Blog do Flavio Gomes
F-1

VENDE A MÃE (3)

SÃO PAULO (diz que chove) – Para quem se interessa pelo tema — e não sei se são todos nesta cidade que, hoje, se dedica a hostilizar filósofas em aeroportos e a queimar bonecos como se fossem bruxas, coisa bem Middle Age Fashion –, mas ontem o alcaide paulistano conseguiu que a Câmara dos Vereadores aprovasse, […]

SÃO PAULO (diz que chove) – Para quem se interessa pelo tema — e não sei se são todos nesta cidade que, hoje, se dedica a hostilizar filósofas em aeroportos e a queimar bonecos como se fossem bruxas, coisa bem Middle Age Fashion –, mas ontem o alcaide paulistano conseguiu que a Câmara dos Vereadores aprovasse, com uma pressa danada, o projeto de privatização do autódromo de Interlagos. Projeto dos mais vagabundos, com todo respeito a quem o redigiu, pois que não fala em valores, condições, nada. E que não seguiu o rito necessário para aprovação — era preciso passar por alguma comissão que não saberei dizer qual é antes de ir a plenário, algo assim.

Segundo li no noticiário, o atento e sagaz prefeito considera que este fim de semana específico é ideal para encontrar potenciais interessados na área de quase um milhão de metros quadrados, já que tem Fórmula 1 e tal.

Tento compreender essa lógica. Alguém chegará aqui vindo de algum canto do país, ou de alguma gleba estrangeira, e ao ver tamanha exuberância e riqueza ficará encantado pelo local e decidirá, num repente: vou comprar esse negócio. Então, procurará saber de quem é, para arrematar o autódromo com tudo dentro — talvez por acreditar que junto com ele vêm alguns carros de corrida velozes e coloridos, além dos lagos e das tendas brancas.

Vereadora Sâmia: presentinho suspeito

É uma completa estupidez, mas atualmente as estupidezes têm conquistado espaço por aqui, e, portanto, que alguém nela creia não duvido. Curioso é que no dia seguinte, hoje, um vereador de seu próprio partido entrou com uma ação na Justiça e conseguiu uma liminar para suspender o processo todo. Igualmente curioso é que ontem, ou hoje, edis citadinos receberam envelopes contendo seis convites para assistir à corrida num camarote qualquer, como informou a vereadora Sâmia Bomfim, do PSOL, já avisando que devolveria tudo, perguntando qual o interesse do prefeito em mandar tal agrado aos legisladores. Posso imaginar.

O que me remete a outra historinha, eu que tirei este GP para contar histórias d’antanho, deixando de lado o dia a dia comezinho do automobilismo.

Em outros tempos, conseguir um convite ou uma credencial para uma corrida de Fórmula 1 era uma proeza, e qualquer coisa que se pendurasse no pescoço capaz de permitir a entrada num autódromo, um objeto de grande desejo.

Esta semana do GP do Brasil, em particular, se  transformava num inferno pelo súbito e numeroso surgimento de melhores amigos que, de alguma maneira, conseguiam meu telefone jamais inserido nas listas volumosas que chegavam aos lares todos os anos. Eles revelavam de pronto sua estudada intimidade com perguntas genéricas — e a família?, como estão seus pais?, casou mesmo?, continua na Globo?, sua filha entrou na faculdade?, ainda tá morando no Sumaré? — e, às minhas respostas igualmente genéricas ou desconcertantes — não tenho filha, nunca trabalhei na Globo, jamais morei no Sumaré –, despiam-se de qualquer escrúpulo e imploravam: me arruma um ingresso para a Fórmula 1?

Havia variáveis a esses pedidos feitos em tom de súplica, quase, como o infalível “me leva pra ajudar a segurar a câmera”, ao que eu retrucava que não tinha câmera alguma, eu trabalhava em rádio e jornal, não em TV, e desconfio que o bordão hoje muito popular na internet, “nunca te pedi nada”, tenha surgido naqueles tempos. Era a última e derradeira investida, sempre infrutífera, e os melhores amigos então passavam por uma súbita transformação, o tom de voz ao telefone tornava-se áspero e brusco, e eles desapareciam por um ano, para reaparecer no GP seguinte com a mesma e fracassada estratégia.

Já tem algum tempo que perdi esses melhores amigos, hoje desinteressados do que sucede num autódromo, eles já não se esforçam para conseguir meu telefone, o que é um alívio, reconheço. Mas, como dizia, no passado o assédio era grande, e não apenas aqui. No exterior, já tive de atravessar pequenas multidões para dentro de autódromos, que me encontravam da mesma maneira sabe-se lá como e antes que eu pudesse soletrar Zsolt Baumgartner se apresentavam na entrada de uma pista, ou de um hotel, ou de uma erma casa alugada nos cafundós da França, da Áustria ou da Inglaterra, e rogavam: me leva, por favor.

