Blog do Flavio Gomes
Automobilismo brasileiro

AGRURAS DE UM PILOTO EM SP

SÃO PAULO (só piora) – Fiquei quase o ano todo sem correr, em 2015. O Meianov se aposentou, estava sem grana para fazer outro carro, Interlagos ficaria em obras, nem boxes poderíamos usar, resolvi tirar uma temporada “sabática”. Nem sabia se ia voltar, apesar da paixão e do prazer que tenho quando estou num carro […]

SÃO PAULO (só piora) – Fiquei quase o ano todo sem correr, em 2015. O Meianov se aposentou, estava sem grana para fazer outro carro, Interlagos ficaria em obras, nem boxes poderíamos usar, resolvi tirar uma temporada “sabática”. Nem sabia se ia voltar, apesar da paixão e do prazer que tenho quando estou num carro de corrida.

Já contei aqui. O Nenê Finotti, meu chefe de equipe, me convenceu a fazer um Voyaginho, ele estreou em novembro em Londrina, ganhei uma corrida na minha categoria, me empolguei de novo.

Interlagos, 19 de dezembro de 2015. Sábado. Última etapa do Campeonato Paulista de Velocidade no Asfalto. Não sei quantas foram, não acompanhei. Porque lá no começo de 2015, a FASP (Federação de Automobilismo de São Paulo) e os clubes nos informaram que como os boxes não poderiam ser usados por causa das obras de expansão do paddock, seria feita uma estrutura provisória, com tendas, possivelmente do lado de fora da Curva do Sol.

[bannergoogle] Aí veio a primeira etapa sob as reformas e a estrutura oferecida foi… nenhuma. Há uma laje no miolo das antigas curvas do Sol, Sargento e Laranja, erguida há anos para que nos eventos mais importantes lá sejam montados HCs, camarotes, lojas e exposições. Quando não tem nada disso, a área sob a laje vira estacionamento.

Pois ela se transformou em box. Juro que não sei como meus amigos se acomodaram. O grid, pelo que entendi, era montado na área de escape do Laranjinha que foi adaptada como “saída de box” — os carros “acessavam” a pista por ali, no meio do Laranjinha. Desculpem as aspas. Serão necessárias muitas vezes. A “entrada de box” ficava no mesmo lugar, só que na contramão, delimitada por cones. Hum… Que solução engenhosa.

Não tinha tomada, ar comprimido, luz, água, nada. Cada equipe que se virasse. Mas as inscrições continuavam sendo cobradas integralmente: no caso da Classic Cup, 850 reais por etapa, incluindo dois treinos de cerca de meia hora na sexta, classificação e corrida no sábado, também com cerca de meia hora cada.

Nessas condições julguei ser mais sensato não correr. Mas quando os boxes foram liberados para a F-1, voltamos a eles para a última etapa do campeonato. Eu de carro novo, cheio de amor pra dar.

A FASP E SEUS CLUBES INCRÍVEIS

Vou contar para vocês como funciona o automobilismo em São Paulo. Os campeonatos são montados e chancelados pela FASP — para carros, ralis, terra, kart, tudo que tem quatro rodas. Ela solicita à SPTuris — empresa de capital misto controlada pela Prefeitura que administra vários equipamentos, entre eles o autódromo — as datas que precisa para fazer seus campeonatos.

Isso feito, cada data é alocada para um clube.

O que é um clube?

Nada, a rigor. Uma salinha (daqui a pouco falo delas) onde trabalham poucas pessoas que a cada evento se deslocam para o autódromo, no caso de Interlagos, para cobrar as inscrições, distribuir lugares nos boxes, cuidar do abastecimento, providenciar equipes de sinalização, resgate e médica, essas coisas.

São Paulo, a cidade, tem 11 clubes. Se vocês tiverem curiosidade, eles estão listados aqui, na página oficial da FASP. São os que me interessam, por ora. Três deles — Automóvel Clube do Estado de São Paulo, Piratininga Esporte Motor Clube e Interlagos Motor Clube — ficam no mesmo endereço: Av. Jangadeiro, 693, em Interlagos, apropriadamente perto do circuito. Um quarto, o Paulistano Motor Clube, tem sede na mesma avenida, mas no número 691. O que me leva a acreditar que faz parte da, digamos, mesma “holding” de clubes.

Muito bem. Para entrar em contato com os três primeiros, deve-se ligar para (11) 5666-3361. Se preferir um e-mail, escreva para imc@interlagosmotorclube.com.br. Mas se quiser escrever para o Paulistano Motor Clube, o do número 691, pode usar o mesmo e-mail que chega. Um quinto clube, o glorioso Clube Motor Race, que de acordo com a página da FASP é presidido pela “Srª Vera Lúcia de Castro Vidal”, tem endereço registrado na Lapa mas, curiosamente, seus prefixos telefônicos (5667) são de Interlagos e o e-mail é o infalível imc@interlagosmotorclube.com.br.

