Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

PARIS

É política ou religião? Temos de matá-los, todos? É guerra, afinal? Por que sentimos tanto pelos mortos de Paris e quase nada pelos do Líbano, do Quênia, do avião russo? Quem são esses caras? O que eles querem? Os atentados de sexta à noite em Paris finalmente apresentaram o Estado Islâmico ao Ocidente. Mais ou […]

É política ou religião?

Temos de matá-los, todos?

É guerra, afinal?

Por que sentimos tanto pelos mortos de Paris e quase nada pelos do Líbano, do Quênia, do avião russo?

Quem são esses caras? O que eles querem?

Os atentados de sexta à noite em Paris finalmente apresentaram o Estado Islâmico ao Ocidente. Mais ou menos como Bin Laden fez nos EUA em 2001, mostrando ao mundo que tinha nascido um negócio chamado Al Qaeda, e que eles não estavam pra brincadeira.

Enquanto os caras do EI cortavam pescoços em vídeos do YouTube e explodiam gente no Oriente Médio, não passavam de mais um daqueles grupos de lunáticos que vivem se matando por aqueles lados. Isso não chega aqui, pensamos. E se tem japonês, inglês, italiano, australiano e americano dando a cara pra bater nos desertos iraquianos e sírios, que aprendam e da próxima vez procurem levar uma vida menos… perigosa. Sabiam o risco que corriam. É como entrar no complexo do Alemão vestido de PM e gritando que ali só tem cuzão. Vai rodar.

Mas agora parece ser mais sério. Foi em Paris. A gente podia estar lá.

Um atentado em Paris ou Nova York, ainda que com menor número de mortos do que qualquer bombardeio americano no Oriente Médio, ou qualquer ação israelense em Gaza, ou ainda do que qualquer ato terrorista do próprio EI ou outro grupo fundamentalista “naqueles lados” – estamos falando de terrorismo, afinal, seja ele de Estado, seja ele praticado por grupos não reconhecidos por organismos internacionais –, choca mais porque chegou perto. Pô, jantei ali um dia. Pô, vi um show nesse lugar aí. Pô, tomei um café nessa mesinha que aparece no vídeo.

Entendemos que se matem no Oriente Médio porque nos sentimos melhores que eles. Afinal, o Ocidente civilizado já resolveu essas questões étnicas e religiosas faz tempo. Os espanhóis dizimaram as populações que encontraram nos Andes e na América Central? Verdade. Mas os descendentes de índios nesses países não saem matando brancos que falam “buenos dias” a torto e direito. Os portugueses acabaram com os nativos no Brasil? Sim, mas nem por isso vemos botocudos avulsos esmagando crânios de lusitanos com bordunas nas padarias das esquinas de São Paulo.

Em nossa mente colonial – de colonizadores e colonizados, dominadores e dominados –, essas pendengas são coisa do passado. Convivemos bem com violências de todos os tipos, assaltos, roubos, assassinatos, mortes no trânsito, tráfico, mas olhamos com enorme estranheza para os povos do Oriente Médio e consideramos todos birutas com essa história de matar gente em nome de Alá. Que se matem, pensamos. São árabes, que se entendam.

Mas é claro que não é simples assim. Somos, no Ocidente, na grande maioria, descendentes de outra vertente religiosa que há alguns séculos fez com os seguidores do islã exatamente isso que os integrantes do EI pretendem. Não é por acaso que o autoproclamado califa do Estado Islâmico do Iraque e da Síria, agora reduzido apenas a Estado Islâmico, talvez por razões mercadológicas, proclama aos seus fiéis que o próximo alvo é Roma.

Roma?

O que os italianos têm a ver com isso?

Para compreender a insanidade do EI, é preciso observar a história com um pouco mais de cuidado. Na linha do tempo da humanidade, o surgimento do Islã foi outro dia, coisa de pouco mais de mil anos. E há pouco mais de mil anos, as Cruzadas rasgavam o leste da Europa e o Oriente Médio matando, estuprando, esfolando, empalando infiéis que não acreditassem em Jesus Cristo, financiadas pelo dinheiro da Igreja – que se misturava com as monarquias reinantes.

Há motivos para os muçulmanos odiarem os católicos, para se lembrarem das Cruzadas, para quererem derrotar… Roma.

