DIÁRIOS, IMOLA

SÃO PAULO (é pena) – Não tem mais GP de San Marino. Talvez, por esses dias, em vez de reproduzir algum antigo Diário de Viagem falando de Barcelona, eu devesse recuperar um ou outro texto sobre Imola. “Mais Senna?”, vai perguntar alguém. Não. Até tem, todo ano a gente escrevia sobre Senna, mas eu prefiro outros escritos. Que nem fizeram parte do meu livro, foram rabiscadas, essas palavras abaixo, depois da publicação de “O Boto do Reno” (aliás, quem não comprou, que compre! É só escrever direto para minha editora, a Alessandra Alves, que atende no e-mail [email protected] e, além de tudo, é bonita e simpática).

Faz cinco anos que fui a Imola pela última vez. Em 2006 o GP de San Marino se despediu do calendário. O autódromo foi reformado, mas nunca mais se falou em outra corrida por lá. Eu adorava esse GP. Principalmente por causa de um grande amigo, Paolo Sandri. É dele que falo abaixo. Isso aí foi escrito em maio de 2005.

PAOLO SANDRI

Paolo Sandri está morto. No ano passado, ele me disse que ia morrer. Simples assim. Quando eu falei “até o ano que vem” no dia de ir embora, mesmo achando que não viria nunca mais para cá porque pensava que esta corrida ia acabar, ele me disse: “É, vamos ver. Acho que morro antes.”

Paolo Sandri morreu, foi sua mulher, Patrizia, quem me contou quinta-feira, quando cheguei ao hotel. Antes que eu perguntasse por ele. Como assim, morreu? Morreu. Faz dois meses e meio. Como assim? Como alguém morre desse jeito, sem avisar, sem pedir permissão? Patrizia nem respondeu, me deu a chave do quarto 130 e falou, correndo porque estava atrasada para não sei o quê, que a gente já sabia que ia acontecer, por que o espanto?

Bem, pode-se acusar Paolo Sandri de qualquer coisa, menos de não cumprir promessas. Não se assustem com a morbidez do comentário, ele diria o mesmo se eu tivesse morrido assim, tendo avisado um ano antes.

Não fiquei deprimido quando Patrizia me contou, é verdade, a gente já sabia. Fiquei apenas triste, mas Paolo Sandri não era dado a tristezas. Mesmo nos últimos anos, quando os problemas se agravaram e ele teve de fazer um transplante de fígado, e passava horas em sessões de hemodiálise, não apagava o sorriso, não esquecia o bom-humor, era quase cruel ao fazer piada de si mesmo.

Um grande cara, que conheci há 15 anos, quando vim cobrir pela primeira vez o GP de San Marino. Albergo Franca, Riolo Terme, uma cidadezinha do interior da Itália como tantas outras, o chão de linóleo, o pé-direito alto, a lâmpada fraca e amarelada, o chuveiro que ensopa o banheiro, nada nunca mudou no Albergo Franca de Paolo Sandri, sua mulher Patrizia e seu filho Andrea, que hoje deve ter quase 20 anos e era um garotinho que corria o dia todo pelo salão do restaurante se escondendo dos hóspedes, quando entrei pela primeira vez no Albergo Franca.

Só não fiquei lá uma vez, em 1994, bem no ano em que o Senna morreu. Fui parar alguns metros adiante, em uma pensão parecida, na mesma rua, não lembro bem que cagada Paolo Sandri fez que esqueceu de reservar meu quarto, mas consertou arrumando outro e me convocando para jantar no Albergo Franca todas as noites, sem pagar.

Paolo Sandri que quando eu chegava tarde do autódromo me dava um esporro e ia para a cozinha esquentar meu macarrão, me chamando de nano finocchio. Depois me puxava para a pequena sala de TV na entrada do Albergo Franca, tirava um expresso da máquina, servia uma sambuca com grãos de café flambados e ria quando eu queimava a boca no cálice. E ficava horas dispondo sobre a vida e o mundo para me ensinar a falar italiano direito.

Paolo Sandri que amava a Juve sobre todas as coisas, e que tinha num quadro na parede os ingressos dos jogos a que assistia, até aquele Brasil x Itália no Sarriá em 1982.

Paolo Sandri que quando descobriu a internet, sabendo que não tinha muito tempo pela frente, comprava passagens de última hora a preço de banana pelo computador para viajar com Patrizia e Andrea para o Egito, a Líbia, Marrocos, Senegal.

Paolo Sandri que uma vez quase me tocou do Albergo Franca porque arrebentei com o sistema todo de PABX ao tentar conectar meu computador na linha telefônica com uma gambiarra direto nos fios na parede.

