Blog do Flavio Gomes
Futebol

VINTE ANOS

SÃO PAULO – Deu sete da noite. O programa acabava às oito e meia. O jogo era às nove e meia. Levantei, peguei minhas coisas e falei para o coordenador: vou embora. Mas não pode, como vou fazer? Não sei, vou embora. Chovia muito. Os repórteres diziam que a cidade estava parada. Chama alguém para […]

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SÃO PAULO – Deu sete da noite. O programa acabava às oito e meia. O jogo era às nove e meia. Levantei, peguei minhas coisas e falei para o coordenador: vou embora. Mas não pode, como vou fazer? Não sei, vou embora.

Chovia muito. Os repórteres diziam que a cidade estava parada. Chama alguém para terminar o jornal, falei. Vão te mandar embora, disse o coordenador. Não tem problema. Tchau.

E fui.

A cidade estava mesmo parada, debaixo d’água. Vesti a camisa, peguei o carrinho pequeno, vermelho e valente, e encarei todas as águas.

Cheguei. Vestia a camisa listrada. Vai ter de secar até domingo, foi tudo que pensei.

Alguns dias antes, no mesmo estádio. Vestia a camisa xadrez, de um título recente. O rosto pintado, quarta à noite. Território conhecido, mas estranho. A gente não jogava lá. Mandaram jogar. O polícia não deixou entrar com o rosto pintado. Duas faixas em cada face. Com a camisa xadrez, tirei a tinta. A camisa está manchada até hoje.

Ganhamos, não fui ao segundo jogo, o único que não fui. Perdemos, mas passamos. Inacreditável.

Alguns dias antes, no radinho. Precisava acontecer um monte de coisa que nunca acontece. Este perder, aquele empatar, a gente ganhar. Este perdeu, aquele empatou, ganhamos, longe de casa. Passamos. Inacreditável.

Alguns dias depois, segundo jogo no estádio que não era o nosso, ganhamos de novo. Tinha mais gente, não muito. Domingo seria em outra cidade, meu irmão morava lá, peguei o avião, fui.

Entrei no estádio gigante e a arquibancada tremia. A torcida cantava um hino de forma impressionante. Vencer, vencer, vencer, lutar, lutar, lutar.

Lutamos, lutamos, lutamos. Empatamos. Passamos. Inacreditável.

Alguns dias depois, debaixo de chuva. Muita, muita chuva. Camisas dos outros times. Um a zero, dois a zero. Inacreditável.

Inacreditável.

No dia seguinte, fui ao nosso estádio. Ia ter um avião. Quanto custa? Dá dois. Ingresso incluído? Sim. Dá dois. Liguei para o irmão caçula. Parece que tinha um vestibular. Foda-se o vestibular, moleque.

Domingo de manhã, o carrinho vermelho, está dando certo, vamos nele, aeroporto, rostos conhecidos, bandeiras das nossas cores, avião cheio, era só nosso. O piloto falou meu nome. O moleque ficou orgulhoso. Acho que ficou, sei lá.

Chegamos. No outro aeroporto, bandeiras vermelhas, rostos desconhecidos, mas eram todos nós.

Alguns ônibus, bandeiras, carão para fora da janela, porrada na lataria, carreata de vermelho atrás da gente. A camisa tinha secado. Na bolsa de couro cru, uma bandeira pequena, uma boina, um maço de cigarros, alguns dinheiros, um isqueiro. Churrasco, cerveja, caipirinha.

Chegou a hora, fomos. Os de vermelho não puderam ir junto. Se foram, foram escondidos. Entramos. Tudo azul. Gritos, berros, xingamentos, pedradas, mas não me lembro de ter tido medo.

Quatro minutos, um a zero. Tive medo. Aí sim, tive medo.

Mas o tempo passou, como sempre passa, e um a zero, um a zero, um a zero. Vai dar, falei. E comecei a chorar. Faltavam vinte e cinco minutos e saí para chorar. Fui para o lado de fora, sentei no chão, debaixo da arquibancada. Chorei até secar. Voltei.

Faltavam dez minutos. Nove, oito, sete, seis. Dois a zero. Senti uma dor no peito, um punhal cravado para matar. Na morte, não sei se se chora. Não chorei.

Apenas sentei e morri.