Claro que “Roma”, no caso, é algo simbólico mil anos depois. O exército do coitado do papa é formado por guardas vestidos de palhaços, incapazes de soltar o pino de uma granada. “Roma” é o Ocidente. Inteiro.

Ah, mas faz tanto tempo essa história das Cruzadas, como é que os muçulmanos ainda pensam nisso, esse negócio a gente nem sabe se existiu, será que eles não sabem que é coisa de filme de Hollywood?

Mais ou menos. Como disse, na linha do tempo da humanidade isso foi outro dia. Talvez não tenha acabado, ainda. Os fundamentalistas do EI acreditam piamente no que Maomé deixou escrito. A interpretação que fazem do Alcorão, segundo estudiosos do assunto, é bastante coerente e até erudita. Faz sentido, do ponto de vista teológico. Há uma batalha prevista, do islã contra os infiéis. O objetivo é dizimar quem não crê na mesma coisa, no mesmo deus, na palavra do profeta, nos desígnios de Alá.

Alguma semelhança com o que a igreja católica fez há alguns séculos?

Aceitam-se as barbaridades cometidas pelos cristão europeus na Antiguidade e na Idade Média como se fossem apenas páginas de livros de história. Não fazemos mais isso. Não queimamos mais ninguém em fogueiras, nem penduramos seus corpos decapitados em cruzes — quando isso acontece é o PCC, ou o Comando Vermelho, ou o Pablo Escobar, ou os cartéis mexicanos, e achamos tudo normal quando não há cunho religioso. É verdade. Nos civilizamos, por assim dizer. Mas quanto tempo isso durou? Que cicatrizes deixou?

Não estou aqui defendendo o EI, nem justificando o que esses malucos sanguinários fazem. Longe de mim. Creio que se vivesse na Idade Média escreveria algo parecido sobre os cristãos na “Gazeta de Roma” – e seria seviciado em praça pública sob as ordens de sacerdotes ungidos pelo Criador. Apenas tento entender o que está acontecendo neste mundo complexo e absurdo.

O EI é um grupo religioso milenar perfeitamente adaptado aos tempos modernos. Os islamitas fundamentalistas creem que sua religião tem de dominar o mundo, que os apóstatas serão derrotados, e que haverá uma batalha final que dará início à contagem regressiva para o fim do mundo. É um roteiro simples de explicar e de entender. Está tudo escrito. O apocalipse está logo ali, e é por isso que é tão fácil convencer jovens desenganados pela vida – no Oriente Médio em guerra, ou marginalizados em países ocidentais como a França – a se explodirem para chegar antes e passar a eternidade com sei lá quantas virgens à disposição.

Convenhamos: é uma proposta sedutora. Você está fodido e mal pago, passando fome, sendo discriminado, desempregado, sem dinheiro, com perspectiva zero de futuro. Vem um sacerdote qualquer, da religião que você aprendeu a seguir e acreditar desde criança, e garante que daqui a pouco o mundo vai acabar, mas enquanto isso não acontece, você pode ir um pouco mais cedo que vai encontrar sete gostosas te esperando peladas.

Eu me explodiria fácil.

É algo análogo ao crime no Brasil, nas comunidades pobres. Por que tantos jovens, crianças mesmo, se envolvem com o tráfico? Pela falta de perspectiva, pela tentação de conseguir tudo rápido e sem grande esforço, mesmo sabendo que é uma vida condenada a acabar cedo, muito cedo. Não tem muita diferença. Em algum momento, eles vão matar e ser mortos. Torturar e ser torturados. Igualzinho.

O EI é coisa nova, apareceu quando ainda nos preocupávamos em elogiar e aplaudir os americanos pela captura de Osama Bin Laden no Paquistão. Nasceu no território fértil para o fanatismo que se formou após as invasões do Afeganistão, em 2001, e do Iraque, em 2003. Sim, os EUA podem ser responsabilizados. Não tem nada de direita-esquerda aqui. É um fato. Bem ou mal, Afeganistão e Iraque se equilibravam com suas mazelas sob o governo Talibã e a ditadura de Saddam Hussein. Eram, por assim dizer, problemas dos afegãos e dos iraquianos. Havia Estados consolidados, ainda que comandados por maníacos alucinados. Mas, como sempre, os EUA acharam que tinham de meter o bedelho. O 11 de setembro motivou os ataques aos talibãs – que foram financiados pelos americanos quando a URSS invadiu o país, diga-se. A falácia das armas químicas levou à caça de Saddam. Os dois países ficaram sem governo. Na vizinha Síria, milícias eram igualmente financiadas para derrubar Bashar al-Assad – que segue firme e forte no poder.