Temos aí cinco clubes muito, digamos, parecidos. Afinal, atendem no mesmo endereço, no mesmo telefone, no mesmo e-mail. Mas não é só com essa “holding” esportiva que tal curiosidade ocorre. Ela se repete com a dupla Automóvel Clube da Lapa e Rallye Motor Clube, ambos sediados na rua Guaricanga, 426, na deliciosa Lapa, e ambos atendem no (11) 3831-6462 e no e-mail autclubelapa@gmail.com. Foi nesse endereço, mas não vou saber em qual clube, que tirei minha carteirinha de piloto no ano passado. Paguei 1,1 mil reais. Parte desse dinheiro, não sei quanto, vai para a FASP, ou a CBA.

Os clubes que não pertencem a estas duas “holdings” são o Clube de Pilotagem Automobilística, de Roberto Manzini, que dá cursos de pilotagem, o tradicional Automóvel Clube Paulista, que fica na Av. Brasil com a Nove de Julho (e hoje organiza os 500 Km de São Paulo), o São Paulo Motor Clube, em Interlagos, presidido pela “Srª Suzana”, segundo a FASP, e o Bandeirantes Motor Sport Club, que fica… na Lapa, claro!

Lapa e Interlagos. O coração do automobilismo paulista. Com um pezinho na Rua Luis Góes, na Vila Mariana, onde fica a sede da FASP.

A DOIDA TABELA DE ALUGUEL DE INTERLAGOS

Está cansativo? Paciência. É preciso explicar tudo direitinho. Porque isso aqui não é uma denúncia — poupem seus advogados, não estou acusando ninguém e vou apenas relatar fatos que um bom promotor poderia interpretar como tal, mas juro que não tenho essa intenção.

Interlagos, 19 de dezembro de 2015. Sábado. Não estou com nosso “schedule”, mas acho que a classificação era às 8h30 e a largada, às 13h. Se não foi isso, foi perto. Atrasou tudo, porém. Acontece.

Quando a FASP solicita e consegue as datas para suas corridas, e depois aloca cada uma para um clube “diferente” — as aspas se justificam porque, como vimos acima, na maior parte do tempo estamos falando dos mesmos organizadores, “donos” de clubes muito parecidos –, é preciso consultar a tabela de aluguel do autódromo, que pode ser facilmente encontrada aqui, no site oficial do equipamento administrado pela SPTuris.

Vejam que interessante. Se eu quiser alugar Interlagos por uma semana para fazer um evento, um encontro de blogueiros, por exemplo, terei de pagar 336 mil reais. Por um mês, 1,13 milhão — é justo.

Se eu quiser fazer um Track Day, das 8h às 18h, são 28,5 mil — 2.850 reais por hora. Mas se meu Track Day tiver uma hora de almoço, portanto das 7h às 12h e das 13h às 18h, terei de pagar 27,7 mil. Nesse caso, com as mesmas dez horas de pista, cada hora vai custar… 2.770 reais! Uau! Que tabela inteligente! Amigo, se for fazer um Track Day, vá na segunda opção. E almoce, inclusive.

(O parágrafo acima foi editado, eu tinha considerado o valor de meio período como de período integral. De qualquer forma, com almoço é mais barato.)

São 54 modalidades possíveis de aluguel — eventos, apresentações artísticas, filmagens, quadras, escola de pilotagem, curso de direção defensiva, um monte. E sete delas contemplam… “campeonatos”.

Ah, o esporte. O esporte é tão generoso que, quando é preciso alugar o autódromo para uma competição estadual, de carros ou motos, Interlagos custa 10,7 mil por dois dias. Mas se você enfiar junto do campeonato um Track Day, um Time Attack ou um Test Drive, o valor cai para… 5 mil reais por dia! Oba!

Não faz nenhum sentido, claro. A tabela é tão doida que quando o campeonato é nacional, tem de pagar 50 mil pelos dois dias se a intenção for fazer apenas corridas de uma única categoria — Porsche, por exemplo. Mas se enfiar um Track Day no meio, a fatura cai para 20 mil por dois dias. Pessoal da Porsche, atenção: o negócio é levar meia-dúzia de carros de rua e inventar um Track Day. O preço cai para menos da metade!

Quem foi o gênio que elaborou isso?

Não importa. Fiquemos com o que nos interessa, o segundo item da vasta tabela: “Estadual com Track Day/Time Attack/Test Drive Carros ou Motos (adicional)”. Cinco mil reais por dia.

