Blog do Flavio Gomes
F-1

LADA É VIDA (3): BEM FEITO

RIO (que aprendam) – Enquanto a Ferrari insistir em manipular resultados, enquanto se sentir maior que o esporte, vai se estrepar eternamente. Esse é o resumo do que penso depois de mais uma lição, das mais didáticas, que o esporte aplicou na equipe italiana hoje. Esporte exige um certo sentido de justiça, competição e liberdade […]

Vettel quebra, estratégia vai para o vinagre, Hamilton vence: Ferrari só faz bobagem

RIO (que aprendam) – Enquanto a Ferrari insistir em manipular resultados, enquanto se sentir maior que o esporte, vai se estrepar eternamente. Esse é o resumo do que penso depois de mais uma lição, das mais didáticas, que o esporte aplicou na equipe italiana hoje.

Esporte exige um certo sentido de justiça, competição e liberdade criativa. Qualquer esporte. Reprimir talentos e vontades em nome de “algo maior” — no caso, a equipe — muitas vezes dá em derrota.

Como deu em Sóchi. A começar pelo acordo ridículo da largada. Tudo combinado para passar Hamilton?

Nossa, que brilhante.

Só que não.

Quase todo mundo que estava do lado par do grid ficou um pouco para trás. Também pelo fato de ter pneus macios contra médios da Mercedes, era muito provável que Vettel superasse o inglês sem precisar de pacto nenhum, como escrevi ontem:

Com mais aderência graças aos pneus macios, acho — apenas acho — que Leclerc mantém a ponta na largada. E Vettel, em terceiro, também com os compostos mais moles, vai tentar o bote para cima de Lewis. Uma nova dobradinha da Ferrari me parece um resultado bem possível amanhã. 

Se até eu, do outro lado do planeta, imaginava que Vettel poderia pular na frente de Hamilton na largada, por que é que a Ferrari foi traçar uma estratégia tão mirabolante para os primeiros metros de uma corrida de 53 voltas?

E vamos combinar: o conchavo não foi feito com a Mercedes. Sebastian largou bem e passou Hamilton por conta própria partindo como um foguete, e não graças ao vácuo do monegasco. Este foi útil para Sebastian se aproximar do companheiro, isso sim.

E como chegou rápido, Charlinho não se defendeu. Era o que tinha sido acertado, para posicionar os dois à frente da Mercedes, e depois as posições seriam trocadas.

Nossa, que brilhante.

Só que não.

Porque, na frente, Vettel começa a voar e Leclerc não acompanha. Dá a impressão de ficar só esperando a ordem chegar pelo rádio — afinal, estava tudo combinadíssimo. Houve até um breve safety-car na primeira volta para ajudar — batida coletiva envolvendo Grojã, Ricardão e Tonho da Lua. A relargada aconteceu na volta 3, e Vettel foi embora de novo.

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Quem elaborou esse plano extraordinário, acredito, não previu que Sebastian poderia desgarrar. E quando isso aconteceu, fazer o quê? Mandar o cara brecar o carro ridiculamente para o companheiro passar trazendo Hamilton junto? Só para executar o estratagema tão fabulosamente urdido diante de computadores cintilantes com terabytes de memória capazes de simular até a influência do pouso de uma mariposa na bandeira da Rússia tremulando ao lado da pista na pressão aerodinâmica exercida sobre um defletor avariado no carro de Kvyat que por sua vez poderia alterar ligeiramente a velocidade de rotação do planeta e afetar o regime dos ventos de monções na Ásia Ocidental? 

Não. Plano C. Ou seja: trocamos de modo mais seguro, no pit stop. A gente atrasa a parada do alemão, fode a corrida dele e você passa, Charlinho. Undercut no companheiro de equipe, lembra? Feio, né? Pois é. Um dia da caça, outro do caçador. Na Ferrari é assim. Um dia a gente te fode, no outro a gente fode seu companheiro. E vamos levando a vida fodendo todo mundo.

E assim foi.

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Leclerc, mais de 4s atrás de Vettel, para na volta 23 e coloca pneus médios. Tião vem quatro voltas depois e a vantagem que construíra vai para o vinagre balsâmico. Ele sai atrás do monegasco, 3s atrás.

Apesar de tudo, não foram registradas reclamações do alemão. Pelo contrário. No rádio, ainda no começo da prova, quando a Ferrari pede para ele deixar Leclerc passar, Vettel responde: “Manda ele chegar mais perto”. Não se recusa a cumprir o que havia sido combinado, pois. Apenas entende que, naquele momento, ou o parceiro se aproximava, ou seria uma estupidez tirar o pé e perder tempo apenas para respeitar o trato naquele exato momento. Poderiam fazê-lo mais tarde, sem dar mole para Hamilton. O tal plano C: no pit stop troca.

