Blog do Flavio Gomes
Imprensa

ROSSI

RIO – “A perna de um corisco de ébano, a cor mais entranhadamente corintiana, deu ao Corinthians seu vigésimo título de campeão paulista aos 94 minutos e 10 segundos do jogo final contra o Guarani, disputado ontem em Campinas, 100 km a noroeste de São Paulo. O dono da perna de ébano chama-se Paulo Sergio […]

rossiclovis
Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

RIO – “A perna de um corisco de ébano, a cor mais entranhadamente corintiana, deu ao Corinthians seu vigésimo título de campeão paulista aos 94 minutos e 10 segundos do jogo final contra o Guarani, disputado ontem em Campinas, 100 km a noroeste de São Paulo.

O dono da perna de ébano chama-se Paulo Sergio Rosa, de 19 anos, atende pelo apelido de Viola, usa a camisa número 9 e fez o gol no único lance em que conseguiu levar perigo ao gol defendido por Sérgio Neri.”

Os dois primeiros parágrafos do texto que abriu o caderno de Esportes da “Folha” na edição de segunda-feira, 1º de agosto de 1988, diziam basicamente tudo que seria preciso para quem quisesse saber o que tinha acontecido na tarde/noite da véspera: o quê (final do Campeonato Paulista, título do Corinthians), quando (ontem, aos 94 minutos e 10 segundos de jogo — na prorrogação, pois), quem (Paulo Sergio Rosa, de alcunha Viola), onde (Campinas, 100 km a noroeste de São Paulo, padrão do jornal na época) e como (no único lance de perigo contra o gol do Guarani).

Assinou o texto o repórter Clóvis Rossi, enviado especial a Campinas. Ele foi redigido numa velha Remington cinza e transmitido por fax à Redação em São Paulo a partir de uma salinha da sucursal do jornal em Campinas, onde montamos uma operação de guerra para cobrir aquela final. Na capital, seria entregue ao pessoal da digitação e, então, inserido no precário sistema informatizado da “Folha”, com seus computadores de tela de fósforo que viviam dando pau, fazendo com que gritássemos desesperados pela Maria Antônia — uma mulher muito magra de óculos fundo de garrafa e detentora de uma calma desconcertante, que resolvia todos os problemas que aquele novo mundo nos apresentava. Perdíamos textos, ela encontrava. O computador travava, ela destravava. Caía a energia, ela recuperava tudo que havia sumido.

Eu tinha 24 anos e era editor-assistente de Esportes. Tinha entrado na “Folha” pouco menos de dois anos antes, como repórter da editoria de Educação e Ciência. Em dezembro de 1987, fui para Esportes. Um mês depois, recebi um convite de “Placar” e saí do jornal para realizar o que julgava ser meu sonho, trabalhar na melhor — e única — revista de futebol do país. Fiquei na Abril por exatos 30 dias e voltei para a Barão de Limeira, cuja insanidade atendia às minhas necessidades diárias de angústia e alívio.

Naquele domingo de julho fui encarregado por meu editor, Nilson Camargo, de coordenar a equipe que iria cobrir a decisão no Brinco de Ouro. O jornal resolveu apostar naquela final. Embarcamos nas viaturas da “Folha” eu, Rossi, Matinas Suzuki Jr., Fernando Gabeira, Bob Fernandes, Fernando Santos, Fernando Galvão de França, George Alonso, Mario Andrada e Silva, Andréa Fornes, os fotógrafos Sérgio Tomisaki, Jorge Araújo, Wilson Melo, Fernando Santos (homônimo do repórter) e dois convidados que também redigiriam textos para aquela edição: o publicitário Washington Olivetto, notório corintiano, e o maestro Benito Juarez, representando a torcida bugrina.

Foram nove páginas sobre o jogo no caderno esportivo do dia seguinte. Detalhe que talvez ninguém tenha percebido na época, mas proposital, foi a ausência da bola em todas as fotos publicadas. Decidimos investir nas imagens fechadas, expressões dos jogadores, o drama humano que uma partida de futebol encerra. Cada um tinha sua pauta. A mim cabia fazer com que fossem cumpridas e seguir rigorosamente o planejado. Gabeira, por exemplo, assistiu ao jogo no meio da torcida do Corinthians com uma máquina fotográfica a tiracolo. Bob faria o perfil do personagem da partida. Matinas, um texto comentado sobre o jogo. Rossi, o “abre” e, pasmem, os vestiários do Guarani.