O que esperar num cenário desses, de miséria, desolação, violência, dominação estrangeira? A coisa mais fácil do mundo é surgir um grupo de fanáticos que pega um livro escrito por um enviado de deus para procurar um caminho. E no livro está escrito: vamos acabar com essa merda até o dia do fim do mundo.

Há uma diferença essencial entre o EI e a Al-Qaeda. A organização de Bin Laden, ainda que com métodos bastante questionáveis – como jogar um avião num prédio –, tinha e tem uma pauta, digamos, política: a expulsão dos não-muçulmanos da Península Arábica, o fim de Israel, a destruição das ditaduras apoiadas pelos EUA na região.

O EI, não. Primeiro, que se proclama um Estado, e um Estado precisa ter um espaço bem determinado, o que leva à necessidade de conquistas territoriais. Depois, é o bendito apocalipse que move seus seguidores, que estão à espera do Mahdi, a figura que vai liderar os muçulmanos à vitória sobre os exércitos de Roma nas planícies de Dabiq, na Síria. Aí começa a contagem regressiva para o fim do mundo, até que surja o “anti-messias” e o confronto final aconteça em Jerusalém e aí acaba a porra toda.

Mas o EI não é só um bando de lunáticos à espera do fim do mundo. Os caras são espertos, sabem usar as redes sociais e seduzem jovens do mundo inteiro para sua causa simples de compreender — de novo, derrotar os exércitos de Roma e esperar o fim do mundo. São espertos porque, em contraste com as leis medievais da Sharia – que preveem apedrejamentos, amputações, mutilações, escravidão e o caralho a quatro –, promovem um estado de bem-estar social que os governos que combatem já não conseguem prover, por caóticos e ilegítimos que são, empoderados por potências estrangeiras.

Aqui vale um parêntese. Engana-se quem pensa que o EI só ataca aviões russos e “soft targets” como lanchonetes, bares, restaurantes e casas de shows. Os caras não perdoam nenhuma corrente de pensamento islâmico que não seja sua interpretação literal (e radical) do Alcorão. Chegam até a se defrontar com alguns conflitos de consciência. Os curdos, por exemplo. O que fazer com eles? Matá-los porque são muçulmanos “errados”, ou escravizá-los porque são pagãos? Tem de ver isso aí… Os muçulmanos considerados apóstatas, infiéis, que não seguem a Sharia na literalidade que o EI propaga, se fodem de canudinho. A questão é: qual a interpretação mais legítima dos escritos de Maomé? A literal do EI, ou a mais moderada de outras correntes islâmicas, como as dos sunitas, xiitas, wahabitas (bem radicais, diga-se, dominante na Arábia Saudita, mas um poço de hipocrisia, porque os milionários sauditas sabem bem como dar uma enganada em Alá)?

Mas eu falava do bem-estar social. Se é verdade que o Alcorão – escrito, como a Bíblia, em tempos bicudos, turbulentos, o que explica sua violência e belicismo – encoraja e justifica guerras e atrocidades, olho por olho, dente por dente, é verdade também que prega a justiça social e econômica para todos, o que se traduz em casa, comida, saúde, trabalho. Nos territórios hoje controlados pelo EI, isso existe, de certa forma. Eles são de fato o Estado. Cobram impostos, instauram tribunais, proveem serviços de educação, saúde, telefonia e o diabo a quatro. Onde não havia ninguém, há alguém olhando pelos bons muçulmanos. Ainda que seja um bando de doidos. Mas se Alá está com eles, que seja.