Não havia outra alternativa, eu não tinha coragem de expelir aquela gente com a falta de educação que me é peculiar às vezes, e acabava dando um jeito.

Há que se dizer que o acesso aos autódromos era menos requintado, não havia catracas a cada dez metros acionadas eletronicamente por chips que quando encostam nos sensores ligados nos computadores da FIA são capazes de ler nossa íris, ou delinear nossos narizes — ouvi dizer que narizes são como impressões digitais, não há dois iguais, mas acho que é mentira; seja como for, não meto meu nariz onde não sou chamado por cautela e precaução, depois de tomar conhecimento dessa particularidade nasal.

Certa feita, em Silverstone, de alguma forma uma chusma que de reduzida nada tinha, egressa de cursinhos de línguas em Londres, me encontrou empacado num congestionamento monumental para chegar ao circuito. Acho que conhecia uma ou duas meninas de outros carnavais, mas elas carregavam a tiracolo alguns vários colegas que, diante do convite que lhes fizeram num intervalo de aula qualquer, toparam despencar de trem para Northampton para tentar ver a corrida.

Estudantes que passam temporadas no exterior são, via de regra, duros e aventureiros, dispostos e otimistas, e quase sempre acontece alguma coisa que faz com que suas aspirações amalucadas deem certo.

No caso, eu era essa alguma coisa.

[bannergoogle]Meu carro era um diminuto VW Polo branco, volante do lado direito, paciência esgotada naquela estrada infernal para onde todos os bretões se dirigiam naquele dia, e tomei um susto quando bateram na janela do passageiro, porque ao olhar para o lado não vi ninguém onde deveria haver um motorista, e levei alguns segundos para lembrar que o motorista era eu, e estava do lado certo segundo a perspectiva inglesa, com os pés nos pedais e a mão esquerda na alavanca de câmbio. Era uma das moças, a quem reconheci sem saber direito o que pensar daquele insólito encontro tão longe de casa, mas nem precisei raciocinar demais sobre o inusitado da situação. Ela tratou de expor seus planos rapidamente, sem que eu tivesse a chance de discuti-los civilizadamente. Põe a gente pra dentro, ordenou.

As credenciais naquela época, estamos falando de 1991, acho, eram de papel. O controle era visual no portão principal do autódromo, e os britânicos são educados demais para acreditar que possam existir picaretas capazes de passar cinco ou seis vezes pelo mesmo local transportando, a cada leva, três ou quatro pessoas diferentes com as mesmas credenciais penduradas no pescoço.

Fui praticamente obrigado a fazer isso, convencido pelo histrionismo dos estudantes amigos da minha conhecida, que não aceitariam um “não” como resposta, armados do irrefutável argumento de que brasileiro é foda, sempre dá um jeito, você é demais, pô, leva só mais esse pessoal, cara, eu te leio sempre no “Estadão”, nunca trabalhei no “Estadão”, eu dizia, mas não me escutavam.

Foram mesmo muitas entradas e saídas, valendo-me de credenciais tomadas emprestadas de alguns amigos que acharam tudo divertido mas, no fundo, tinham mesmo era interesse em conhecer as jovens que, de acordo com minha descrição, até para justificar o ilícito, eram jovens e bonitas. Nunca puderam comprovar suas convicções, porém, porque assim que concluí a desova daquela turba nos gramados de Silverstone, nunca mais as vi.

Aliás, nunca mais, não. O compromisso com a verdade me leva a confessar que anos depois uma delas apareceu na Bélgica, mistério ainda maior, já que para a corrida de Spa quase sempre me escondia em alguma choupana sem endereço definido, mas mesmo assim a já citada moça surgiu numa estação de trem por perto, me encontrou através de um número de celular italiano que usei por algum tempo e ninguém tinha, ninguém mesmo, e tive de ir buscá-la para dar carona até a pista. Desta vez, porém, não foi possível contrabandeá-la para nenhum local muito próximo de onde se desenrolavam as atividades de pista, as credenciais já eram cartões magnéticos, e como o acesso ao autódromo se dava por uma trilha no meio da Floresta das Ardenas que em algum momento histórico deve ter sido um atalho para a Linha Maginot, foi lá que a desembarquei, sem saber ao certo se ela seria capaz de, um dia, escapar daquele oceano de olmos, faias, pinheiros e carvalhos.

Talvez esteja lá até hoje, caçando coelhos e comendo avelãs.