadaria, cruzar a Nossa Senhora de Copacabana, andar uma ou duas quadras e estávamos no calçadão, onde estrangeiros atiravam seus maços de cigarro no chão que eu colecionava, onde a areia não terminava nunca até chegar no mar, onde se comia cachorro-quente Geneal com sua salsicha pálida, e onde se tomava mate e limão daquelas latas penduradas nos ombros dos homens na praia.

Foi no Rio que experimentei feijoada pela primeira vez, meu pai muito preciso nas explicações, aqui no Rio se come feijoada de quinta e domingo, em São Paulo é de quarta e sábado, dizia, enquanto viajávamos até São Conrado, talvez Barra, onde ficava um restaurante que tinha uma cumbuca de barro no luminoso, era programa solene comer aquela feijoada uma vez a cada dois ou três meses.

Foi no Rio que virei um esportista, fiz natação e judô na AABB, até quase morrer afogado ao tentar ir de uma margem à outra da piscina, tendo sido salvo pelo meu irmão mais velho, o que me fez desistir da carreira aquática. No judô, ao contrário, era um aluno aplicado e disciplinado, e quando terminava a aula, eu já faixa amarela com dois graus de esparadrapo, enquanto a mãe não chegava, corria para a parte de trás do clube, que dava para a Cruzada de São Sebastião, ou perto dela, onde a gente ficava espiando os pivetes, cheios de medo e excitação.

No Rio decorei meu primeiro samba-enredo, falava da Portela, do Pixinguinha em seu altar, pizindim, pizindim, pizindim, comi lagosta com manteiga derretida no Alcazar, me interessei por livros ao ler “Sequestro em Parada de Lucas” de Orígenes Lessa, devorei coleções das Edições de Ouro, fiz peneira no Flamengo de camiseta e calção brancos, meias rubro-negras e chanca com seis cravos pregados, marquei um gol de carrinho em cruzamento do meu irmão mais velho, que tinha uma canhota razoável, mas a desatenção do treinador fez com que aquela tivesse sido minha primeira e última experiência na Gávea, azar do Flamengo.

Íamos ao Maracanã todo domingo, tínhamos carteirinha para entrar de graça, curioso que trocaram as fotos da minha e do meu irmão mais novo, um dia o mais velho se perdeu perto da Estátua do Belini, mas como era safo o encontramos rapidinho. No Maraca vi Fischer, Doval, Zico, Ferreti, Geraldo, que morreu e foi uma tristeza na cidade, Marinho Chagas, Cao, Andrada, Moisés, Alfinete, Zanata, Roberto Dinamite, vi o América ser campeão da Taça Guanabara com o barbudo Luisinho no comando do ataque, Flecha, Edu e Gilson Nunes, vi a Lusa ganhar do Vasco com gol do Xaxá numa quarta à noite, ganhei meu primeiro rádio de pilhas, que tinha um foninho que era chamado de egoísta, escutava “O Globo no Ar” todas as noites na cama, até dormir, aprendi a ouvir Waldir Amaral, Jorge Cury, José Carlos Araújo, Mário Vianna, gol legal.

Meu Rio de Janeiro era uma cidade elétrica, parecia que tudo acontecia lá, uma vez roubaram a capanga do meu pai, que a deixou no banco da frente do carro com a janela aberta, acho que um Chevette, íamos à Sears comprar presentes de Natal, subíamos no Pão de Açúcar e no Corcovado o tempo todo, sempre que algum parente vinha nos visitar, de vez em quando apareciam na praia umas Kombis com estepe na frente e placa de outro país, e viajávamos muito, Petrópolis, aquele museu que tinha de colocar pantufa, Teresópolis, Serra dos Órgãos, Dedo de Deus. E quando vínhamos a São Paulo, paradas obrigatórias para tomar Ovomaltine gelado na estrada e para visitar o museu do Roberto Lee em Caçapava, quando saíamos à noite, meu pai abaixava o banco da Belina verde-maravilha cheia de decalques nos vidros e dormíamos os três na caminha montada no porta-malas, madrugada adentro pela Dutra.