Trocaram. Mas o destino é caprichoso, às vezes. E traz o castigo a cavalo — rampante, no caso. Vettel sai dos boxes atrás, como engendrado pelos gênios ferraristas, mas imediatamente perde potência. A equipe manda parar o carro, ele para. Deu pane num dos motores elétricos. O automóvel reluzente fica ao lado da pista, precisa ser removido pelos fiscais e, por isso, o safety-car virtual é acionado.

Graças ao safety-car virtual, Mercedes assume as duas primeiras posições: dobradinha redentora

E Hamilton, que tinha assumido a liderança porque ainda não fizera o pit stop, aproveita o ensejo, corre para os boxes e consegue trocar os pneus sem perder a ponta. Leclerc ainda perderia o segundo lugar ao parar novamente para colocar pneus macios quando o safety-car entrou após a batida de Russell, na volta 30. Tentativa inútil. Ao sair dos boxes, atrás de Bottas, não conseguiu atacar o finlandês, apesar da borracha nova. O que nos leva à lícita pergunta: ele não atacou Vettel no início porque estava esperando a ordem do time ou porque não conseguia, mesmo?

E assim, graças a essa sequência de disparates, a Ferrari ficou chupando o dedo por não saber dizer aos seus pilotos, sejam eles quais forem: vão lá, corram e sejam felizes.

Bem feito.

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Depois da corrida, me pareceu que a Ferrari ficou um pouco envergonhada do que fez. Até Leclerc, em algumas entrevistas, depois do tradicional “precisamos ver o que aconteceu e vamos discutir a situação com a equipe”, colocou panos quentes na ocorrência e falou que “todos respeitaram o que tinha sido combinado”. “Dei o vácuo para Sebastian, ele tinha de devolver a posição e devolveu depois, no pit stop. Foi isso.” Vettel fez mistério sobre o que havia sido previamente estabelecido. “Tínhamos um acordo, talvez tenha faltado algum detalhe, mas prefiro não falar sobre isso abertamente.”

(A melhor frase de Tião, na verdade, foi dita assim que seu motor quebrou. “Tragam de volta os malditos V12”, praguejou. Ele detesta os motores híbridos.)

Depois de três derrotas seguidas para a Ferrari, a dobradinha deu um respiro para a Mercedes, que encara um final de temporada sem ter o melhor carro do grid. Foi a nona vitória de Hamilton no ano, 82ª na carreira. Na Rússia, ganhou pela quarta vez. O circuito de Sóchi, aliás, só viu vitórias da Mercedes em sua curta história, que começou em 2014. 

Hamilton e o troféu: 82 vitórias na carreira, 9 no ano, 4 na Rússia

A corrida foi interessante por conta das asneiras da Ferrari e também por atuações muito boas de pilotos como Albon, que saiu de último para terminar em quinto — garantindo de vez sua permanência na Red Bull –, Sainz Jr., o sexto, Pérez, o sétimo, e até Magnussen — oitavo na pista, caindo para nono depois de uma punição de 5s que chamou de “idiota”; ele saiu da pista no fim e voltou sem percorrer o trajeto recomendado pela direção de prova.

Pode-se dizer, também, que o novo queridinho da F-1 decepcionou nas últimas 20 voltas da prova. Ele aproveitou um safety-car logo depois do abandono de Vettel — entre as voltas 29 e 33, depois de batida de Russell — para colocar pneus macios e tentar o ataque à dupla prateada. Teria tempo para isso. Na relargada, estava a 1s de Bottas. Abriu a asa várias vezes, mas não foi incisivo o bastante para incomodar o gelado finlandês. Faltou um pouco de sangue nos olhos. Terminou em terceiro.

Verstappinho, o quarto, foi outro que não encantou. Começou bem a corrida ganhando boas posições a partir do nono lugar no grid, mas acomodou-se assim que estacionou atrás dos três primeiros, sem tentar nada de muito excepcional.

Lewis pulou para 322 pontos na classificação, aumentando ainda mais sua vantagem para Bottas, que segurou bem Leclerc no final da corrida e agora tem 249. A diferença subiu para 73 pontos. Charlinho se isolou em terceiro com 215.

Eu gostaria de dizer algo na linha “espero que depois dessa a Ferrari tenha aprendido a lição e libere seus meninos para a disputa sem querer agir sobre os desígnios do porvir”, mas é inútil. Historicamente, a equipe se coloca como uma divindade comandada diretamente do latíbulo pelo altíssimo em pessoa, e seus vassalos que tratem de aquiescer diante dos arranjos deliberados em outra dimensão que não é a humana.

Para mim, ateu praticante, a dimensão onde o time trama seus ardis tem sido mais equina que qualquer outra coisa.

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