Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

O GRANDE SCHABOWSKI

SÃO PAULO (é pra já) – Günter Schabowski, um dos mais importantes personagens do século 20, morreu ontem na Alemanha aos 86 anos, pobre e esquecido. Foi Schabowski quem, no dia 9 de novembro de 1989, derrubou o Muro de Berlim. Jornalista, casado com uma russa que, dizia-se à miúda nos bares de Berlim, era […]

SÃO PAULO (é pra já) – Günter Schabowski, um dos mais importantes personagens do século 20, morreu ontem na Alemanha aos 86 anos, pobre e esquecido. Foi Schabowski quem, no dia 9 de novembro de 1989, derrubou o Muro de Berlim.

Jornalista, casado com uma russa que, dizia-se à miúda nos bares de Berlim, era espiã da KGB, Schabowski tinha sido diretor do jornal “Neues Deutschland” antes de ascender no governo da Alemanha Oriental. Tornou-se rapidamente figura importante do Comitê Central do Partido Comunista, assumindo antes dos 60 anos o posto de porta-voz do regime.

[bannergoogle] Aquele fim de ano vinha sendo particularmente complicado para os dirigentes da DDR. Protestos pipocavam por todo o país, com a população pedindo liberdade — de tudo: expressão, ir e vir, manifestação, pensamento. O mesmo acontecia em outros países satélites da URSS, que caminhava para a dissolução.

Para entender como Schabowski derrubou o Muro, porém, é preciso voltar um pouco no tempo para conhecer outra figura decisiva no episódio que mudou a história do mundo: Riccardo Ehrman, jornalista italiano que em 1976 se mudou para Berlim Oriental como correspondente da agência Ansa.

Ehrman tinha muitos amigos no governo por conta de uma habilidade prosaica: ele e sua mulher, a espanhola Margarita, eram mestres da culinária italiana. Viviam recebendo altos dirigentes do partido para jantares regados a bons vinhos e grappa. Um dos frequentadores de seu pequeno apartamento era Günter Pötschke, diretor da agência oficial de notícias da Alemanha Oriental, a ADN. Pouco antes da conferência de imprensa de 9 de novembro, Pötschke telefonou para Ehrman: “Não deixe de ir a essa coletiva”, alertou. “Vai ser importante. Pergunte sobre a possibilidade de nossos cidadãos poderem viajar para fora do país.”

Riccardo chegou atrasado à entrevista, que aparentemente seria mais um interminável lenga-lenga oficial sobre assuntos de governo. Mas como o pau estava comendo na DDR e em outros países comunistas, a imprensa internacional estava toda lá, esperando por alguma declaração relevante — just in case. Ele se sentou num estrado perto da mesa onde estavam os dirigentes, entre eles Schabowski. Depois de mais de meia hora de papo-furado, foi aberta a sessão de perguntas. O tema era exatamente uma lei aprovada dez dias antes que permitia que os cidadãos alemães-orientais viajassem para o exterior. Mas, para isso, eles precisariam de um passaporte válido, visto de saída e visto de entrada de volta — que só o governo concedia.

Ehrman, que conhecia bem Schabowski, sabia que aquilo não passava de propaganda para acalmar o povo nas ruas. Uma maluquice, porque era mais difícil conseguir um passaporte com visto de saída na Alemanha Oriental do que comprar uma BMW zero quilômetro ou uma réplica da Estátua da Liberdade. A tal lei permitia as viagens, OK. Mas, na prática, só viajava quem fosse autorizado. E ninguém era. Então, o jornalista da Ansa disparou: “Vocês não acham que estão cometendo um erro com essa lei?”. O porta-voz se irritou levemente com o italiano. “Não, não estamos cometendo um erro”, respondeu.

Essa pergunta detonou a sequência que culminaria com o anúncio que entrou para a história. Schabowski iniciou um discurso sobre as condições de vida dos alemães-orientais considerados refugiados do lado ocidental, falou sobre a dificuldade que eles tinham para serem aceitos numa nova sociedade, citou o problema do desemprego, mencionou os países vizinhos “amigos” que tinham de lidar com aqueles que queriam sair da DDR e, em seguida, pegou uma folha de papel que mal tinha lido antes da coletiva e disse: “Inclusive tomamos uma decisão hoje que permite que todos os cidadãos possam sair do país [para a Alemanha Ocidental] diretamente pelos nossos postos de fronteiras, eles receberão vistos para isso sem que tenha de ser cumprida nenhuma exigência especial”.

Na verdade, o papel era um projeto de lei que ainda não tinha sido formalmente aprovada pelo Parlamento do Povo — há versões menos espetaculares que garantem que a medida seria anunciada no dia seguinte, e Schabowski apenas a antecipou inadvertidamente. De qualquer maneira, diante da bomba iminente, percebendo que ali algo muito importante poderia estar acontecendo, Ehrman perguntou, na lata: “Sem passaporte?”. Outro jornalista emendou: “Quanto isso entra em vigor?”, e Schabowski, meio atrapalhado, começou a ler o texto da nova lei na folha à sua frente, explicando que o governo tinha decidido que as pessoas agora poderiam viajar para o lado ocidental sem ter de passar por um terceiro país, e que todos os postos de fronteira entre as duas Alemanhas poderiam ser usados por quem quisesse sair do lado comunista. A questão do passaporte era “técnica” e ainda não podia ser confirmada, a coisa estava meio confusa, e alguém repetiu: “E quando esta permissão entra em vigor?”.

Então o porta-voz, um pouco inseguro, relutante, até, olhou para o papel e disse: “Até onde eu sei, imediatamente. Sem mais demoras”.

Eram 18h53 da quinta-feira 9 de novembro de 1989. A entrevista estava sendo transmitida ao vivo para as duas Alemanhas. Incrédulos, os moradores de Berlim Oriental que a assistiam pela TV começaram a deixar suas casas e se dirigiram aos pontos de checagem junto ao Muro. Os policiais não tinham recebido nenhuma ordem oficial para abrir as fronteiras. Não sabiam direito o que fazer. Organizaram filas e pediram calma à população pelos megafones instalados nos Wartburg verdes e brancos da Volkspolizei.

Erhman foi o primeiro jornalista a informar ao mundo, pela Ansa, que o Muro tinha caído. A maioria dos jornalistas presentes à coletiva não percebeu direito o que estava acontecendo. A agência italiana deu a notícia meia hora antes que todo mundo. O correspondente, depois de informar a sede em Roma por telefone — e garantir à chefia que não estava maluco –, correu para o posto de controle em Friedrichstrasse, onde uma multidão aguardava ansiosa pela abertura da fronteira. Foi reconhecido. “Olha lá o jornalista que fez a pergunta!”, gritou alguém, e Riccardo foi erguido nos ombros do povo, festejado como um herói.

Ehrman tem 86 anos e vive em Madri. Aposentado, continua cozinhando. Naquela noite de 9 de novembro, antes de dormir, recebeu um telefonema do embaixador italiano na Alemanha Oriental. “Riccardo, que cazzo você fez?”, perguntou o diplomata em altos brados.

Ele tinha derrubado o Muro. Junto com Schabowski, que morreu ontem em Berlim sem ser notado.