Blog do Flavio Gomes
Indy, IRL, ChampCar...

GIL

JOÃO PESSOA – Se me fosse dada a chance de falar com vocês um dia — não será –, perguntaria algo que soaria idiota. Menos em busca de uma resposta, mais de um gracejo, creio. Cara, vocês passaram a vida correndo feito malucos a mais de trezentos por hora e vão morrer assim? Sério? Um […]

JOÃO PESSOA – Se me fosse dada a chance de falar com vocês um dia — não será –, perguntaria algo que soaria idiota. Menos em busca de uma resposta, mais de um gracejo, creio. Cara, vocês passaram a vida correndo feito malucos a mais de trezentos por hora e vão morrer assim? Sério?

Um leva um tombo de esqui e arrebenta o coco porque inventou de aparafusar uma câmera no capacete. Sei que ninguém fala muito disso, mas sei também que foi o que aconteceu, e não me peçam para ir além, Michael está vivo. Vivo há dez anos, exatos dez anos, sem que alguém possa perguntar a ele que diabos aconteceu naquela pista de esqui na França. Também não importa mais, a próxima notícia que receberemos será a da sua morte, e todos esperamos por isso, já nos preparamos, é duro, horrível dizer, mas é como se ele tivesse morrido dez anos atrás. Agora, na boa, moço: capote de esqui? Isso é jeito de mandar o mundo às favas?

Agora, Gil.

Cara, você andava nesses ovais da vida a quase quatrocentos, como é que o coração para assim, do nada, num desfile de carros ou coisa que o valha? Num lugar chamado Opa-locka? Oompa-Loompa? Que porra é essa?

Essa é a porra da vida, responderia você emendando a gargalhada curta e grave, e falando baixo. Às vezes eu achava que você tinha um sotaque estranho. Nasceu na França, cresceu no Brasil, foi correr na Inglaterra, depois passou o resto do tempo nos Estados Unidos, estranho seria não ter sotaque de nada.

Como de hábito, nos obituários de quem conhecemos, há que se lembrar de algum caso pessoal. É o que fazemos para exagerar a intimidade — o morto não pode mais desmentir nada.

Sem problemas, Gil, o que conto a seguir não aumenta nem diminui nossa intimidade, que nunca existiu. Apenas frequentamos os mesmos lugares durante algum tempo, e nos encontramos em outros, esporadicamente, com o passar dos anos. E os anos passaram e se tornaram décadas. E assim voltamos a 1993.

Uma quarta-feira, 29 de setembro. Três dias antes, Prost tinha conquistado seu quarto título no Estoril. Fiquei por lá porque no revezamento dos quatro grandes jornais para fazer uma exclusiva por ano com Senna foi a data que me coube. Entrevista de merda, ele estava assinado com a Williams e não podia tocar no assunto. Não importa, também. O tema aqui é outro.

Naquela semana um monte de gente ficou em Portugal para fechar a temporada europeia, testar umas porcarias — imagine que Prost, aposentadoria anunciada, teve de guiar a Williams que seria de Senna sem as traquitanas eletrônicas proibidas para 1994, e Senna andou com um motor Lamborghini para a McLaren que jamais seria usado — e experimentar uns pilotos novatos.

Entre esses pilotos estava você, Gil. Tinha sido campeão da F-3 Inglesa no ano anterior, estava com a bola toda. E apareceu um certo Jos Verstappen para andar no mesmo carro, a Footwork. Outro que vi pela primeira vez foi Eddie Irvine, um irlandês meio maluco que deu um par de rodadas com a Jordan, mas acabou ficando na equipe.

“Gil, que domingo disputa a penúltima etapa do Campeonato Internacional da F-3000 em Magny-Cours, encerrou seus dois dias de testes de maneira incomum. Num intervalo, saiu dos boxes para ir ao banheiro e não viu uma porta lateral aberta de um dos caminhões da equipe. Bateu a cabeça e levou dois pontos.”

Isso aí foi o que relatei na “Folha” na edição de 30 de setembro daquele ano. Depois, informei que ele tinha melhorado seu tempo em relação a terça-feira, fazendo 1min16s06 em sua melhor volta. “Ainda longe, porém, do 1min14s45 do holandês Jos Verstappen.”

Muito bem. Aquela cabeçada abreviou o tempo de Gil na pista, ele continuou na F-3000 em 1994 e foi para a Indy em 1995. Verstappen, por sua vez, impressionou. Novinho, 21 anos, impetuoso e com a arrogância dos grandes campeões, no ano seguinte seria titular da Benetton, companheiro de Schumacher. Não virou campeão de coisa nenhuma. Seu legado foi o filho. Mas também é assunto que não nos cabe agora.

Dizer que Gil não deu sequência à carreira na Europa porque abriu a testa numa porta de caminhão talvez seja um despropósito, é claro que muita coisa aconteceu nesse intervalo entre o teste no Estoril e a estreia com o carrão amarelo patrocinado pela Pennzoil, coisa linda de Jesus, e foi lá na América que foi feliz, bicampeão da Indy em 2000 e 2001, vencedor das 500 em 2003, 12 vitórias e 21 poles entre Cart e IRL, e parou quando quis, e virou chefe na BAR e na McLaren, orientou Alonso em Indianápolis, Norris e Piastri lhe devem favores, todos nós lhe devemos algo.

Nas parcas vezes em que nos encontramos por aí depois daquela cabeçada na porta do caminhão, o episódio foi lembrado como pilhéria, que disso não passou, mesmo.

Dia desses me vi enternecido diante da banda bem pertinho no palco e pensei em tatuar “o acaso vai me proteger”, porque é só a ele, o acaso, que entrego meus dias há muito tempo. Ali bem pertinho no palco estavam uns caras mais ou menos da mesma idade que eu, que o Gil, que o Schumacher, e a vida passou voando por todos nós, ouvimos as mesmas músicas, fumamos, bebemos, namoramos, casamos, tivemos filhos, separamos, nos espantamos com a velocidade das coisas, testemunhamos mudanças no mundo que jamais imaginamos, aí o acaso levou cada um para um canto, o acaso colocou um motorista de táxi em Londres na frente de um outro piloto, o acaso abriu a porta do caminhão no Estoril, e ao seu modo o acaso foi nos protegendo até que num pequeno vacilo um caiu do esqui, o coração do outro parou de repente.

Não deixem de ver o sol se pôr sempre que possível.