AH, OS DELICIOSOS TRACK DAYS…

[bannergoogle] Até o ano passado, não podia enfiar Track Day com campeonato no mesmo dia. Isso porque o valor camarada era válido apenas para competições. Vou repetir, em maiúsculas: COMPETIÇÕES. Porque elas geram empregos, movimentam muita gente, é um esporte. Em maiúsculas: UM ESPORTE.

Track Day não é competição e não gera emprego algum. Mas em alguma negociação com a SPTuris para compor a tabela de 2016, alguém contrabandeou essa atividade para a faixa de preços mais baixa. Basta fazer seu Track Day num dia de campeonato, que você fica lindo na fita.

E é o que nossos adorados clubes estão fazendo, claro. Já no ano passado, não sei se de forma irregular ou não, Track Days foram enfiados goela abaixo de quem estava disputando campeonatos. Podia? Não sei. Mas aconteceu.

Agora pode. E o que você, Flavio Gomes, tem contra os Track Days?

ELES NOS APERTAM E SÃO UNS SEM-NOÇÃO!

Mas não é só isso, nos apertam. Primeiro, creio que a SPTuris se equivoca barbaramente ao colocá-los na mesma categoria dos campeonatos no que diz respeito à faixa de preço. Porque Track Day não é competição. Track Day é abrir um autódromo para qualquer um que tenha CNH sair andando. Tem de tudo. Fusca velho e Radical capaz de virar 1min39s em Interlagos. Milionários com seus cafonérrimos Camaros e Mustangs, Subarus, Nissans, Audis, tudo tunado e preparado, dividindo freada com Puma de rua, Variant, Fiat 500, tudo que se puder imaginar.

[bannergoogle] Não é preciso dizer que essas pessoas não têm a menor noção do que é guiar numa pista. Não usam macacão, luva, balaclava, sapatilhas. Seus carros não têm santantônio. É uma aberração. Mas OK. É algo que existe, quem quiser que faça. Só que…

Só que no domingo, 20 de dezembro de 2015, foram reservadas para o Track Day quatro horas de pista. Quatro horas. Resultado? A programação de todas as outras categorias de competição foi espremida para o sábado. E eram oito: F-1600, F-Vee, Classic Cup, Clássicos de Competição, Força Livre, Marcas, Sprint Race e Old Stock. No total, 185 carros de corrida. Contra 66 do Track Day, totalizando 251 automóveis no autódromo.

Cada categoria tem um valor diferente de inscrição. A F-1600, por exemplo, custava 1.550 reais e tem quatro baterias. A gente pagava 850 na Classic. Marcas custava 1.350. Os caras do Track Days pagavam 800 reais. Por quatro horas. QUATRO.

ENTÃO, ENTRA MUITA GRANA, NÃO?

Sim, claro. O Dú Cardim fez a conta. Incluindo a turma da Arrancada, que não atrapalha porque fica na antiga reta, foram 471 carros que acorreram a Interlagos no fim de semana antes do Natal de 2015, com uma arrecadação bruta de 285 mil reais. Só o Track Day rendeu 52,8 mil. É um puta negócio. Também quero.

O aluguel por três dias (treinamos na sexta) custou ao clube, que não sei qual foi, 15 mil reais. As outras despesas, creio que não chegaram a 50 mil — se chegaram, ou passaram disso, favor apresentar a descrição de todos os gastos, que agradecemos.

Mas por conta das quatro horas do Track Day, como eu dizia, ficamos espremidos no sábado. A ponto de no briefing, antes da largada, a direção de prova pedir que alinhássemos no… box! Montar um grid de 40 carros no pit-lane! Para sair e já largar e não perder tempo. Porque, afinal, tinha de fazer tudo para que pudesse haver tempo suficiente para o… Track Day, claro.

Não aceitamos. Na negociação, ficamos sem tempo de boxes abertos, normalmente 15 minutos antes da largada, para verificar se tudo está OK no carro. Saímos, alinhamos, largamos. Nosso ritual — todo piloto tem um — de sair, dar uma volta, passar nos boxes, fazer algum ajuste nos 15 minutos antes da largada, isso nos tiraram. E a largada aconteceu atrás de um safety-car sem identificação e luzes de sinalização adequadas, num flagrante desrespeito ao regulamento geral de corridas da CBA, que EXIGE que o carro tenha luzes giratórias no teto, siga um procedimento padrão etc. e tal. O resultado foi a maior panca da história da nossa categoria.

FALTOU GENTE, GUINCHO, TUDO

Posso ter contado errado, mas vi bandeirinhas em apenas seis postos de sinalização. Repito: posso estar errado. Mas não havia — e nisso não estou errado — nos 22 postos de Interlagos. E é obrigado. É OBRIGATÓRIA a presença de bandeirinhas em TODOS os postos de sinalização. Não havia. Para seu conhecimento: um bandeirinha custa 90 reais por dia.

