Blog do Flavio Gomes
Turismo

FICAREMOS BEM

SALZBURG (amanhã acaba) – Depois da moleza de ontem, a jornada de hoje era longa: 300 km até Salzburg, embora um site mequetrefe tenha me informado que a distância era de 255 km, o que me deixou bem puto quando bati nos 255 km e não estava em Salzburg, mas sim em Bierbaum, que nem […]

SALZBURG (amanhã acaba) – Depois da moleza de ontem, a jornada de hoje era longa: 300 km até Salzburg, embora um site mequetrefe tenha me informado que a distância era de 255 km, o que me deixou bem puto quando bati nos 255 km e não estava em Salzburg, mas sim em Bierbaum, que nem sei que pito toca e fica no meio do nada.

Gerd não reclamou, porque gosta de andar. Especialmente quando não tem ninguém por perto, na solidão de uma estrada que corte milharais e plantações de magnólias. É seu habitat, muito mais do que as rodovias cheias de caminhões e carrões rápidos e sem rosto.

Quando saímos de Viena, ainda na garagem do hotel, a módicos 14,60 euros a estadia (me estressei com o turco que cuidava do estacionamento de noite, o tonto não falava nada de inglês, e tem de falar inglês, não interessa se está na Áustria ou na China, o cara tem de entender pelo menos “quanto custa?” e “é aqui a garagem do hotel?”, senão volta pra Turquia e vai vender kebab), Gerd ligou e imediatamente desligou.

Ainda tem quatro litros no tanque, deixa de frescura, já vi com a régua, mas ele não quis saber. Torneirinha na reserva e funcionou. Legal, você, a gente no centro da cidade, só deve ter posto na periferia, na saída para a estrada, não sei onde é a estrada e se você parar no meio da rua, taco gasolina e ateio fogo, eu disse, e Gerd riu porque se a gasolina acabasse, eu não teria como tacar gasolina e atear fogo, lógica irretocável de um alemão oriental.

Bom, eu tinha de seguir para oeste, me orientei pelo sol, o dia estava lindo, foi o primeiro dia realmente de sol o tempo todo e calor desde que cheguei, e fui indo para oeste até que apareceu uma primeira placa para Linz, mais ou menos meio do caminho, e logo um salvador posto desses de calçada, duas bombas, uma cabine para pagar e já estava bom demais.

Na Europa, em geral, a gente mesmo abastece o carro e vai pagar, isso varia um pouco de país para país, e quando encostei Gerd no meio-fio, o cara já saiu da cabine, no posto dele, só ele abastece. Abri o capô e ele já começou a gritar, “óleo, óleo, aqui vai óleo”, me comovi com sua preocupação, mas eu sei, meu filho, vou pegar o óleo, está no portamalas, as coisas aqui respeitam uma determinada ordem, nada acontece ao mesmo tempo, fica frio, das calmen.

Coloquei o óleo e ele colocou a gasolina e tchau.

Fugindo das placas para a autoestrada, fomos deixando Viena pela periferia até chegar à 1, só isso mesmo, 1, sem letras acopladas, a estrada 1, que pelo meu mapa morreria em Salzburg, com alguma sorte na porta do meu hotel. Estava calor mesmo, e deu para viajar de janela aberta, uma raridade neste outono até agora frio pelos cantos por onde passamos. Acho que queimei só um lado do rosto, porque foi o tempo todo com o sol à esquerda e o asfalto à frente.

Combinamos de parar depois de uma hora de viagem, eu estava com fome e com vontade de comer pão com bratwurst, o último foi em Dresden. Meu GPS mental calculou a rota e o tempo de viagem e a ideia era chegar a Salzburg às 6 da tarde. Paramos numa cidade de beira de estrada, maior que a maioria, St. Pölten, que até agora não sei se é santo ou santa, simpática, segui a torre da igreja, onde em geral há um centro, no caso um “zentrinhum”, e foi tudo dentro do previsto, exceto a bratwurst, que não encontrei, e comi qualquer coisa.

