Blog do Flavio Gomes
F-1

36, RUE DANIEL BOLLON

SÃO PAULO (bonjour) – Leio em “Na Garagem” que hoje faz 25 anos do primeiro GP em Magny-Cours. 1991. O último foi em 2008. 25 anos é um bom tempo. Curioso que ontem, do nada, do nada mesmo, fui à França. Fui via Google Maps, porque antes de me deitar, sem nenhuma razão aparente, me lembrei […]

SÃO PAULO (bonjour) – Leio em “Na Garagem” que hoje faz 25 anos do primeiro GP em Magny-Cours. 1991. O último foi em 2008.

25 anos é um bom tempo. Curioso que ontem, do nada, do nada mesmo, fui à França. Fui via Google Maps, porque antes de me deitar, sem nenhuma razão aparente, me lembrei do número 36 da rua Daniel Bollon, e neste mundo de hoje é possível ir até a rua Daniel Bollon com dois cliques, e informando que o número desejado é o 36, bem, aí nem precisa procurar muito, a gente chega.

E cheguei à minha casa de Varennes-Vauzelles com esses dois cliques, algo que me impressiona muito e creio que me impressionará sempre — um dia me vi numa dessas imagens do Google, na frente do posto de gasolina que fica do lado de casa, é realmente impressionante.

Por anos essa casa foi um refúgio seguro, quase secreto, exceto, claro, para todos nós, jornalistas brasileiros que lá ficamos um dia. Eu, desde sempre. Alguns, de vez em quando. Teve um ano em que mais de 20 se empilharam pelos dois quartos e pela sala grande no andar de cima, mas o normal era ficarmos em três ou quatro. “Quase secreto” porque hoje não há mais lugares secretos no mundo, para o bem e para o mal. Neste caso, para o bem. Posso visitar minha casa quando quiser.

(Escrevi sobre o que ela significou para nós quando resolveram tirar Magny-Cours do calendário, em 2008. O texto está aqui, não sei bem por que com a data errada. Provável, pois, que me repita.)

Bem, eis a minha casa. A casa de Monsieur e Madame Benoit.

A última janela da direita, entreaberta, é a do meu quarto. As outras três são da sala. Ao lado da terceira, a mais próxima do quarto, fica a TV, junto de duas poltronas revestidas de veludo verde e uma mesa de centro de madeira escura. As duas primeiras janelas formam um outro ambiente, uma espécie de sala de estar, com um sofá que faz conjunto com as poltronas, outra mesa de centro, um aparador, um relógio de parede. No canto, a lareira que nunca usamos porque era sempre no verão que passávamos por lá. Na altura da segunda janela, do lado oposto, fica a cozinha. Fogão do lado direito, ladeado por uma pequena bancada sempre com uma cesta de frutas frescas sobre ela, a pia em frente, a mesa e a geladeira à esquerda. Os dois quartos ficam do lado direito da casa — só se vê a janela do meu, o outro é do lado oposto. Ali também, ao fundo, fica o banheiro, dividido em dois: a parte maior com banheira (só chuveirinho, isso era um saco), pia, armário e as coisas que devem ficar no banheiro; a menor, uma minúscula portinha, era um gabinete só para a privada. Aquela parte borrada da foto é a escada que leva à porta principal. Por que borraram essa imagem? Quem está ali?

Se ampliarem a foto, verão atrás do portão um cão galgo. A imagem foi capturada, informa o Google, em outubro de 2012. Não sei quantos anos vive um galgo. Mas havia um, sempre houve, na casa dos Benoit. E nós o chamávamos de Alesi. Assim como havia um gato siamês homônimo. Naturalmente, nenhum dos dois se chamava Alesi. A gente achava engraçado chamar um cachorro e um gato franceses de Alesi. Madame Benoit ria. Não sei se entendia a piada que não tinha graça nenhuma, não sei se sabia quem era Alesi.

Não sei se o galgo é o mesmo. Não sei se ainda está vivo. Não sei se o gato está vivo.

Não sei se Madame e Monsieur Benoit estão vivos.

