Blog do Flavio Gomes
Gomes

RIO

Rio, despeço-me de ti olhando o mar pela janela e lembrando da primeira pizza, muito ruim, no hotel onde morei por um mês (terei problemas com as pizzas), mas foi só um mês, porque depois me instalei onde dava para ver o mar e o pôr-do-sol, e a pizza lá embaixo, que já fechou, era […]

Rio,

despeço-me de ti olhando o mar pela janela e lembrando da primeira pizza, muito ruim, no hotel onde morei por um mês (terei problemas com as pizzas), mas foi só um mês, porque depois me instalei onde dava para ver o mar e o pôr-do-sol, e a pizza lá embaixo, que já fechou, era boa, e passei a acordar todos os dias com o cara da kombi-geladeira-velha-ar-condicionado-velho, então comprei uma bicicleta com pneus brancos e com ela atravessava a balsa todos os dias para ir trabalhar olhando o mar e escutando a rádio paradiso de berlim, achtundneunzig two (por que não é zwei?, preciso aprender alemão), no meu fone sem fio, e então um dia precisei tirar meu passaporte e fui com a bicicleta dos pneus brancos ao shopping e no meio da ponte os moleques agarraram o bagageiro e falaram alguma coisa e me assustei e fui em frente sem olhar para trás e quando tive de ir buscar o passaporte fiz outro caminho e quase tomei um tombo enquanto dava a volta num lago porque tinha muita areia na calçada, e então na casa nova no segundo dia desci com o cachorro e levei no lugar onde ficam os cachorros, e a moça com seu cachorro contou que estava se mudando para o prédio do lado, olha só, porque se separou do marido que era músico, mas ela sustentava porque o pai dela era militar e morreu e deixou os apartamentos e mais umas salas em campo grande e você sabe que eu não trabalho, né?, não, eu não sabia, pois é, e no outro dia outra moça no elevador com seu cachorro falou a mesma coisa, você sabe que eu não trabalho, né?, e aquilo me causou a falsa sensação de que ninguém trabalhava aqui, ou ao menos as moças com os cachorros do meu prédio, e é claro que isso não era verdade, todo dia às oito da manhã a voz metálica da kombi-fogão-velho-ar-condicionado-velho me lembrava que todos trabalhavam e desde cedo, porque às oito da manhã se a kombi-microondas-velho-ar-condicionado-velho não me acordava, me acordavam os moços cortando a grama e assoprando as folhas no condomínio do outro lado da rua, e assim foram os primeiros meses, bicicleta de pneus brancos, balsa, calçadão da praia, rádio paradiso, musik zum verwöhnen, vou estudar alemão, e então entrei na escola de alemão e comprei os livros, mas não fazia as lições de casa, então não adiantou muita coisa, mas duas vezes por semana pegava a bicicleta de pneus brancos e ia ao shopping estudar alemão, aqui onde morei nesses anos tudo fica dentro de shoppings, gardens, squares, villages, malls, tem até uma estátua da liberdade, downtown, city, aí fui ao grande mercado, guanabara, tudo por você, vi na TV, café pimpinela nove e noventa e oito, óleo de soja leve ou soya sete e noventa e nove, e embaixo do mercado tinha tudo para comprar, pratos, garfos, facas, copos, panelas, jarra de plástico, foi difícil encontrar o escorredor para macarrão mas achei, aí veio o calor e as pessoas me olhavam de um jeito estranho no calçadão com minha bicicleta de pneus brancos e calças compridas, na balsa tudo bem porque os caras da balsa já me conheciam, e um deles queria toda semana que eu entrasse no bolão da megasena, mas nunca entrei porque não jogo, acho muito difícil ganhar, depois uma vizinha convidou para passear de barco nas ilhas tijucas, mas foi meio esquisito porque não conhecia ninguém e era um barco pequeno e no fim eram só umas rochas no meio do mar, e todo mês eu metia o pé e pegava o avião e ia lá para onde morava, e às vezes durante a semana tinha um jantar dos amigos que também haviam se mudado para cá, e eu ia de metrô, riocard, metrôrio, e voltava de táxi amarelo, ônibus eu não pegava porque desde pequeno morria de medo dos ônibus daqui, os motoristas são todos loucos, dizia meu pai, e eram, são, mesmo, aí meu livro ficou pronto, e quando chegou pelo correio peguei a bicicleta de pneus brancos e fui ao rosas, é um condomínio, ou um bairro, é aqui perto, perto do shopping onde estudava alemão, então me sentei sozinho no bar do rosas, pedi o prato que gostava, tomei duas caipirinhas e li o livro todo e voltei para casa chorando e escutando só o zumbido do dínamo