Blog do Flavio Gomes
F-1

NA CASA DO DÚ (7)

SÃO PAULO (acelerando o processo) – Seguimos com as lembranças dos meus 30 GPs do Brasil como jornalista. Foram dois em Jacarepaguá, e os demais aqui em Interlagos. Às lembranças esparsas, pois, sem muita preocupação com fatos enciclopédicos. São apenas memórias. Vamos para 1990. Por meses os fãs de F-1 no Brasil ficaram angustiados com […]

de90SÃO PAULO (acelerando o processo) – Seguimos com as lembranças dos meus 30 GPs do Brasil como jornalista. Foram dois em Jacarepaguá, e os demais aqui em Interlagos. Às lembranças esparsas, pois, sem muita preocupação com fatos enciclopédicos. São apenas memórias.

Vamos para 1990.

Por meses os fãs de F-1 no Brasil ficaram angustiados com a perspectiva de perder sua corrida. Depois da tragédia com Streiff em Jacarepaguá, a FIA riscou o país do mapa em 15 de outubro de 1989, na reunião anual em Paris que hoje equivale ao Conselho Mundial.

Mas graças a Piero Gancia, então presidente da CBA, a desgraça não se concretizou. O calendário de 1990 seria divulgado naquele dia sem a etapa brasileira. Eram favas contadas. No desespero, Gancia pegou o telefone e ligou para a prefeita Luiza Erundina, do PT, eleita no final de 1988. Arrancou dela a promessa de que faria o que fosse possível para levar a corrida para São Paulo. E comunicou a FIA das intenções da nossa alcaide paraibana porreta, que lhe deu um voto de confiança.

Ficou decidido, assim, que Interlagos voltaria a receber o GP e o Brasil permaneceria no Mundial. Mas, para isso, era necessária uma ampla reforma no autódromo, que incluía um novo traçado — os quase 8 km da pista original eram impraticáveis; além do mais a pista, naquela configuração, já não se encaixava mais nos padrões de segurança da FIA.

Erundina e Piero com o projeto original: era bem melhor

A toque de caixa Erundina viabilizou a parada financeiramente, oferecendo à Shell alguns terrenos ociosos na cidade para construção de postos de gasolina em troca do custo das obras, que seriam tocadas pela construtora Vega-Sopave. Isso hoje se chama PPP, parceria público-privada. A petista Erundina inaugurou a modalidade.

No dia 12 de novembro, menos de um mês depois da reunião de Paris, o contrato com a Shell foi assinado. No dia 16, tratores invadiram o circuito e começaram a derrubar tudo. Estudos foram feitos para encurtar a pista e Bernie Ecclestone, o dono da categoria, veio ao Brasil para acompanhar as obras. Era o dia 27 de novembro. Bernie não gostou da proposta apresentada por Chico Rosa, diretor do autódromo. Era muito boa: encurtava o traçado e preservava o original, criando um circuito alternativo para a F-1.

O chefão, então, ligou para Ayrton Senna e foi com ele a Interlagos. O piloto sugeriu o S que levaria seu nome no fim da Reta dos Boxes e a ligação com a antiga Reta Oposta, usando um pedaço da Curva do Sol. O martelo foi batido.

Menos de quatro meses depois, em 22 de março de 1990, uma quinta-feira, o primeiro carro saiu dos boxes e inaugurou o novo traçado de Interlagos. Eu estava na redação do jornal, angustiado, porque só entraria na cobertura no dia seguinte. Não sei qual foi o carro que abriu os trabalhos, mas lembro que chovia muito.

Foram duas sessões de reconhecimento — não havia simuladores, esses treinos eram necessários em pistas novas — e na segunda delas o asfalto já tinha secado. Foram nada menos do que 35 carros na pista, já que havia a pré-classificação e somente 26 largavam.

Senna foi o mais rápido do dia com 1min20s333. Hamilton fez a pole agora há pouco em 1min07s281. Na primeira versão pós-reforma, o circuito tinha 4.325 m. Hoje são oficialmente 4.309 m, após algumas modificações em raios de curva e correções que foram sendo feitas ao longo dos anos. Tive de checar alguns desses dados no acervo da “Folha”, não lembrava de tudo de cabeça.

A ministra Zelia: tomou nosso dinheiro e ninguém entendeu nada

Minhas maiores lembranças de 1990, para além da alegria de ver uma corrida quase no quintal de casa, remetem ao momento que o Brasil vivia na política e na economia. No ano anterior, Fernando Collor de Mello vencera a primeira eleição presidencial após o fim da ditadura militar, batendo Lula no segundo turno.

Na virada do ano, para acabar com a inflação que a imprensa chamava de “galopante”, sua superministra Zelia Cardoso de Mello confiscou a grana de todo mundo, congelou a poupança e liberou para saque apenas 50 mil cruzados novos.

