Blog do Flavio Gomes
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QUASE PRONTO!

SÃO PAULO (tirando a poeira) – Não sei se vocês estão seguindo meu canal no YouTube, mas toda sexta-feira estou postando vídeos com meus carros, para deixar algum registro histórico de cada um para a eternidade. Toda sexta-feira tem um vídeo novo. Às segundas, ao vivo às 22h, tem o “Bem, Merdinhas”, programa de enorme […]

SÃO PAULO (tirando a poeira) – Não sei se vocês estão seguindo meu canal no YouTube, mas toda sexta-feira estou postando vídeos com meus carros, para deixar algum registro histórico de cada um para a eternidade. Toda sexta-feira tem um vídeo novo. Às segundas, ao vivo às 22h, tem o “Bem, Merdinhas”, programa de enorme sucesso para concorrer com o “Bem, Amigos” do SporTV. Estamos perdendo, por enquanto.

O Wartburg 311 do vídeo acima voltará às telas assim que terminar a restauração, mas fiz questão de gravar ontem o atual estágio dos trabalhos, que devem terminar em uns dois meses.

Mas o mais incrível não é nem o vídeo. Ontem recebi pelo correio os documentos disponíveis do automóvel e vejam o que apareceu:

A nota fiscal de importação original! O carro veio num navio de bandeira holandesa, o Gooiland (tem até foto lá embaixo, já falo dele), embarcado em Amsterdã. Pelo que entendi, foi importado por um certo Flavio Filizola, que tinha como endereço a rua da Consolação, 65, em São Paulo. No endereço, hoje, encontra-se o edifício Vicente Filizola — há uma óbvia relação entre Vicente e Flavio, coincidência tem limite… Esse prédio já existia em 1964? Não sei. Teria de encontrar algum registro de sua construção na Prefeitura, tarefa que deixarei para os blogueiros mais curiosos.

As datas dessa nota fiscal indicam que o carro chegou ao porto de Santos no dia 13 de setembro de 1964. No dia 30 do mesmo mês, pelo que entendi, foi liberado através do despachante aduaneiro Waldemar Ladeira — aparentemente contratado por Flavio Filizola, que também podia ser o nome da empresa que importou o carro, e não a pessoa física; é mais provável que essa importação tenha sido feita por pessoa jurídica, para vender o carro aqui.

Há um carimbo do D.S.T., que devia ser Departamento do Sistema de Trânsito, ou tráfego, ou transportes, sei lá, algum antecessor do Detran. Ele é de 13 de novembro de 1964 e me parece que foi quando o certificado de propriedade foi expedido, com o carro ganhando seu registro no Brasil. Aliás, carimbos não faltam. Tem um outro do Sindicato dos Despachantes e mais dois com a data de 3 de agosto de 1965, um deles com timbre do Banco do Brasil. Como o carro foi faturado em dólar na origem, acho que o banco teve de fazer alguma coisa nessa parada.

Existem dois valores para o Wartburg. Um deles aparece na descrição da nota e na coluna da esquerda: Cr$ 1.399.171,80. Outro, na coluna da direita, aponta Cr$ 1.269.792,40. Vou chutar aqui. Na coluna da esquerda há uma cotação do dólar: Cr$ 1.038,20. O carro custou, ainda segundo os números dessa coluna, US$ 1.347,69. Será que é isso?

De qualquer maneira, a nota informa que o veículo em questão é “um automóvel tipo Wartburg coupé cor gelo-azul-gelo, estofamento de acordo, com quatro pneus aplicados e um sobressalente nas medidas 590-15, duas portas, motor ‘OTTO’ de 3 cilindros e dois tempos, volume 1.000 com 45 HP a 4.200 rpm, ano de fabricação 1964”, e depois vêm número de chassi e motor e o peso líquido de 940 kg.

Esse papel passou 56 anos dobrado numa carteirinha de documento de carro. Está envelhecido, por óbvio, frágil, precisando de cuidados. Amanhã mesmo vou procurar um lugar que faça uma plastificação caprichada, de modo que fique preservado para sempre e faça parte de toda a documentação que envolve o automóvel.

Alguém há de brigar comigo porque na restauração acabei não mantendo a cor original, o gelo-azul-gelo. Bem, neste ano, o cupê 311 saía em cinco cores, sempre combinadas com o que a nota fiscal chama de “gelo”, que na verdade é um branco hoje conhecido como “off-white”, meio amarelado, quase creme: azul, preto, cinza, champanhe (um amarelo bem aberto) e coral. Optei pelo coral, que é o nome desse vermelho, por ordem explícita da minha namorada — elas não se discutem. Não é um crime. Sua fase gelo-azul-gelo está bem documentada!

Agora, o navio.

Eis o Gooiland, que em setembro de 1964 trouxe o Wartburg para o Brasil. Sei que a essa altura a maioria dos leitores já abandonou esse texto cheio de irrelevâncias que só eu considero relevantes, mas não tem problema. Creio que tais registros são necessários para no futuro atestarem como sou maluco pelos meus carros. Então, que seja eu a escrever sobre minhas maluquices, e não os outros.

O navio foi construído em 1944 pela Pennsylvania Shipyards Inc. em Beaumont, Texas, lançado ao mar em 19 de março daquele ano e entregue ao seu comprador em 15 de maio. Vinha equipado com um motor de 12 cilindros, dois tempos (olha como é o destino…) e 4.150 HP, feito pela Nordberg Manufacturing Company de Milwaukee. Sua velocidade de cruzeiro era de 13,50 nós, o que dá cerca de 25 km/h. Tinha 126 m de comprimento e deslocava 5.184 toneladas — não sou familiarizado com dados náuticos, espero não ter cometido nenhum erro ao ler sua ficha.

E quem comprou? A Administração de Transporte de Guerra dos EUA! O navio foi usado como cargueiro pelo país na Segunda Guerra Mundial, e nasceu com o nome de Cape Barrow, passando à Comissão Marítima dos EUA em setembro de 1946, com o fim do conflito. Em 3 de feveriro de 1947, foi vendido para a empresa AP Moller de Copenhague, Dinamarca, e rebatizado como Johannes Maersk. Maersk não é nome desconhecido, né? Hoje é a maior empresa de fretes marítimos com contêineres do mundo.

Somente em junho de 1949, comprado pela Koninklijke Hollandsche Lloyd, de Amsterdã, ganhou o nome Gooiland, sob o qual operou até dezembro de 1967, sendo então transferido para a Panagiotis N. Pappis & Nicolau G. Coucounas, da Grécia, mudando de nome para Captain Papis. No ano seguinte trocou de mãos novamente e passou a navegar sob bandeira cipriota, adquirido pela Yiouti Shipping Company de Famagusta, trocando de nome de novo em 1973 (Star of Kamal) e em 1974 (Azizi), quando foi finalmente repassado para uma operadora chamada Thaiti Maritime Company, com sede no Chipre. No dia 13 de novembro de 1974, dez anos depois de deixar meu Wartburg em Santos e com 30 anos de bons serviços prestados pelos sete mares, o cargueiro fez sua última viagem. Vendido para a SM Sadik de Karachi, Paquistão, foi encaminhado para a praia de Gaddani para ser desmontado e vendido como sucata.

Não sei vocês, mas eu acho essas histórias maravilhosas… O Wartburg que hoje está concluindo sua instalação elétrica em Guarulhos carrega todas elas em sua pele de metal. Sempre que esbarro num carrinho assim, sinto-me na obrigação de preservar seu passado.