que acendia as luzes da bicicleta, aqui é silencioso de noite, então esse zumbido do dínamo era tudo que escutava, aí virou o ano e conheci a moça da tijuca, que na verdade é do ceará, e ela tinha muitas tatuagens, tem, e uns olhos que falam e uma boca muito bonita, então a gente saiu, mas era um pouco longe para ir de bicicleta, então fui de táxi amarelo, e naquela noite ela falou muito pouco e só tomou água mineral, dois copos, aí veio o carnaval e a turma do trabalho resolveu sair tudo junto, eu nunca tinha saído numa escola, e a moça da tijuca me ajudou a colocar a fantasia, tinha uma cabeça enorme com uns limões, a mais bela arte, o samba me deu, fiz da são clemente o retrato fiel, decorei algumas partes, e ela foi comigo de metrô até a central do brasil e falou salta aqui, e me deixou no lugar certo pedindo para eu tomar cuidado com meu dinheiro meus documentos e meu celular, e a porta fechou e ela seguiu para a tijuca e eu fui para a avenida, convidei debret, e quando terminou e o portão da avenida fechou eu falava para todo mundo, suado e cansado, foi a coisa mais importante que fiz na minha vida, e guardei aquela cabeça com limões por um tempo, e a moça da tijuca, que na verdade é do ceará, já disse isso, entrou na minha vida e com ela vi tudo que tinha para ver por aqui, comprei outra bicicleta, um dia fomos ao aterro e fizemos piquenique, três sanduíches diferentes, um deles com abacate e não sei mais o quê, e ficou ótimo, até vinho tinha, mas antes derrubei a caixa do piquenique na escada rolante do metrô e ela rachou de rir, mas nada se compara ao dia em que fomos a um bar do outro lado da ponte que atravessa um canal perto do morro onde tocavam samba e bebíamos batidas, e bebemos muitas batidas, de amendoim, maracujá e coco, e quando saímos com a bicicleta tomei um tombo feio no asfalto cheio de areia e ela ria sem parar, e até chegar em casa foram mais dois tombos, no primeiro quase caí da ponte dentro do canal e no segundo deitei na grama  e uma mulher parou o carro para saber se estava tudo bem, e a moça da tijuca continuava rindo sem parar e disse que estava tudo bem, e foi com a moça da tijuca que atravessei a baía de barca para comer bacalhau na cidade vizinha, sempre de bicicleta, e nesse dia levamos quatro horas para chegar ao bacalhau, e só quando chegamos ela disse que não gostava de bacalhau, mas valeu a pena e dormi no ombro dela na barca, e quando saíamos de noite íamos nos arcos e na lapa e num show na glória que acabou as cinco da manhã com uma chuva que estragou nossos tênis na lama, e teve uma noite que voltamos no metrô bêbados cantando o bêbado e o equilibrista, a gente vivia de metrô e bicicleta pra todos os lados, mas quando fomos numa praia em que as pessoas ficam peladas fomos de carro, mesmo, e eu trouxe minha lambreta, também, e com ela um dia saímos da praia onde conhecemos um moço de uma barraca que vendia cajuína e subimos o morro onde lá em cima tinha um bar com vista para o mar, mas até chegar lá passamos por uns moleques com fuzis, você tá com medo?, ela perguntou, e eu disse que não, mas estava um pouco, se bem que medo, mesmo, aqui, eu tenho é dos motoristas de ônibus, mas nem falo sobre o assunto porque pode parecer besteira, e só sei que na hora de descer o morro a lambreta empacou numa vala no meio da rua e veio um monte de gente ajudar a empurrar, e um gordinho risonho sem camisa com um revólver enfiado no calção azul foi o que mais ajudou, você ficou com medo?, e eu disse que não, e descemos o morro com a lambreta passando pelos meninos com fuzis, mas acho que estou me adiantando, estava no carnaval, e naquele primeiro carnaval outros amigos, também da tijuca, me chamaram para um café da manhã que parecia ceia de ano-novo e me vestiram de mulher, cisne negro, para sair no bola preta, e aquela manhã acabou na rua do ouvidor e então eu percorri as ruas do centro vestido de mulher de peruca vermelha, nas calçadas pedras portuguesas, intelig, vésper e light, light!, perdi as asas do cisne negro, e quando estava no metrô voltando para casa dois caras olharam para mim e disseram, você é aquele viado da TV, e eu disse viado não, viado é o caralho, mas como tinha mais gente vestida de mulher, e de padre, e de índio, e de tudo no metrô, ficou por isso mesmo, e daquela fantasia só sobrou a cara toda borrada, então eu e a moça da tijuca, cearense, continuamos