Blog do Flavio Gomes
Futebol

LUSA, 100

Gosto de te ver em silêncio, quando passo pela Marginal à noite. Indo ou vindo. Gosto da placidez das tuas torres apagadas, das arquibancadas escuras, do vento balançando de leve as copas das árvores em teu redor. Gosto de te ver do alto, do avião, quando ele faz a curva pelo norte. O retângulo verde, […]

Gosto de te ver em silêncio, quando passo pela Marginal à noite. Indo ou vindo. Gosto da placidez das tuas torres apagadas, das arquibancadas escuras, do vento balançando de leve as copas das árvores em teu redor.

Gosto de te ver do alto, do avião, quando ele faz a curva pelo norte. O retângulo verde, o anel de concreto que parece inacabado, as traves adormecidas, as redes recolhidas, o campo de areia — já não está, mas em mim está –, as alamedas, os bancos de cimento nas alamedas, as gentes pelas alamedas. Do alto, são lindas as alamedas.

Gosto de parar o carro sempre no mesmo lugar. Gosto de chegar um pouco mais cedo e dar cavalo-de-pau no campo de areia. Gosto de ver os meninos, antes de entrarmos pelo portão ao lado dos vestiários, comendo bolinho de bacalhau encharcado no azeite. Deixo os dois no balcão da estranha construção circular, me afasto um pouco, acendo um cigarro, encosto numa das pequenas mesas redondas de alvenaria e me vejo neles, anos atrás. Camiseta vermelha, moletom amarrado à cintura. Altivos, solenes.

Gostava de descer na Ponte Pequena, caminhar sob a linha do metrô até a Cruzeiro do Sul, me embrenhar pelo terreno baldio ao lado da Escola Técnica Federal tomando cuidado para não sujar demais a calça branca e chegar ao clube pela rua da Piscina, 33.

Gostava de entrar pelo portão ao lado da pequena loja que vendia chaveiros, canecas, camisas, cachecóis, bonés, agasalhos, canetas, broches, bonecos. Gostava de comprar um saco de tremoço do homem que ficava do lado esquerdo da escadaria, gostava de subir seus degraus e parar no topo, o campo à minha frente, prescrutar o cenário, calcular quantas pessoas, escolher onde ficar.

Gostava de como era antes, bem antes, de mal ver o que acontecia por ficar lá embaixo, sob as bandeiras, nos estranhos bancos de cimento, como passei a gostar de depois, bem depois, de ver tudo que acontecia lá de cima, bem do alto, as perninhas curtas dos meninos mais se divertindo do que penando para escalar o que, para eles, devia parecer uma pirâmide com vista para o Nilo, o mundo e a vida aos seus pés assim que a escalada se consumava.

Gosto de perceber como depois, com o passar dos anos, encontramos nosso lugar mais ou menos cativo, à meia altura, a uma distância apropriada para ir e vir, ver e enxergar, gritar e escutar, gritar e se fazer ouvir.

Gostava de dizer a eles, e dizia sempre, que ali eles podiam gritar o que quisessem, e — isso era muito importante — quem estivesse lá dentro iria ouvir. Que podiam xingar à vontade e com sinceridade, que lá de dentro seus algozes se sentiriam atingidos. E que, nisso, éramos diferentes; aquilo era a vida real.

Gosto de olhar para trás e lembrar o que já vivemos ali. O trânsito para chegar, o mais novo sugere ir pelo Anhangabaú, o mais velho por trás da Sé, não há aplicativos a nos informar quanto tempo levaremos, é a experiência que nos diz a que hora devemos sair e calcula a hora de chegar, a ansiedade aumentando ao ver as torres iluminadas, a dúvida permanente sobre o portão que estará aberto — durante a semana, à noite, sempre foi tudo muito tenso e apressado. Nos sábados e domingos, à tarde, a pressa não era nossa inimiga, ao contrário, o ritual incluía o restaurante cheio de fotografias e camisetas ali do lado, ou a taverna já em nossos domínios, o bacalhau com batatas ao murro, os rostos familiares, os acenos dos conhecidos, a sangria na mesa que no fim eu tomava sozinho — eles cresceram, mas ainda preservam certo pudor e pedem refrigerantes.

Gostava de soltá-los lá dentro subindo e descendo degraus quando ainda não entendiam direito o que faziam naquele lugar cada vez mais íntimo, sem medo de perdê-los porque alguém sempre estaria de olho, como gosto de soltá-los hoje, a intimidade com o lugar consolidada, porque é de seu irrestrito direito viver exatamente o que vivi à minha maneira, e eles têm de viver aquele lugar como quiserem.

Gosto de cumprimentar as pessoas, de esbravejar, vociferar, sonhar, berrar, pular, abraçar, beijar, de elevar à condição de semideuses os que lá dentro nos representam de verde e vermelho, sejam quem forem.

Gosto das vitórias e aceito as derrotas, gosto de ligar o rádio no carro e ouvir as explicações, de renovar as esperanças, de voltar sempre pelo mesmo caminho, fazer as contas, reviver um lance, lamentar a bola que não entrou e dizer a eles: é assim, a vida é assim, a gente precisa aprender a ganhar e perder, quando é o próximo´?, onde é o próximo?

Gosto de saber que o que mais me une aos meninos é você, Portuguesa. Gosto de levar sua cruz no peito. Você nos apresentou o amor.