Monsieur era Robert, muito velhinho, de grandes óculos, rosto vermelho e voz baixa, e de Madame Benoit — este talvez seja um dos maiores mistérios da minha vida — nunca soube o primeiro nome. Os dois se mudavam para a parte de baixo da casa, e lá ficavam durante o fim de semana do GP. Muito discretos e silenciosos, gentis e carinhosos, ela muito solícita sempre. Ano após ano, quando eu aparecia no portão na chegada, me recebia com um abraço e um beijo discretos, abria um sorriso onde se via um pequeno dente de ouro e, com seus olhinhos vivos e passos rápidos, desandava a passar as instruções em francês que nunca mudavam: combinávamos o lugar para deixar a chave, ela mostrava a geladeira cheia, onde estavam as toalhas, os lençóis, os sabonetes, os rolos de papel higiênico, e depois do segundo ano eu já nem telefonava mais para combinar; quinta-feira antes de corrida de Fórmula 1, apareciam os jornalistas brasileiros, barulhentos e animados, e perguntavam se estava tudo bem e por onde andava a jovem Céline, que conhecemos pequenininha, mas que depois de um tempo foi estudar fora, Céline hoje deve ter uns 35 anos, procurei no Facebook, há dezenas de Célines Benoit, a maioria na França, outras no Canadá, acho que jamais encontrarei Céline para perguntar de sua mãe, de seu pai, da casa.

Mas eu dizia que nunca soube seu primeiro nome, o que é inacreditável, porque tenho uma esquisita memória visual que gravou, para todo o sempre, o que está escrito num cartão de visitas, que encontrei agora há pouco: M. e Mme Robert Benoit.

“Encontrei” é modo de falar, supõe alguma casualidade, mas nada disso, eu sabia onde estava e sabia muito bem onde procurar. Tenho alguns porta-cartões que na mudança pensei em jogar fora, mas ao abrir a primeira cartela de um deles e me deparar com um cartão da Varig do Joachim Lentes, nosso homem em Frankfurt, olhei para aquilo e me perguntei: que direito você tem de jogar todo mundo que está nesse porta-cartões no lixo? Ali estavam o Lentes, o Cardão, o Artur Ferreira, o Albergo Franca, o Maurizio do La Lanterna, o Francisco Santos, a Niki que cobria todos os testes, o jornalista húngaro, o italiano, o russo, o francês, o inglês, o canadense, o alemão, o belga, e hotéis, pensões, bares, restaurantes, firmas, fábricas, gerentes, diretores, presidentes, pilotos, assessores de imprensa, quem um dia encontrar essas cartoneiras, palavra que acabo de criar, me informa a cobrinha vermelha sob ela, saberá exatamente por onde passei em minhas andanças pelo mundo, com quem conversei, com quem fiz negócios, de quem precisei dos serviços, para quem telefonei, os restaurantes onde comi, os bares onde bebi, os hotéis onde me hospedei, não, não tenho nenhum direito de jogar nada no lixo. E guardei tudo.

E como tenho uma estranha memória para pequenas coisas e pequenos objetos e pequenos fatos que a ninguém interessam, exceto a mim mesmo, lembrava perfeitamente que o cartão que os Benoit me deram em 1991 era o único em tamanho fora do padrão, o que na época me irritou um pouco porque tiver de dobrá-lo para guardar na cartoneira. A cobrinha vermelha me informa novamente que a palavra não existe; não precisa ficar repetindo isso o tempo todo, cobrinha vermelha, seguirei escrevendo cartoneira, é uma ótima palavra.

36, rue Daniel Bollon, M. e Mme Robert Benoit, descobertos em 1991 quando a FIA, ou sei lá quem, mandou para os jornalistas que cobriam F-1 uma lista das pessoas que se dispuseram a alugar suas casas para a semana do GP da França, já que em Magny-Cours não havia hotel para todo mundo. Para quase ninguém, na verdade. A Cris, no jornal, que falava bem francês, foi quem cuidou de tudo e parti para Paris com meu amigo Roberto Ravioli, dono de restaurante que de vez em quando ia ver uma corridas, apenas com um endereço e um telefone rabiscados num pedaço de papel.