a bater perna por aí, circo voador, bonde de santa tereza, feira de são cristóvão, onde me acabei de dançar forró e ela ria o tempo todo, aí tive de viajar para longe por um tempão, uma vizinha ficou com o cachorro, e quando voltei fomos a outros shows e bares e lugares, e então veio mais um carnaval, e saímos nos blocos todos, um dia choveu muito, simpatia, quase amor, e de noite fomos na lapa e ela foi vestida só com umas fitas isolantes tampando os seios e nunca fomos tão livres na vida, e acabamos de madrugada numa boate gay suados e felizes, encharcados de amor e liberdade, metrô, uber, bonde, menos ônibus, que sempre me assustaram um pouco, um dia subimos na igreja da glória, mas estava fechada, uma noite subimos no bondinho, noites cariocas, nando, uma tarde sentamos na mureta e conhecemos uma senhora divertida e seu marido e seu filho, e naquele dia foi foda, porque pegamos um caminho estranho e atravessamos um túnel que saía no cemitério, e os ônibus não sei se viam a gente no túnel, na volta achamos melhor colocar as bicicletas no metrô, então veio o moleque mais novo morar aqui, e fomos fazer aula de futevôlei, chapa esquerda, chapa direita, peito, ombro direito, ombro esquerdo, pingo, o moleque é bom, mas aí começou a trabalhar numa loja embaixo do guanabara, tudo por você, e virou o melhor vendedor da loja, e foi com a gente na lapa e no lamas, mas sabe como são esses moleques, fez seus amigos, viveu esse tempo todo do seu jeito, e teve também o dia que ela me levou na rocinha fazer tatuagem, passou o braço em volta dos meus ombros e disse você tá com medo?, eu disse que não, via appia, roma, laboriaux, fomos num churrasco no laboriaux e subimos de mototáxi, você ficou com medo?, não, só que na volta o meu mototáxi saiu antes e perguntou aonde eu ia, e ainda bem que tinha escutado ela dizer trapiá e falei trapiá, era um bar, no fim deu certo, ficou com medo?, eu não, falei pra ele ir pro trapiá aqui estou, e todo dia, na hora do almoço ligava no jornal da TV antes de sair para o trabalho, mundial, o menor preço total, cif cremoso quatro e noventa e nove, tixan dois quilos doze e noventa e oito, hidratante monange quatro e noventa e nove, tiroteio na praça seca, o que fazer, edmilson?, água marrom nas torneiras, o que fazer edmílson?, desabou prédio na muzema, o que fazer, edmílson?, é preço, é perto, é supermarket, açúcar guarani dois e noventa e nove, massa com ovos renata três e vinte e nove, coxa de frango seara pacote de um quilo dez e noventa e oito, guanabara, tudo por você, e quando precisava era só ir no posto aqui do lado, aberto vinte e quatro horas, acho que aqueles caras ali são da milícia, você tá com medo?, pergunta a moça da tijuca, eu não, mas olha aquela moto ali sem placa, deve ser milícia, claro que é, aqui só tem milícia, a van é milícia, o quiosque é milícia, os caras tomando cerveja no posto são milícia, não esquece que tenho quilômetros de vantagem, os caras pagando gasolina em dinheiro são milícia, você tem medo?, eu não, bala perdida no alemão, o que fazer, edmílson?, barricada na vila do joão, o que fazer, edmílson?, vamos ver os fogos na praia?, vamos, tem de comprar o passe do metrô, hora marcada, são lindos os fogos na praia, fica perto de mim, cuidado com o celular (ela falando, não eu), e aí, e o mengão?, fala bem do meu mengão!, já tem bastante gente falando (só respondo isso), e o vasco?, tá feia a coisa (só respondo isso), e o fogão?, fala bem do meu fogão!, tá difícil falar bem do seu fogão (só respondo isso), e então vamos sair na tuiuti, e fomos ao ensaio da tuiuti, e fomos buscar as fantasias na cidade do samba, e vimos os carros, as fantasias, as alegorias, e nos vestimos com lâmpadas que piscavam, no morro do tuiuti, no alto do terreirão, o cortejo vai subir pra saudar sebastião, e voltamos com as lâmpadas piscando, e então acabou o carnaval, e então fechou tudo, e então nos fechamos em casa, e então os meses foram se passando.

Rio,

despeço-me de ti olhando o mar pela janela e levando junto a moça da tijuca, que é do ceará, isso já foi dito, mundial, o menor preço total, molho de tomate pramesa noventa e nove centavos, picanha bovina maturata quarenta e nove e noventa e oito, hospital de campanha fechado, o que fazer, edmílson?, e acho que já não tenho mais tanto medo dos motoristas de ônibus, acho que já não tenho medo de mais nada.