HANNOVER (amanhã tem mais) – Gerd é um carro. Alguns dos meus carros têm nome. Gerd já veio batizado. Nesta semana e na outra, ele é meu. Gerd tem tudo que um carro precisa ter: um motor econômico (está fazendo quase 20 km/l), quatro rodas, pisca-alerta, desembaçador do vidro traseiro, farol alto e baixo, pisca-pisca, um rádio que pega várias estações e toca fitas, velocímetro, um chaveiro com porta-moedas e um bicho estranho pendurado no retrovisor.
Ele é pequeno, anda a 100 por hora e faz um pouco de barulho. Só não tem no parabrisa o selinho redondo verde que, na Alemanha, indica os veículos que contribuem com sua parte para nosso belo quadro ecológico. Verde, verde, verde. Gerd nem verde é, é azul.
Diz que a dona anterior ficou triste quando ele foi embora. O marido comprou um Toyota para ela. Foi o que me contaram meus amigos nobres prussianos que foram buscá-lo em Leipzig. Eles, meus amigos, têm terras na Saxônia e são de alguma linha sucessória do pedaço: Dom Peter Von Wartburg e Lady Julyana Von Pampuglia.
Hoje cedo Dom Pedro usou de suas influências para que eu pudesse me jogar sem mais delongas numa autobahn qualquer rumo a não sei bem onde. Gerd fora preparado nos últimos dias por Herr Dösser, que deixou o carrinho em ponto de bala. Justinho, sem ruídos, suspensão certinha, freio simpático, câmbio que é uma manteiga.
Saímos de Düsseldorf no fim da manhã. Deixei o príncipe regente em Essen, onde tem negócios, e me fui.
É uma experiência curiosa viajar de Trabant pela Alemanha Ocidental. Na verdade, toda a Alemanha hoje é Ocidental, então será igualmente curioso quando adentrar o antigo Leste, porque já não se veem mais Trabis rodando por aí. Nas cidades, o motorzinho pipoca e as pessoas olham. Umas fazem cara de puxa, há quanto tempo não vejo um, outras fazem cara de quem é esse doido andando nesse negócio?
Mas a maioria, pelo menos, dá um sorriso. Tenho a impressão que a Alemanha inteira está rindo da minha cara. O que é bom nestes dias cinzentos de outono, dias que eu gostaria que fossem de sol e céu azul, mas pelo menos até agora têm sido de frio e folhas espalhadas pelo chão. Paciência.
Não tenho roteiro. Quer dizer, tenho mais ou menos. Arranquei uma folha de um atlas antigo e fiz uns rabiscos. Sei que vou a Berlim. Então, que se veja o que há pelo caminho. Osnabrück era um lugar que eu queria conhecer. É lá que fica a fábrica da Karmann, e há um museu. Uma passadinha não faria mal algum. Toca para Osnabrück, são 200 km, fiz uns 150 km pela autoestrada e o resto por uma estradinha mais lerda.
No mais, muita civilidade dos parentes velozes.
Gerd não passa batido pela paisagem porque é de fato esquisito, mas há um certo exagero na esquisitice que a ele se atribui. Fazia um ano que não vinha à Europa, foi pouco antes da crise, e um ano depois notei, nestes dois dias, que cada vez há mais carros pequenos e esquisitos rodando por aí. A Toyota e a Suzuki têm seus modelos, a Renault, a Nissan, a Ford, os Smart, todo mundo está fazendo carros pequenos e esquisitos. Verde, verde, verde. Consumo voltou à ordem do dia. Vi outdoors de dois carrões da VW em que o maior apelo de venda era dizer que um deles gastava 4,4 l de gasolina a cada 100 km e o outro, apenas 3,3 l.
Parei em Osnabrück. Não gosto de perguntar nada na rua, então saí procurando a Karmann. Foi fácil de achar, é a maior fábrica da cidade, e a cidade nem é tão grande, 164 mil almas. Só que a Karmann faliu, meses atrás. E o museu, pelo jeito, foi junto. Ninguém soube me dizer sequer onde era. Pelas fotos que vi no século retrasado, ficava na fábrica, mesmo. Dei uma volta pela planta-fantasma, enorme, que até outro dia dava emprego a quase 2,5 mil pessoas. Hoje, está tudo abandonado. Não caindo aos pedaços, mas abandonado: um ou outro carro estacionado na área administrativa, gente que deve estar cuidando da liquidação da empresa, poucas bicicletas no bicicletário outrora lotado, mato crescendo, alguns carros abandonados no pátio, conversíveis que a Karmann fazia para várias montadoras, carrocerias especiais, coisas assim.
Deixei Osnabrück com a sensação de que a cidade, ela mesma, é meio fantasma. Suspeito que a falência da Karmann abalou as finanças dos nativos, no entorno da fábrica tem um monte de coisa para vender ou alugar, galpões vazios, lanchonetes às moscas. Posso até ter comido bola, vai ver o museu fica em outro lugar e é todo alegre e faceiro, mas para mim ver a fábrica morta deu. Me mandei.
Andei mais uns 100 km, com frio e chuva, e vim parar aqui em Hannover, que vem a ser a capital da Baixa Saxônia e deve ser bacana, é a terra do Scorpions, tem o maior Anhembi do mundo, um time que tem 96 no nome, Napoleão andou por aqui e foi uma espécie de subsede da família real inglesa, ou algo do gênero.
Amanhã vejo isso com calma. Vou assistir TV agora para vir o sono. Meu alemão me surpreendeu hoje. No rádio, ouvi várias vezes “tsunami-katastrofen-zamoa”, e concluí que houve um tsunami em Samoa e que deve ter sido uma catástrofe daquelas. Entendo tudo, já.