Meu Rio de Janeiro tinha a Praça Nossa Senhora da Paz em Ipanema, onde fiz a Primeira Comunhão vestindo calça lilás boca-de-sino e camiseta branca de manga comprida e gola olímpica, um calor desgraçado, mas tudo bem. O padre era moderno e ficou até famoso, não lembro seu nome. Era bom aluno, mas as professoras viviam perguntando à minha mãe por que eu tinha uns cacoetes esquisitos, piscar o olho e mexer a cabeça, eu dizia que era o cabelo muito longo qua atrapalhava a vista, não tinha nada demais, estava tudo bem, mas não foram anos propriamente fáceis na escola, eu falava diferente dos outros e um dia esqueci o refresco em casa, a lancheira tinha só um sanduíche, e um moleque veio rir de mim no bebedouro dizendo que eu comia pão e água, enfiei a mão na cara dele e ganhei o respeito da escola, até o Otto, duas vezes meu tamanho e um quinto da inteligência, passou a falar comigo e pedir ajuda para fazer as provas, um dia até chorou, eu estudo, estudo, e não consigo aprender nada, fiquei com muita pena dele e lhe passei cola numa prova de matemática na quarta série, de raiz quadrada e porcentagem. Minha mãe perguntou se eu tinha cacoete por causa disso, dos moleques que me perturbavam porque comia pão e água, neguei, foi só uma vez, não tem nada a ver com isso, e aí veio a Feira de Ciências, fiz uma salina usando uma caixa de isopor com divisões para encaixar alguma coisa, pintei de azul o fundo desses nichos para obter um efeito cromático que lembrasse o mar, enchi de água e sal, espetei uma lâmpada por cima para fazer o papel de sol, se tudo desse certo o calor da lâmpada evaporaria a água e sobraria o sal, mas aquele negócio não funcionou direito, a água nunca evaporou, voltei para casa deprimido com a salina no colo e minha mãe perguntou se eu tinha cacoete por causa do fracasso da salina, e para encerrar o assunto disse que sim, era por causa do fracasso da salina, nunca mais faria salinas, até porque os trabalhos dos outros moleques eram bem melhores, as coisas se mexiam, tinham pilhas, piscavam, funcionavam perfeitamente, e minha salina era uma merda sem tamanho porque a água não evaporava com a lâmpada, e naquele ritmo o mundo iria acabar e minha salina não daria sal nenhum.

Os anos se passaram e superei o fiasco da salina, que concebi depois de uma viagem a Cabo Frio, viajávamos muito, já falei, e havia muitas salinas em Cabo Frio e o funcionamento, pela explicação de meu pai, parecia muito simples. Mas as coisas nunca são tão simples, aprendi com a salina da Feira de Ciências.

Passei três dos seus 450 anos aí, Rio, e no fim de 1974 meu pai foi transferido de novo e voltamos a São Paulo. Guardo com muito carinho cada lembrança desse tempo que volta e meia me vem à mente. Ainda hoje, quando vou ao Rio, reconheço lugares e cheiros, me comovo com pequenas coisas, tento não me sentir um peixe tão fora d’água quando sou quase sempre, em qualquer tempo e lugar.

Vivi três dos meus 50 anos no Rio de Janeiro, GB, guardei nomes de ruas, praças e avenidas, Barata Ribeiro, Cardeal Arcoverde, Bolívar, Atlântica, Siqueira Campos, Santa Clara, fui ao Sendas e à Casas da Banha, íamos ao Bob’s e meu pai mostrava espantado os painéis fotográficos iluminados por trás com imagens de sanduíches, sorvetes e refrigerantes, olha a perfeição disso, ele dizia. Era tudo muito moderno e cintilante.

Só não aprendi a falar carioca, nisso aqueles três anos foram inúteis, mas aprendi a ser carioca, isso não saiu de mim, porque a gente sai do Rio, mas o Rio, de certa forma, não sai da gente.