Lendo o texto do Renan do Couto sobre aquele GP, pensei com meus botões que eu deveria me lembrar dele, afinal Mansell ganhou, com Prost em segundo e Senna em terceiro. Puta pódio, Williams, Ferrari e McLaren, como é que eu não lembrava?, mas do que mais me lembro daqueles tempos é das viagens, não das corridas, embora essa aí tenha me marcado especialmente por um troço que pouca gente sabe: o pretexto que a Benetton precisava para mandar Moreno embora dali a alguns meses, já que ele abandonou a prova por desgaste físico. Na época, para colocar Schumacher no time, o papo foi que Briatore recorreu a uma cláusula, aparentemente padrão em todos os contratos, que exigia que o contratado tivesse condições físicas de ser piloto de F-1. Assim que teve a chance de laçar o alemão, deu um pé em Moreno em Monza alegando que ele, fisicamente, não estava apto para guiar. Foi meio traumático para o brasileiro, mas ninguém pode negar que meu xará sabia o que estava fazendo.

Lembro também de ter ficado admirado com o autódromo moderníssimo e com a sala de imprensa com pequenos monitores de TV em cada posição das mesas de trabalho, uma para cada jornalista, dá para imaginar algo mais espetacular? Tenho fotos, me cobrem, elas estão em outro lugar, mas tenho. Naquela semana, por alguma razão, cheguei à França na segunda, ou na terça. Com tempo de sobra, acabei comprando uma máquina fotográfica espetacular, uma Canon cilíndrica que parecia um secador de cabelo, quando a gente abria a lente aparecia um flash redondo, quebrou faz anos, preciso arrumar. Tirei muitas fotos com as lindas meninas da sala de imprensa, elegantérrimas com seus terninhos verdes. Inesquecíveis.

(Puta que pariu, achei a loja onde comprei a câmera, em Nevers. É que essa avenida, Général de Gaulle, é meio que o eixo da cidade, que ficava no meio do caminho entre Varennes-Vauzelles e Magny-Cours. A maior cidade da região, inclusive. A avenida começa bem em frente à gare, então é fácil de encontrar tudo. O restaurante do bife na pedra, onde sempre jantávamos, também ficava aí.)

A gente chegou tão cedo à região, eu e o Ravioli, que demos até entrevista ao “Le Journal du Centre”, concedida no restaurante O’Galfino, na esquina da rue de Charleville com a Général de Gaulle. Se vocês entrarem no link da loja onde comprei a máquina fotográfica aí em cima, é só virar a imagem até aparecer a estação de trem e “descer” a rua até ela. O restaurante fica exatamente em frente. Na mesma rua, um pouco adiante, está até hoje a redação do jornal. Aliás, tenho o exemplar guardado. “Os primeiros jornalistas que chegaram para a corrida de Magny-Cours”, dizia o texto. Muito legal.

Os Benoit, o galgo, o gato, a casa, o endereço, o bife na pedra, a entrevista para o jornal, as TVs individuais na sala de imprensa, as meninas de terninho verde, a máquina fotográfica, é disso que me lembro. E lembro também da mala trocada em Paris, eu tinha acabado de comprar uma Samsonite azul-marinho novinha, saiu na esteira, peguei e fui embora, e ao chegar na casa dos Benoit estranhei a ausência do pequeno cadeado, abri o zíper e a primeira coisa que apareceu foi uma cueca Zorbinha, sou pequeno, mas não tanto, era a mala de um moleque que tinha viajado para encontrar a avó rica em Paris, tinha um cartão dentro, telefonei, encontrei a avó rica, peguei o endereço e despachei a mala  da estação de trem, porque ela ficou furiosa, achou que eu tinha roubado a mala, mas como teria roubado a mala se estava telefonando para devolver?, vai lá ver a do seu netinho, falei, e o netinho estava com a minha, claro, e quem pegou primeiro a de quem, também jamais saberei. Sei que só fui recuperar a mala quando voltei para Paris, fui buscar na casa da avó rica, que nem me recebeu na porta, mandou um serviçal entregar, e tive de comprar camisetas, meias, cuecas e outras coisas no Carrefour de Nevers, que deve estar no mesmíssimo lugar até hoje, porque na Europa as coisas estão onde sempre estiveram, e é por isso que gosto de lá.