Não sei direito o que dava para comprar com isso. Sei que eu ia me casar, estava com um apartamento engatilhado, esperando apenas a documentação, vendi meu Fiat Uno SX preto lindo de morrer e juntei metade do que precisava para comprar o dito cujo. Mas como a inflação era desesperadora, o dinheiro ficava no banco em contas remuneradas, que rendiam alguma coisa diariamente. Estando no banco, não escapou da Zelia, que era prima do presidente.

Com o confisco, tive de cancelar a compra do apartamento. Fiquei sem ter onde morar e sem carro — apenas um DKW 1962 verde que tinha comprado dois anos antes, meu primeiro antiguinho — está comigo até hoje. Os preços de todos os produtos despencaram, já que o dinheiro sumiu da praça e ninguém tinha picas na carteira, nem no banco.

Era até engenhoso, o plano, mas evidentemente tinha dias contados e não daria certo — como não deu. Saquei meus 50 mil cruzados novos e comprei uma geladeira da Brastemp, uma sala de estar que me disseram que era de mogno com mesa, seis cadeiras e cristaleira (não era de mogno, me enganaram), dois sofás e duas poltronas numa loja chique na Augusta, uma mesa de centro e uma cama na Teodoro Sampaio, e uma TV Telefunken muito bonita, que tinha mostrador digital e duas caixinhas de som, num pequeno shopping da avenida Paulista. Não deu para a máquina de lavar, que eu acabaria ganhando do meu tio de presente.

Comprava as coisas e mandava guardar, porque não tinha casa. No fim fomos morar de aluguel alguns meses depois e passei dias telefonando para as lojas para informar o endereço de entrega dos bens que constituíam a totalidade do meu patrimônio. Zélia durou não sei quanto tempo no ministério e acabaria se casando com Chico Anysio, o maior humorista do país. O Brasil não era para amadores, não…

Balestre: enfrentando a massa

Em março, nos dias da corrida, os estrangeiros que chegaram aqui não entenderam nada. Não conseguiam trocar dólares por cruzados novos nas casas de câmbio porque simplesmente não havia papel moeda circulando. Assim, pagavam tudo em dólar, mesmo, por cotações inventadas na hora pelos fornecedores ou prestadores de serviços. Jean-Marie Balestre, presidente da FIA, chegou a ameaçar o GP de cancelamento um dia antes do primeiro treino, alegando que não sabia de nada do que estava acontecendo por aqui. No fim, desistiu. E no sábado estava em São Paulo. No domingo, todo e preto, foi para o grid e enfrentou “a massa em delírio”, como descreveu, nas arquibancadas. A torcida atirou latinhas, bananas e maçãs mordidas no dirigente.

É do que me lembro. Um caos. Para melhorar (adoro caos), na sexta-feira da corrida Collor mandou a Polícia Federal invadir a “Folha” atrás de supostas irregularidades nas cobranças de anúncios — acho que tinha a ver com a moeda utilizada, cruzeiros em vez de cruzados novos; gente, o Brasil era uma verdadeira zona, vocês não têm ideia.

Collor estava às turras com o jornal, que comprou a briga e chegou a chamá-lo de “Mussolini do Terceiro Mundo”. Eu vibrava. Como ele iria à corrida domingo entregar os troféus, sugeri — e se bem me lembro a sugestão foi aceita — publicarmos uma foto, na edição daquele dia, do carniceiro Emílio Garrastazu Médici dando a taça a Emerson Fittipaldi no GP extra-campeonato disputado em Brasília em 1974. A comparação com o ditador de farda e coturno era evidente. E fomos além: no dia seguinte, como Senna não ganhou, chamamos o cara de “pé-frio” e o comparamos a Hitler, que nos Jogos de 1936, em Berlim, achava que entregaria medalhas aos seus atletas arianos no estádio Olímpico e foi obrigado a engolir Jesse Owens, um negro americano, ganhando tudo.

Senna com o bico esmigalhado: batida besta com Nakajima

Da corrida, bem… Senna era para ganhar, mas acabou batendo em Satoru Nakajima quando liderava fácil e ia colocar uma volta no japonês depois da metade da prova. Perdeu o bico, teve de parar nos boxes para trocar e não conseguiu se recuperar. Seu inimigo Prost, já na Ferrari, ganhou — foi sua sexta vitória no Brasil. Ayrton terminou em terceiro. Collor, no pódio, cumprimentou os três, mas não entregou os troféus. Acho que não entendeu direito o protocolo da cerimônia. Também não tocaram o hino da França. O presidente valentão, depois de tudo terminado, deu uma volta pela pista num Opala Comodoro. Os que ainda estavam na arquibancada gritavam para ele “eu, eu, eu, o povo se fodeu!”.

Assim foi 1990. Acho que me empolguei. Não sei se vou ter tempo para lembrar dos outros todos, mas tentarei.