Blog do Flavio Gomes
Automobilismo brasileiro

BIRD

SÃO PAULO – Quem conta é o Crispim. A Vemag tinha uma grande equipe e pelo menos dois pilotos, Marinho e Bird, fora de série. Faziam muitas corridas longas. Eram 24 horas aqui, mil milhas ali, 500 quilômetros acolá. Tinha aquelas largadas Le Mans, piloto de um lado, carro do outro. Geralmente largava de noite, […]

Bird (de óculos) e Marinho: maior carro de corrida de todos os tempos

SÃO PAULO – Quem conta é o Crispim.

A Vemag tinha uma grande equipe e pelo menos dois pilotos, Marinho e Bird, fora de série. Faziam muitas corridas longas. Eram 24 horas aqui, mil milhas ali, 500 quilômetros acolá.

Tinha aquelas largadas Le Mans, piloto de um lado, carro do outro. Geralmente largava de noite, Interlagos é frio pra burro. Aí nossos carros ficavam lá parados esperando para largar, o óleo decantava, e toca descer na pista para balançar os carros, misturar o óleo, o motor pegar. Quando a gente saía já tinha gente lá no fim da reta. Aí ia pegando, pegando, limpava um cilindro, limpava o outro e ia falhando até a curva dois, depois limpava tudo.

Carro nenhum faz corrida longa assim sem parar nos boxes um monte de vezes. E trocávamos tudo, é o Crispim que está contando, a gente parava e trocava pneu, vela, abastecia, e precisava trocar lona de freio, também, a gente tirava o freio inteiro, panela, sapata, tambor, e colocava outro.

Mas isso demorava, porque o freio chegava muito quente e a gente precisava usar luva de amianto, para não queimar a mão, e era difícil com aquelas luvas grossas mexer nas ferramentas, tirar os parafusos, os pinos, colocar o conjunto novo. Então o Bird reclamou um dia que isso demorava muito e a gente perdia muito tempo, e explicamos que era por causa das luvas, porque pra tirar tudo a gente ia queimar as mãos, era impossível, e com aquelas luvas a gente não conseguia segurar as ferramentas direito para tirar as coisas, precisava esfriar um pouco, era complicado.

Então o Bird disse, na próxima vez que tiver de parar me mandem uma placa umas duas voltas antes, e não precisa colocar luva pra trocar nada, vai chegar tudo frio. Como frio, Bird? E ele disse pra fazermos o que ele tinha dito, então demos a placa e na volta seguinte ele parou. Interlagos era grande, tinha oito quilômetros. Quando ele parou tiramos as rodas e fomos no freio com a luva pra arrancar tudo, e ele gritou de dentro do carro para tirarmos as luvas, que era pra trocar mais rápido, e a gente tirou com medo de queimar a mão, e quando fomos no freio eles estavam gelados. Era de noite, Interlagos é frio pra burro.

Como ele fez isso?, perguntei. O Bird deu quase duas voltas sem usar o freio pra esfriar. Como assim, não freou? Ele não freou. O problema é que o tempo de volta não mudou.

Quem conta agora sou eu.

Faz tanto tempo que nem sei se lembro quanto, mas tinha uma agência do Bamerindus na Onze de Junho e em frente dela uma loja de carros usados. Então troquei um cheque no banco e quando saía vi na loja um carro amarelo com uma faixa verde no capô, e era um Interlagos.

Então atravessei a rua e como nunca tinha comprado um carro na vida perguntei ao vendedor quanto é, como se estivesse na feira. Eu não teria dinheiro, de qualquer maneira, porque tinha 18 ou 19 anos e com 18 ou 19 anos a gente não tem dinheiro.

Então o vendedor me perguntou se eu sabia que carro era aquele e eu sabia, é um Interlagos amarelo com uma faixa verde no capô, respondi, quanto é?, insisti, e ele me mandou esperar, foi a uma gaveta no fundo da loja, tirou uma carteira com um documento e me trouxe, olha aqui de quem era, e estava escrito no documento Bird Clemente.

Eu tinha 18 ou 19 anos e sabia quem era o Bird Clemente, claro que sabia, tinha visto correr em Interlagos, era mais garoto ainda, conhecia o Bird Clemente das capas das revistas e das histórias que meu pai contava, só não sabia que o Bird se chamava Bird, mesmo, porque achava que era um apelido. Um apelido bem apropriado para um piloto, inclusive.

Esse carro era do Bird Clemente, disse o vendedor, enfatizando o Clemente como se houvesse outros Birds por aí. E quanto é?, perguntei de novo ignorando a informação, agora para irritar o vendedor, porque ele queria aumentar o preço, claro, e ao mesmo tempo queria jogar na minha cara que aos 18 ou 19 anos eu não teria dinheiro para comprar carro algum, muito menos o Interlagos amarelo com uma faixa verde no capô do Bird Clemente.

Então ele fechou o documento com força, não iria perder tempo com alguém que tinha 18 ou 19 anos, que não teria dinheiro para comprar um Interlagos amarelo com uma faixa verde no capô e que não sabia quem era o Bird Clemente.

Mas eu sabia quem era o Bird Clemente, e como ele não me disse quanto era aquele carro, virei as costas e disse, isso aí vivia apanhando de DKW, e fui embora.

Muitos anos depois conheci o Bird e soube que o nome dele era homenagem a um explorador do Polo Sul ou do Polo Norte ou de ambos, e era um Bird com Y, o que fazia dele outra coisa que não um pássaro. Bird, o pássaro, sempre dizia que o DKW de 1961 das Mil Milhas foi o maior carro de corrida que guiou na vida, e ele falava “nosso carro” com a mesma entonação que o Crispim diz até hoje, “nosso carro”, com um sentimento de posse inabalável e infinito, porque aquele era o carro deles, do Bird, do Marinho, do Crispim, do Jorge Lettry, da Vemag, e era branco com o número grandão na bolota preta, e de tanto eles dizerem “nosso carro” nas eternas tardes e noites em que contavam essas histórias eu, de vez em quando, vejo suas fotos e falo para mim mesmo que nosso carro era o mais lindo de todos, o melhor carro de corrida do mundo.

Vem aqui, pô, ele dizia no telefone nos últimos anos, e eu fui algumas, menos do que deveria. O Crispim, sim, vivia lá. Vou almoçar no Bird, ele avisava. Virou artista, faz retratos dos amigos com lápis, fez o meu. Vem aqui, pô, eu não ia sempre, mas sabia que ele estaria por ali, agora um pouco mais frágil, como um passarinho, e saber que estaria por ali era o bastante, o Crispim sempre voltava com notícias, estava tudo bem.

Pássaros, voam, porém, e o Bird voou de vez, com seus suspensórios, seu sorriso tímido, seu ouvido esquerdo que não escutava nada porque eu fiquei quase surdo, Flavinho, o escapamento do nosso carro era desse lado, você precisava ouvir.

BIRD CLEMENTE foi um mestre no que fez, o primeiro piloto profissional do Brasil, um dos 50 escolhidos pela “Autosport” inglesa para a lista dos melhores pilotos do mundo que não chegaram à Fórmula 1. A lista está aqui. Está entre Carlos Sainz, o pai, e Valentino Rossi. Sua história, hoje, foi contada em diversos textos fartos de informações e imagens. Algumas dessas fotos estão aqui, no seu site oficial. No “Bandeira Quadriculada” de Paulo Peralta é possível encontrar um perfil bem completo, com todas suas provas e resultados entre 1958, quando começou a correr, e 1974, quando parou. Bird faria 86 anos em dezembro. Morreu na noite de domingo em São Paulo.