Blog do Flavio Gomes
DKW & cia.

HISTÓRIAS DE GUERRA

SÃO PAULO (um livro) – É essa moto que fui conhecer de perto hoje. Estava no encontro de clássicas que aconteceu algumas semanas atrás aqui em SP. Uma DKW 350 cc, 1938. A DKW foi a maior fabricante de motocicletas do mundo durante os anos 20 e 30. A matéria que fiz para o “Limite” vai ao […]

SÃO PAULO (um livro) – É essa moto que fui conhecer de perto hoje. Estava no encontro de clássicas que aconteceu algumas semanas atrás aqui em SP. Uma DKW 350 cc, 1938. A DKW foi a maior fabricante de motocicletas do mundo durante os anos 20 e 30. A matéria que fiz para o “Limite” vai ao ar na semana que vem na ESPN Brasil.

A moto pertence ao advogado Jayme Szyflinger, que gosta muito de DKWs. Tem um Candango, uma Vemaguet e uma Schnellaster, entre outros brinquedinhos preciosos.

Ela veio direto da Segunda Guerra para o Brasil.

Foi assim. O pai de Jayme, judeu austríaco, tabalhava para uma companhia de seguros no final dos anos 30. Foi enviado para o Japão para implantar um sistema de seguros agrícolas, quando Hitler anexou a Áustria. A coisa já estava feia para os judeus na Europa central e ele, como tantos outros, tinha percebido antes da viagem. Por isso, vendeu quase tudo que tinha e transferiu para um banco na Inglaterra.

Batata. Enquanto viajava a trabalho, foi demitido da empresa, por ser judeu. Não voltou para a Áustria. Seguiu para a Inglaterra e, de lá, pegou um navio para a Argentina, onde vivia sua irmã. No navio, conheceu uma italiana, católica. Se apaixonaram. Mas ela ficou no Brasil e ele seguiu para a Buenos Aires, onde encontrou a irmã.

Semanas depois, juntou uns cobres e comprou uma motoneta Puch. Cruzou a fronteira e foi parar em Santa Catarina, onde a moto já estava se desmanchando. Vendeu o que restava lá mesmo e, de carona, chegou a São Paulo, onde encontrou sua namorada italiana. Casaram-se aqui.

O mundo estava em guerra. Numa tarde, em 1942, foi ao Largo do Paysandu, no centro da cidade, onde a embaixada britânica estava recrutando voluntários para lutar na Europa . Austríaco, e portanto fluente em alemão, alistou-se como quinta coluna. Enviaram-no de avião até o Senegal, de onde embarcou num navio para a Inglaterra.

Foi treinado durante semanas e, quando estava pronto, lançado de paraquedas na Alemanha com documentos falsos. Incorporou-se ao exército alemão e foi enviado à frente soviética. Atuou como espião até o fim da guerra, quando, ferido, seu batalhão foi aprisionado pelos americanos. Detido, contou sua história, apanhou bastante, até que conseguiu junto às autoridades militares britânicas, consultadas pelos americanos, comprovar quem era.

Ganhou patente de tenente, depois major, e como oficial britânico deu baixa e decidiu voltar ao Brasil. Antes, porém, quis conhecer os lugares onde seus familiares tinham sido mortos por Hitler. Àquela altura, estava lotado em Bonn. Pediu algo que tivesse rodas e andasse, para sua pequena excursão em busca de pistas dos parentes, e lhe disseram para escolher qualquer coisa num galpão onde estavam apreendidos vários veículos alemães. Quase nada funcionava. A moto DKW funcionou. Pela pintura em tom de areia, provavelmente pertenceu à 21ª Divisão Panzer e foi usada nas operações no norte da África. Não se sabe direito como acabou voltando à Alemanha, indo parar em Bonn.

Com ela, o pai de Jayme rodou a Europa, foi à Áustria, viu o que queria ver, descobriu o que precisava descobrir, e retornou à Alemanha para, então, pegar um vapor de volta ao Brasil e retomar a vida.

No porto de Hannover, encostou a moto, disposto a deixá-la por lá mesmo, e embarcou. “Mas quando estava subindo a rampa”, conta Jayme, seu filho, “achou ter ouvido alguém chamar seu nome. Olhou para trás e não viu nada, só a moto, que parecia pedir para ir junto. Como era oficial britânico, estava uniformizado, pediu para colocarem a moto no navio e colocaram.”

E assim foi. Quando chegou ao porto de Santos, desembarcou a moto, deu a partida e subiu a serra. Horas depois estava diante de casa, no bairro do Bom Retiro, antigo reduto da comunidade judaica em São Paulo. A esposa, quando o viu pela janela, desmaiou. Ela passara anos sem notícia do marido. Uma vez por mês, nesse tempo todo, recolhia o soldo pago pelo governo inglês no centro da cidade e lhe diziam apenas que estava “tudo bem”.

É essa moto que está com Jayme até hoje. Ela carrega ainda um telefone de campanha, cantil, marmita, estojo de primeiros socorros, compartimentos para munição, mapas e documentos, caixa de ferramentas.

E uma linda história sobre seu banco Pagusa de couro preto.