Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, IMOLA

SÃO PAULO (é pena) – Não tem mais GP de San Marino. Talvez, por esses dias, em vez de reproduzir algum antigo Diário de Viagem falando de Barcelona, eu devesse recuperar um ou outro texto sobre Imola. “Mais Senna?”, vai perguntar alguém. Não. Até tem, todo ano a gente escrevia sobre Senna, mas eu prefiro […]

SÃO PAULO (é pena) – Não tem mais GP de San Marino. Talvez, por esses dias, em vez de reproduzir algum antigo Diário de Viagem falando de Barcelona, eu devesse recuperar um ou outro texto sobre Imola. “Mais Senna?”, vai perguntar alguém. Não. Até tem, todo ano a gente escrevia sobre Senna, mas eu prefiro outros escritos. Que nem fizeram parte do meu livro, foram rabiscadas, essas palavras abaixo, depois da publicação de “O Boto do Reno” (aliás, quem não comprou, que compre! É só escrever direto para minha editora, a Alessandra Alves, que atende no e-mail aalves77@hotmail.com e, além de tudo, é bonita e simpática).

Faz cinco anos que fui a Imola pela última vez. Em 2006 o GP de San Marino se despediu do calendário. O autódromo foi reformado, mas nunca mais se falou em outra corrida por lá. Eu adorava esse GP. Principalmente por causa de um grande amigo, Paolo Sandri. É dele que falo abaixo. Isso aí foi escrito em maio de 2005.

PAOLO SANDRI

Paolo Sandri está morto. No ano passado, ele me disse que ia morrer. Simples assim. Quando eu falei “até o ano que vem” no dia de ir embora, mesmo achando que não viria nunca mais para cá porque pensava que esta corrida ia acabar, ele me disse: “É, vamos ver. Acho que morro antes.”

Paolo Sandri morreu, foi sua mulher, Patrizia, quem me contou quinta-feira, quando cheguei ao hotel. Antes que eu perguntasse por ele. Como assim, morreu? Morreu. Faz dois meses e meio. Como assim? Como alguém morre desse jeito, sem avisar, sem pedir permissão? Patrizia nem respondeu, me deu a chave do quarto 130 e falou, correndo porque estava atrasada para não sei o quê, que a gente já sabia que ia acontecer, por que o espanto?

Bem, pode-se acusar Paolo Sandri de qualquer coisa, menos de não cumprir promessas. Não se assustem com a morbidez do comentário, ele diria o mesmo se eu tivesse morrido assim, tendo avisado um ano antes.

Não fiquei deprimido quando Patrizia me contou, é verdade, a gente já sabia. Fiquei apenas triste, mas Paolo Sandri não era dado a tristezas. Mesmo nos últimos anos, quando os problemas se agravaram e ele teve de fazer um transplante de fígado, e passava horas em sessões de hemodiálise, não apagava o sorriso, não esquecia o bom-humor, era quase cruel ao fazer piada de si mesmo.

Um grande cara, que conheci há 15 anos, quando vim cobrir pela primeira vez o GP de San Marino. Albergo Franca, Riolo Terme, uma cidadezinha do interior da Itália como tantas outras, o chão de linóleo, o pé-direito alto, a lâmpada fraca e amarelada, o chuveiro que ensopa o banheiro, nada nunca mudou no Albergo Franca de Paolo Sandri, sua mulher Patrizia e seu filho Andrea, que hoje deve ter quase 20 anos e era um garotinho que corria o dia todo pelo salão do restaurante se escondendo dos hóspedes, quando entrei pela primeira vez no Albergo Franca.

Só não fiquei lá uma vez, em 1994, bem no ano em que o Senna morreu. Fui parar alguns metros adiante, em uma pensão parecida, na mesma rua, não lembro bem que cagada Paolo Sandri fez que esqueceu de reservar meu quarto, mas consertou arrumando outro e me convocando para jantar no Albergo Franca todas as noites, sem pagar.

Paolo Sandri que quando eu chegava tarde do autódromo me dava um esporro e ia para a cozinha esquentar meu macarrão, me chamando de nano finocchio. Depois me puxava para a pequena sala de TV na entrada do Albergo Franca, tirava um expresso da máquina, servia uma sambuca com grãos de café flambados e ria quando eu queimava a boca no cálice. E ficava horas dispondo sobre a vida e o mundo para me ensinar a falar italiano direito.

Paolo Sandri que amava a Juve sobre todas as coisas, e que tinha num quadro na parede os ingressos dos jogos a que assistia, até aquele Brasil x Itália no Sarriá em 1982.

Paolo Sandri que quando descobriu a internet, sabendo que não tinha muito tempo pela frente, comprava passagens de última hora a preço de banana pelo computador para viajar com Patrizia e Andrea para o Egito, a Líbia, Marrocos, Senegal.

Paolo Sandri que uma vez quase me tocou do Albergo Franca porque arrebentei com o sistema todo de PABX ao tentar conectar meu computador na linha telefônica com uma gambiarra direto nos fios na parede.

Paolo Sandri tinha 55 anos e eu perdi um amigo.

O que estou fazendo aqui?