Blog do Flavio Gomes
F-1

HAAS VF-22

SÃO PAULO (1/10) – E começamos hoje a apresentação dos novos carros da Fórmula 1 para 2022, falando verdades e sem dourar a pílula. (Em tempos imemoriais, as boticas costumavam embrulhar comprimidos em papel dourado. Eles eram amargos e desagradáveis, e os farmacêuticos acreditavam que, assim, tornavam sua ingestão menos penosa. Há outra versão que […]

SÃO PAULO (1/10) – E começamos hoje a apresentação dos novos carros da Fórmula 1 para 2022, falando verdades e sem dourar a pílula.

(Em tempos imemoriais, as boticas costumavam embrulhar comprimidos em papel dourado. Eles eram amargos e desagradáveis, e os farmacêuticos acreditavam que, assim, tornavam sua ingestão menos penosa. Há outra versão que dispensa os papelotes dourados e menciona uma substância adocicada que cobria as pílulas para, depois, levá-las ao fogo de modo que ficassem douradas. Seja como for, a expressão “dourar a pílula” foi registrada pela primeira vez pelo lexicógrafo espanhol Sebastián de Covarrubias no século 17 na clássica obra “Tesoro de la lengua castellana o española”. Resumidamente, “dourar a pílula” significa mentir, trapacear, contar uma lorota, enganar, falsear, burlar, tapear, e eu não faço nada disso quando escrevo, portanto preparem-se para encarar a realidade.)

A Haas é a pior equipe da F-1 e isso não se discute mais. Para começar, é uma aberração geopolítica. Nasceu nos EUA, tem CNPJ e CEP americanos, deriva de um time da Nascar e é financiada por dinheiro… russo! Russo, senhoras e senhores! Uma afronta à Guerra Fria que, num planeta civilizado, jamais poderia ser aceita com naturalidade. Mas é assim.

O time vai para sua sétima temporada na F-1. Antes de seguir, vale a pena observar algumas estatísticas:

2016 – 29 pontos, 8º lugar no Mundial de Construtores (Grosjean/Gutiérrez)

2017 – 47 pontos, 8º lugar no Mundial de Construtores (Grosjean/Magnussen)

2018 – 93 pontos, 5º lugar no Mundial de Construtores (Grosjean/Magnussen)

2019 – 28 pontos, 9º lugar no Mundial de Construtores (Grosjean/Magnussen)

2020 – 3 pontos, 9º lugar no Mundial de Construtores (Grosjean/Magnussen/Fittipaldi)

2021 – 0 ponto, 10º lugar no Mundial de Construtores (Mazepin/Schumacher)

Ora, vejam só… A Haas começou sua historinha na F-1 muito bem em 2016, com Grosjean pontuando nas duas primeiras corridas do ano: sexto na Austrália e quinto no Bahrein. Em 2018 terminou o Mundial em quinto, na frente até da McLaren! Oh, como são bons e eficientes esses americanos!, exclamaram todos. Quando esses caras se metem a fazer as coisas, fazem direito!

Santa ingenuidade…

A debacle começou em 2019, quando Gene Haas, cansado de gastar seus cupons de desconto no Walmart para financiar a equipe, assinou um contrato de patrocínio com uma marca de energéticos: Rich Energy. O dono da companhia era um inglês de barbas monumentais e aspecto macabro que, segundo consta, nunca quitou um boleto emitido pelo time. No meio daquele ano, diante da inadimplência do menestrel da bebida misteriosa, a Haas extirpou a logomarca de seus carros. Mas manteve a pintura em preto e dourado que havia assumido no início da temporada em função do mecenato prometido e nunca realizado.

O engodo de 2019: começo da decadência

No ano seguinte, quebrada, a Haas despencou em performance. Então apareceu no horizonte Dmitry Mazepin, um milionário bielo-russo que ficou rico vendendo fertilizantes. Um de seus cinco filhos é Nikita, que pilota carros de corrida. Como a Uralkali, sua empresa, jorra dinheiro envenenando lavouras e seres humanos pelo mundo, ele tentou comprar a Force India para o menino correr. Lawrence Stroll chegou na frente e só sobrou a Haas. Dmitry foi lá, viu que os caras precisavam de numerário, comprou o cockpit para o filhote — que não guia nada –, enfiou o nome da companhia nos carros à guisa de propaganda, determinou que as cores da bandeira russa fossem usadas na carenagem e pronto! Temos a equipe russo-americana da Fórmula 1! Equipe esta que zerou no ano passado porque, de acordo com seus dirigentes, passou a temporada inteira cuidando apenas do projeto e da construção do carro de 2022, esse que apareceu hoje.

“Apareceu” é modo de falar. A Haas divulgou apenas imagens produzidas em computador no Paint Brush (existe, ainda?), que podem ter sido elaboradas a partir do desenho-base divulgado há meses pela FIA. No fundo, o que a equipe tornou público hoje foi o layout dos carros, suas cores, a pintura quase igual à do ano passado. Qualquer um — repito: qualquer um — que engendrar teorias técnicas sobre esse troço exibido hoje estará mentindo descaradamente. Não há rigorosamente nada a dizer. O que se sabe apenas é que o projeto foi liderado pelo engenheiro italiano Simone Resta, ex-Ferrari e Sauber/Alfa Romeo, no novo escritório de design do time instalado em Maranello. “Novo escritório de design” é manifestamente um eufemismo para descrever alguma salinha alugada perto da fábrica da Ferrari, que fornece os motores da Haas desde sempre; suponho que Simone (que em italiano é nome de homem; mulher é Simona) não quis se mudar da bucólica região para delinear o automóvel em suas pranchetas — para copiar o modelo distribuído pela FIA, ele poderia trabalhar até numa mesa de trattoria diante de uma taça de bom sangiovese. A dupla de 2021 será mantida: Mazepin e o por enquanto apenas afável e educadíssimo Mick Schumacher.

Sobre o nome do carro, sim, temos informações. O novo modelo foi designado como VF-22. Lá no início, anos atrás, a sigla “VF” referia-se orgulhosamente ao ineditismo da empreitada de Gene Haas, nascido em Ohio para conquistar o mundo. “VF” queria dizer “very first”, e traduzir a expressão de forma simplória como “muito primeiro” não faria sentido. “Very first” é algo como “o princípio de uma série”, “aguardem pra ver o que vem por aí”, “vocês acham que viemos aqui para brincar?”, “este aqui é apenas o começo de uma gloriosa aventura”.

Ocorre que, com o passar dos anos, tal significado foi-se perdendo no tempo. Na prática, já na segunda temporada usar “very first” para batizar um carro seria ilógico — “very second”, talvez. Assim que “VF”, no ano da graça de 2022, quer dizer mesmo “Vendo a Firma”, e o 22 que se segue pode expressar o valor sugerido para a alienação do estabelecimento — com possibilidade de parcelamento, claro.