Blog do Flavio Gomes
#96, Superclassic, farnéis

INFINITO

SÃO PAULO (até mais, garoto) – Eu e meu carro de corrida sempre fomos de poucas palavras. Acho que pilotos e carros não gostam de falar muito em dia de corrida. Só o essencial. Vamos lá, garotão, e um tapinha no painel, era tudo que eu dizia antes de sair dos boxes. Depois, silêncio total […]

SÃO PAULO (até mais, garoto) – Eu e meu carro de corrida sempre fomos de poucas palavras. Acho que pilotos e carros não gostam de falar muito em dia de corrida. Só o essencial. Vamos lá, garotão, e um tapinha no painel, era tudo que eu dizia antes de sair dos boxes. Depois, silêncio total até a bandeirada, e um boa, garoto, voltando aos boxes. Na posição que fosse, em geral a última, o que nunca me incomodou muito.

Nada me incomodava no #96, nem mesmo suas quebras, que foram muitas, a falta de velocidade nas retas, a dificuldade para subir aquelas pirambeiras da Junção e do Laranjinha, as milhares de bandeiras azuis que vi nestes últimos seis anos. Nada. Porque ele me ensinou algo que, talvez, só um carro de corrida saiba dizer.

O #96 me ensinou o que é o infinito.

Uma pista de corrida é isso, o infinito, não se sabe onde começa, nem onde termina, e a gente só pára uma hora porque alguém manda parar, senão seria o infinito literal, acelerando e acelerando até o fim dos tempos.

Mas depois a gente volta, retoma de onde parou, antes e depois são apenas pausas nessa corrida pelo infinito que só dentro do capacete se compreende.

Sempre fomos de poucas palavras, eu e esse carro, e depois do vamos lá, garotão, era só o silêncio do motor gritando, acho que já escrevi isso antes, é estranho o silêncio dentro de um carro de corrida, porque no fundo você está só, levando aquele monte de ferro e borracha a lugar algum, e ele te leva sem perguntar nada, à espera, talvez, apenas do boa, garoto.

Ontem à noite o #96 se despediu da cidade, de seu piloto e de alguns de seus amigos e torcedores. Caramba, um carro que tem torcedores… Sem nunca ter vencido uma corrida sequer, que pode contar nos dedos as ultrapassagens que fez, a antítese da competição.

Mas era, é, meu carro de corrida, aquele que mostrou para mim o prazer de correr pelo infinito, não importa a qual velocidade, e foi por isso que ontem, quando tive de colocá-lo no caminhão, depois de ver os amigos e torcedores no bar, saí acelerando feito um alucinado pelas ruas do bairro, sem dizer uma palavra, e ele saiu junto gritando feito outro alucinado, até que duas voltas no quarteirão depois o #96 subiu a rampa e eu disse a ele boa, garoto.

Foi uma noite festiva, porque na verdade estávamos lá para celebrar o que o carro conseguiu, reunir gente, fazer pessoas se conhecerem e manter viva a paixão pelo automobilismo, que é o que nos une, e não dar um adeus definitivo a ninguém. Não derramei uma lágrima sequer, porque não tinha mesmo motivos para chorar, fiz isso em silêncio na última corrida, sozinho lá na Reta Oposta, longe de todos, e ontem todos estavam lá para vê-lo aos sorrisos, e só me emocionei mesmo quando vi o seu Alfredo, companheiro de primeira hora, dando um tapinha e um suave beijo na sua capota antes de ir embora.

O #96 é um carro especial, mas só quem conhece carros especiais sabe do que estou falando. Eu não vestia sua camiseta ontem, como muitos, e lá pelas tantas o Dú me perguntou cadê a minha, e tudo que fiz foi apontar para o carro e dizer que minha camiseta é ele, o carro, é ele que me veste e me vestiu nestes últimos seis anos na busca pelo infinito, por todos os infinitos, dentro do carro a gente pensa em tudo isso, no amor infinito, na vida infinita, na pista infinita, na alegria infinita, no gozo infinito.

Só um carro de corrida faz isso, e por isso sou grato a ele.