Havia apenas uma máquina de fax na sucursal. Eu tinha o “espelho” da edição — as páginas “riscadas”, com os espaços reservados para cada texto, foto e arte — e, como um feitor, ficava gritando tamanhos e horários para aquela turma barulhenta, arrancando laudas das máquinas de escrever e colocando-as pessoalmente no fax, com um telefone pendurado em contato permanente com a Redação para confirmar o recebimento das matérias que não poderiam atrasar nem fodendo, já que vivíamos sob a ditadura do industrial. Jornal tem hora para fechar, rodar e distribuir. Nenhuma desculpa é aceita se as coisas não chegarem na hora.

Rossi tinha 45 anos. Era, já, o principal repórter da “Folha”, estrela das coberturas políticas e internacionais, figura de proa do único jornal do mundo onde eu achava que valia a pena trabalhar naqueles tempos. Convivia com reis, príncipes, primeiros-ministros, presidentes, deputados, senadores, mas gostava mesmo era de futebol.

Eu tinha um problema para falar com ele: os 40 centímetros a menos que quase me davam torcicolo quando conversávamos nos corredores imundos e enfumaçados da Redação, já que o cara tinha dois metros de altura. E outros tantos de generosidade e alegria com a profissão que, enfim, compartilhávamos.

Quando fui mandado embora da “Folha”, o jornal o escalou para cobrir o GP de Mônaco, corrida seguinte à da morte de Ayrton Senna. Ele me ligou para pedir um adaptador para conectar seu laptop às tomadas de telefone da França, que eram diferentes das brasileiras. Eu tinha uma coleção desses adaptadores, porque cada país adotava um modelo diferente. Meses depois, designado para cobrir os primeiros movimentos de Nelson Mandela como presidente eleito da África do Sul, me telefonou de novo para pedir a mesma coisa. “Flavinho, na África do Sul é parecido com a Inglaterra, né? Você me arruma um adaptador? Aliás, dois. De telefone e de eletricidade.” Arrumei, e horas depois um motoqueiro estava na porta do meu prédio para levar meus adaptadores para o Rossi.

Graças àqueles pedidos singelos de um dos maiores jornalistas do país pude perceber que minha saída da “Folha” não devia ser encarada como um drama pessoal intransponível, e que a vida tinha de seguir porque assim é que é. Graças àqueles pedidos singelos compreendi que nossa única missão era fazer com que nossos textos chegassem aos leitores, fossem eles do maior diário do país, de uma revista semanal, dos pequenos jornais com quem eu já estava negociando para continuar cobrindo Fórmula 1 pela minha pequenina agência. E que não havia tempo para lamentos.

A última vez que falei com Clóvis Rossi foi no final de 2010. Eu tinha comprado o apartamento onde moro em São Paulo e quando fui fazer a escritura descobri que seu primeiro proprietário tinha sido ele, em 1970. Mandei um e-mail cuja resposta, como sempre, chegou rápida como um raio. Rossi escrevia depressa, sem erros, com enorme precisão e um estilo austero e objetivo. E sempre no tamanho certo, não era preciso cortar nada. Um dia ele me disse que fazia assim porque não confiava em gente que cortava textos “pelo pé”, como a gente dizia — na pressa, fechadores de jornal têm o terrível hábito de cortar as últimas linhas, o “pé” do texto, para não atrasar a conclusão da edição. Contei a ele que tinha comprado seu apartamento e perguntei se algum evento histórico acontecera no 11º andar daquele prédio metido a modernista, todo de concreto aparente, erguido pela Forma & Espaço em oito meses — a construtora fazia sucesso em São Paulo com seus edifícios modulares feitos com placas pré-fabricadas. Queria saber se ele tinha escondido algum subversivo, se tinha servido como aparelho da VAR-Palmares, se tinha recebido Ulysses Guimarães para um jantar, algo assim. “Nada”, me disse. “Quem sabe agora que você vai morar aí.”

Clóvis Rossi morreu na madrugada de hoje, aos 76 anos, sem nunca ter me devolvido os adaptadores da França e da África do Sul. E sem que eu pudesse ter devolvido a ele um pouco do que me ensinou.