O exército de soldados que compõem a linha de frente do EI hoje tem algo entre 30 mil e 50 mil combatentes, os jihadistas – aqueles que lutam. Acreditam cegamente no que o califa diz – a propósito, o nome dele é Abu Bakr al-Baghdadi, presumivelmente nascido em 1971 no Iraque, considerado o substituto de Alá na Terra, e por isso prende e manda soltar e mija de porta aberta na mesquita. Al-Baghdadi sucedeu o fundador do grupo, Abu Musab al-Zarqawi, um ex-funcionário de videolocadora da cidade jordaniana de Zarqa — nome de batismo, com o perdão de Alá, Ahmad Fadhil. Era um jovem problemático, tatuado, beberrão e usuário de drogas que foi mandado por sua mãe para uma escola islâmica de bons modos para ver se endireitava. Mas, em vez disso, se pirulitou para o Afeganistão, onde conheceu a galera da Al Qaeda. Radicalizou o discurso, adotou métodos violentíssimos de terror, ocupou o vácuo de governo no Iraque e assim nasceu o EI. Al-Zarqawi foi morto em 2006 por um ataque aéreo americano.

O EI é bem armado, equipado e rico. Seu arsenal é composto de espólios de guerra – tudo que tomou dos exércitos do Iraque e da Síria – e de armas obtidas junto a traficantes internacionais em troca de petróleo que, igualmente, é comercializado no mercado negro. Sim, estamos falando de economia, também. Mesmo as causas mais sacras — como matar todos os católicos e judeus do planeta, ou escravizá-los e estropiá-los, para depois esperar o fim do mundo — exigem dinheiro.

Uma forma mais inteligente de minar o EI seria justamente cortar essas linhas de financiamento, e duvido que o Ocidente não saiba quem abastece os caras, quem compra seu petróleo, quem vende suas armas. Esmagar os caras com bombardeios aéreos é uma estratégia que me parece estúpida. Matam-se muitos civis e muitas vezes se erram os alvos. Um combate por terra, com todo o poder bélico de nações ocidentais, traria resultados. Mas quem é que quer um novo Vietnã, corpos de jovens voltando da Terra Santa em sacos plásticos?

É preciso cessar essa violência, disso não há dúvidas. Mas é preciso também tentar entender por que, no século 21, crenças e práticas medievais ainda encontram milhares de pessoas dispostas a morrer para defendê-las. É preciso assumir que a miséria e a violência do Oriente Médio têm um componente de culpa das potências ocidentais que está longe de ser desprezível e não pode ser ignorado. Foi o colonialismo europeu que esmagou populações inteiras depois das duas grandes guerras, tomando territórios imensos, roubando seu petróleo, explorando, escravizando, promovendo genocídios, estabelecendo fronteiras, criando países artificiais. Isso foi feito aqui também na era dos descobrimentos: ouro, prata, ferro, tudo levado à custa de matança e barbárie. Depois, o Ocidente, EUA à frente, se associou às teocracias locais para controlar o preço internacional do precioso líquido negro que move a humanidade. É só dar um pulo na Península Arábica para entender o que estou dizendo. Países (na verdade, famílias) que viraram amigos do Ocidente, como a Arábia Saudita e todos os Emirados Árabes – Catar, Dubai, Abu Dhabi, essas merdas –, são ricos, modernos, cheios de prédios lindos e de Ferraris e Lamborghinis na rua. E todos muçulmanos. Muçulmanos “do bem”, porque são aliados políticos e financeiros. Ali do lado, no Iêmem, na Jordânia, na Síria, no Iraque, no Líbano, na Palestina, é uma pobreza de dar dó, a desgraça em estado puro.

Explica-se, assim, o ódio. Explica-se, assim, a facilidade com que se convence um jovem muçulmano de que a vida na Terra é uma tragédia, e que se é assim, é porque aquilo que Maomé escreveu não é respeitado pelo resto do mundo, e que é preciso lutar até o fim para derrotar os infiéis. Aqui, voltamos ao início deste texto. Não é muito diferente do que os cristãos pregavam há alguns séculos – e alguns séculos nem é tanto tempo assim.

De tudo que vem acontecendo no mundo, a única conclusão a que chego é a de que a Idade Média ainda não terminou. E, por isso, a guerra santa também não. Até o dia em que a bosta da humanidade entender que não há santos, não há deuses, não há nada que justifique uma morte sequer, seja ela no Quênia, na Nigéria, no Líbano, na Noruega, na favela da Vila Prudente, ou em Paris.

Porque se os há, santos e deuses, o que mandaram para cá veio com defeito.