Blog do Flavio Gomes
F-1

ENTRE OS LAGOS (11)

SÃO PAULO (odiei) – Lá embaixo eu disse que ia subir ao paddock, e que explicaria depois por quê “subir”, e não “descer”. A vida toda, em Interlagos, descemos ao paddock. Desde 1990 que a sala de imprensa neste autódromo ficava num lugar que sempre agradou a todo mundo que trabalha na F-1: exatamente sobre […]

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SÃO PAULO (odiei) – Lá embaixo eu disse que ia subir ao paddock, e que explicaria depois por quê “subir”, e não “descer”.

A vida toda, em Interlagos, descemos ao paddock. Desde 1990 que a sala de imprensa neste autódromo ficava num lugar que sempre agradou a todo mundo que trabalha na F-1: exatamente sobre os boxes.

Envidraçada, com janelas em toda sua extensão voltadas para as duas laterais do edifício dos boxes, tínhamos uma visão deliciosa deste circuito. De um lado, a reta dos boxes. Diante de nós ficavam as tribunas cobertas, as equipes na mureta dos boxes, as faixas dos torcedores, o público nas arquibancadas do Setor A. Víamos o diretor de prova dar a largada e a bandeirada. Víamos os pit stops sob nossos narizes.  Víamos a largada e a freada para o S do Senna.

[bannergoogle]Do outro lado da sala, as janelas se voltavam para a Reta Oposta, a descida do Lago, a entrada do Laranjinha, o S antigo, o Pinheirinho, o Bico de Pato, o Mergulho. Víamos tudo, absolutamente tudo. Quando saíamos para o terraço, que na verdade nada mais era que a plataforma onde desembocava a escada metálica que nos levava à sala — acanhada, de certa forma, sem luxo, com seus velhos aparelhos de ar-condicionado barulhentos, o piso emborrachado, o jeitão de coisa meio improvisada –, tínhamos a visão de tudo isso, mais o paddock inteiro, as pessoas passando lá embaixo, pilotos pra cá, mecânicos pra lá, meninas bonitas, homens vistosos, pneus, mesas, comidas, bebidas, a F-1 concentrada naquele corredor atrás dos boxes.

Era a sala de imprensa menos luxuosa do calendário.

E era a melhor de todas.

Só que, neste ano, tiraram a sala de imprensa de lá.

Provavelmente nosso antigo reduto virou camarote para alguma empresa alugar, levar convidados, encher o espaço de gente que não sabe nem quem está correndo, que não entende picas de nada, que vai lá só para comer e beber de graça. E deslocaram o espaço dos jornalistas para uma espécie de bunker, uma estrutura que fica abaixo do nível do paddock e que era usada como administração do autódromo. Nem sei como definir isso aqui. Não é um prédio (tem um andar), não é um porão (tem janelas), sei lá o que é. É um negócio que fica encravado no barranco da antiga Curva do Sol, para quem conhece o traçado antigo. De frente para o estacionamento. Com vista, vá lá, para a Reta Oposta.

Só que as janelas estão vedadas. Como sua situação era precária, vidros trincados, esquadrias de alumínio velhas e feiosas, resolveram colocar um tapume interno, preto fosco, que faz com que nos sintamos enfiados num buraco dentro da terra. Não se escuta nada. Nada se vê. Tem ar-condicionado e piso laminado no corredor, divisórias de repartição pública e carpete de escritório no chão. O grande diferencial é uma máquina de pipoca.

Uma máquina de pipoca.

Tudo que conseguiram fazer com essa decisão desastrosa de mudar a sala de imprensa foi 1) desagradar todos os jornalistas e 2) desconectar a imprensa do evento.

Ver a corrida aqui é a mesma coisa que estar num hotel, ou em casa, num boteco, num night club animado. Tendo TV, está bom. Aliás, melhor ainda se for em outro lugar, porque WiFi é grátis até em puteiro, e aqui custa 75 euros. Basta ligar o laptop numa rede, pegar a página de cronometragem, ligar a TV e abrir uma cerveja.

Lá em cima, estávamos com tudo sob nossos olhares. Opa, olha lá embaixo o Alonso chegando puto e batendo boca com o japonês da Honda! Corre lá na Sauber e veja o que aconteceu com o Nasr, que acabou de sair do carro esbravejando! Viu o Massa discutindo com o Verstappen na porta do banheiro? Porra, olha o que está entrando de gente lá no G, vai encher essa merda! Meu, a faixa xingando o Rosberg é muito engraçada, e o cara é de Piracicaba! Putz, começou a chover, está todo mundo colocando capa! Cara, o Hamilton passou aqui na frente com um barulho estranho demais no motor! Gente, tá fumando o carro do Vettel! Não acredito, o Pelé não tá dando a bandeirada! Caramba, olha lá o abraço do Button no pai, que coisa mais bonita! Puta que pariu, enroscou o pneu do Pérez no pit stop! Rapaz, a fila do macarrão na Ferrari tá dando a volta no quarteirão! O Bernie tá passando lá embaixo com a Gisele Bundchen!

[bannergoogle]Isso tudo e muito, muito mais, a gente via lá de cima dos boxes. Bastava colar na janela, sair no terraço, acender um cigarro e olhar. Ali, estávamos no GP. Fisicamente. Ali, sentíamos o GP. Na alma. E é absolutamente necessário que um jornalista se inunde com a alma do evento que está cobrindo. Caso contrário, nem precisa ir.

Ah, mas então por que você vai, já que é a mesma coisa que ficar em casa?

Virei sempre. Para entrevistar as pessoas, precisa estar aqui. Para ouvir as coletivas, encontrar os colegas, trocar ideias.

Mas, instalado neste buraco, percebo que o maior encanto de Interlagos se perdeu. Continuaremos a ouvir os pilotos — sempre com hora marcada –, a acompanhar as coletivas — idem –, a encontrar os colegas — cada vez em menor número –,  a trocar ideias — cada vez mais irrelevantes.

Mas, daqui, já não se vê mais nada, nada mais se observa, se nota, se repara, se percebe, se espreita, se contempla, se presencia, se testemunha.

Daqui, não se vive mais o GP.

Meninos e meninas da organização e da Prefeitura, que erro monumental vocês cometeram… Por que não ouvem as pessoas antes de fazer uma coisa dessas? Por que estragar algo tão essencial a um ofício cada vez mais mutilado e vilipendiado?

Daqui deste bunker de onde vos escrevo, meninos e meninas, simplesmente não me sinto em Interlagos. É a sensação mais esquisita do mundo.