Nessas estradas europeias, muitas vezes a gente tem a impressão de que o planeta é desabitado. Mesmo cruzando pequenas cidades, é difícil ver gente nas ruas. De vez em quando, velhinhos de bicicleta. Numa dessas havia um casal. O velhinho na frente, a velhinha atrás. Ninguém mais num raio de mil quilômetros, exceto eu e Gerd, e aí o velhinho resolveu virar à esquerda e fez um sinal espalhafatoso com o braço, mas não para mim, eu já tinha passado, acompanhava aquilo pelo retrovisor, o sinal foi para sua velhinha, que desde os tempos do império austro-húngaro deve fazer aquele trajeto de bicicleta, mas para garantir que ela não vai fugir com um recruta qualquer, o velhinho faz o sinal para virar à esquerda, e ela vira.

Só fui parar para abastecer de novo em Linz, e nem precisava, porque Gerd gastou muito pouco, e talvez tenha sido pela gasolina que coloquei em Viena. O mesmo ogro que gritou sobre o óleo naquele posto da calçada não me deixou escolher a Super 95, seja lá o que for isso, mas para mim sempre pareceu melhor que a 91, que não tem nada de super, e me obrigou a colocar a 91, e parece que com ela Gerd ficou mais econômico.

Em Linz, meu GPS mental recalculou o tempo de viagem. A cidade é grande e colada em algumas outras, e ali perdemos uma hora num trânsito infernal, uma chatice, mas tudo bem, depois engrenou de novo. O sol, àquela altura, já estava na minha cara, estamos indo para o oeste, lembrem-se, e tive de acionar o parassol (aquelenegócioqueagenteabaixaprosolnãobaternacara), agora com uma técnica diferente para não esbarrar no espelho, é difícil de explicar, mas dá, o problema é que o parassol fica na frente do espelho e oculta uma parte da visão, mas isso não importa, sobra espaço suficiente para ver o que é preciso ver do mundo às minhas costas, muitas vezes é melhor não ver nada atrás, mesmo.

A última parada foi a uns 20 km de Salzburg, para tomar um café e um Red Bull no postinho OMV, sempre muito acolhedores os postos dessa rede, e aí aparece um sujeito rebocando uma carreta com um Mini Cooper vermelho configurado para rali. Estava indo para uma prova que começa amanhã, no sul, e vai até domingo, e quem iria pilotar seu carro era ninguém menos que Rauno Aaltonen, que eu fingi saber quem era, claro, e depois, consultando a sagrada internet, descobri que deveria saber mesmo. Aaltonen, que tem 71 anos, foi campeão europeu de rali em 1965, seis vezes vice-campeão do Safari Rally, terminou o Rali de Monte Carlo em terceiro na geral em 1963 com o Mini igual àquele e ainda ganhou algumas provas do Mundial, tendo sido piloto oficial da Datsun, Fiat, Opel, Ford, SAAB e, possivelmente, da Gurgel.

Falei pro cara eu que também corria de carros antigos, ele perguntou qual e eu respondi que era DKW e agora é Lada, e ele não me pareceu muito impressionado. Na hora de ir embora, olhou para Gerd com um ar condescendente e me desejou boa sorte, o que me irritou um pouco e eu disse que não precisava de sorte. Ele, sim, com aquela caixa de fósforos disfarçada de carro.

E nada de muito mais notável aconteceu neste dia passado quase todo na estrada até chegar ao pé dos Alpes onde se encontra Salzburg, a cidade de Mozart, onde já estive pelo menos duas vezes, muito tempo atrás, e mesmo tendo chegado pela estradinha, e não pela estradona, reconheci uma ou outra esquina, e assim que dobrei à direita, putz, olha o hotel ali, não precisei bater muita perna, Gerd está neste momento descansando tranqüilo ao lado de um belo Scirocco, o carro mais bonito, dos novos, que vi por aqui, e amanhã vamos para Munique de tarde, é mais perto, 150 km, coisa rápida, a última jornada.

Acho que ficaremos emocionados, mas não há de ser nada. Alemães orientais sabem conter suas emoções. Vamos ficar bem.