[bannergoogle] Havia dois carros de resgate, guinchos que recolhem quem quebrou. Teve gente que esperou UMA HORA para que seu carro fosse levado de volta aos boxes. Cada guincho custa 250 reais por dia. Em Interlagos, me contou um ex-diretor de prova, pelo menos cinco carros de resgate, mais medical-car, mais carros de intervenção rápida, mais bombeiros, mais 60 comissários, mais fiscais de box são necessários. Um contingente de 110 pessoas. No sábado da nossa corrida, não tinha mais de 30 cuidando da gente.

Organizar corridas, ainda mais com Track Day pendurado no ombro, é um excelente negócio. Num fim de semana, o clube X arrecadou pelo menos 285 mil reais e não  gastou 50. Que sejam 200 mil reais de lucro — é mais. Em dez etapas no ano, mais de 2 milhões. Gosto da ideia. Fiquei com vontade de fundar um clube. Até porque cada vez que faço uma inscrição, não ganho um recibinho ou uma notinha fiscal sequer para declarar no Imposto de Renda.

APONTANDO O DEDO SEM MEDO

Mas não vou montar clube algum. O que vou fazer é, agora sim, apontar o dedo para os dirigentes do automobilismo local — leia-se FASP –, os donos de clubes — as “holdings” –, a patética administração do autódromo — está um lixo, sem luz, água, tudo quebrado, uma merda –, a SPTuris — genial idealizadora da tabela de preços mais ridícula de todos os tempos –, e a CBA. Porque essa entidade, que se desloca até Salvador para inaugurar uma pista de terra de menos de 2 km, não tem uma única alma disposta a ir a Interlagos para ver o que a turma anda fazendo por aqui. Como pode?

FASP, clubes, amiguinhos… Não queremos luxo. Queremos bandeirinhas. Não queremos Outback para almoçar. Queremos tempo para treinar e correr. Não queremos escritórios climatizados. Queremos safety-car de verdade. Não queremos banheiros de mármore. Queremos bombeiros nos boxes. Comissários que quando o diretor manda colocar a bandeira vermelha, não fique agitando a amarela junto como se a prova tivesse acabado. Queremos que na próxima largada da F-1600 não tenha nenhum fiscal na pista pulando o muro para não ser atropelado. Queremos que o semáforo funcione. Queremos gente capacitada para cuidar da nossa segurança num esporte de risco.

Vai morrer alguém, claro. Se não nas nossas categorias, que correm quase no escuro sem sinalização e coordenação de direção de prova, certamente nos Track Days, infestados de beócios que deveriam passar pelo teste do bafômetro antes de entrar em seus carros para acelerar feito retardados — sim, muitos bebem, e seria ótimo se a PM fizesse um comando na saída de box.

Eu não quero morrer e pretendo continuar correndo. Esperava que na próxima etapa não tivéssemos vergonha daquilo que nos oferecessem. Esperava alguma vergonha na cara de quem comanda o automobilismo de São Paulo. Mas…

MAS FALTA VERGONHA

Em vão. Saiu o “adendo” da próxima etapa, dia 23. “Adendo” é a programação de horários, com a ficha técnica da prova. Vejam que gracinha. Espremeram tudo no sábado e no domingo, embora segunda-feira seja feriado. Por quê? Porque segunda tem um lindo Track Day só para carros japoneses! U-hu! Está aqui. Das 8h às 19h! U-hu!

Dia 25 de janeiro é data reservada na cidade de São Paulo para as Mil Milhas Brasileiras. Como não tem faz tempo, quem chegou levou. E quem chegou? Bom, o contato para participar é thiago@interlagosmotorclube.com.br. Uau! O Interlagos Motor Clube de novo! Uia! Onipresente! Dono do autódromo!

Com essa patifaria dos dirigentes de São Paulo, programaram três sessões de treinos para oito categorias. Na nossa, das 9h às 10h, vamos andar junto com a molecadinha do… Marcas! Serão uns 80 carros na pista! Dá para acreditar? Aí inventaram nossa classificação das 12h às 12h25. E a largada, às 15h55. Tudo no sábado. Um dia. Eram dois. E aumentaram a inscrição. De 850 para 950 reais.

E no domingo, já que empilharam tudo, adivinhem o que vai ter? Track Day das 11h às 19h! U-hu!

Em dois dias, 8h45min dedicadas a TODAS as categorias do Campeonato Paulista. Em dois dias, 19 horas dedicadas a Track Days.

Olha, com todo respeito, vocês que me leem e fazem parte deste circo, vão todos tomar no cu.