Paolo Sandri tinha 55 anos e eu perdi um amigo.

O que estou fazendo aqui?

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Gustavo Oliveira
Gustavo Oliveira
13 anos atrás

Muito boa. Sinto falta de Imola no calendário, mas tenho certeza que 99% dos meus compatriotas não pensa assim.

Orlando Salomone
Orlando Salomone
13 anos atrás

Acho que perder um amigo só não é pior que perder um filho. Porque amigo é a única coisa que a gente escolhe, ou nos escolhe. Quanto ao texto, nem preciso dizer que é ótimo. Mas digo assim mesmo. Abraço.

Cleiton
Cleiton
13 anos atrás

Rapaz, é um orgulho ter um brasileiro como tu.

Faz-nos sentir que apesar de todos os defeitos inerentes ao ser que é humano que no fundo somos mais humanos, seus textos transbordam humanidade e emoção.

Sem frescuras, Paolo Sandri se emocionaria ao ler isto.

ssfernandes
ssfernandes
13 anos atrás

O que falar sobre as perdas? São irreversíveis.
Alguns anos atrás perdi muitas pessoas queridas.Amigos, meu pai e parentes próximos . Em 2007 meu marido faleceu, aos 47 anos , vítima da mesma doença que seu amigo Paolo.
Os médicos me orientam, faço exame periodicamente.Eles acham que tenho a mesma doença.
Diante de tais acontecimentos, decidi tomar uma postura diante da vida .
Quando vc diz que seu amigo Paolo sabia que não tinha muito tempo pela frente , ele sabia o que estava fazendo.Estava tentanto viver a vida da melhor maneira possível , que é o melhor que temos para fazer …( enquanto ainda há tempo).
Um forte abraço
Silmara-Campinas

Nelson de Sá Junior
Nelson de Sá Junior
13 anos atrás

FG, já te pedi uma vez a um bom tempo e peço novamente…

Publique textos inéditos que você ainda não publicou… Fui um dos primeiros a comprar o Boto e gostaria muito de ler mais destas escritas…

Abraços,

Junior.

Gabriel, o Pensador
Gabriel, o Pensador
13 anos atrás

Nâo é por nada, mas esses seus textos são muito bons!!

José Leão
13 anos atrás

Olá Flavio.

Parabéns pela escrita, como sempre fantástica.
Sob seus escritos “A moça de Montreal” é um dos meus preferidos, o que será que a turma acha?

Vortec
Vortec
13 anos atrás

FG, procura ai o texto de Barcelona. Estive lá semana passada, por pouco nao pego a corrida. Coloca o texto ai, quero ver oq escreveu dessa bela cidade. Valeu.

Ubirajara Martins
Ubirajara Martins
13 anos atrás

Amigo FG, o Paolo teve um problema no fígado, bem como o empresário do Senna e estão mortos. Eu também tive e estou vivo claro!
Acredito que se um dia voce puder se inteirar da doença que os mataram (Hepatite C) provavelmente irá colaborar com os portadores que na maioria das vezes nem sabem que estão doentes. É o que eu tenho feito.
Abração

Harry Walendy
Harry Walendy
13 anos atrás

Parabéns, linda história. Emocionante.

Augusto
Augusto
13 anos atrás

Belo texto, FG.

Falando em Ímola, mal posso esperar aquele em que você revela que e porque tem antipatia pelo Senna, hehe.

Quero ver a viuvarada louca!

Zé Alonso
Zé Alonso
13 anos atrás

Belo texto…sem mais!

Guilherme - RJ
Guilherme - RJ
13 anos atrás

Flávio,

Na boa, as vezes me da vontade de te dar umas porradas …. Vai escrever bem assim na casa do C… Onde compro seu livro ?
Um Abraço

Domingos
Domingos
13 anos atrás

Você pilota um carro que só nos dá tristeza em acompanhar suas corridas mas seus textos são de uma beleza impar.

ivo zangirolami junior
ivo zangirolami junior
13 anos atrás

sem comentários…

Marcog
13 anos atrás

Você é um cara chato pra cacete. Mas, putz grila, como escreve bem.

Este texto (lembro dele na época que foi postado), e aquela carta que fez para seu caçula qdo ele nasceu, são os melhores.

Parabéns.

Willian
Willian
13 anos atrás

Quando você ferrou o PABX dele, levou choque?

Realmente ele devia ser amigão seu… Pena que essa é a unica certeza da vida. Lindo texto! Nos faz refletir!

Alan Barros Nogueira
Alan Barros Nogueira
13 anos atrás

Eu já tinha lido esse texto antes, e foi um dos mais marcantes para mim entre aqueles escritos por você. Principalmente porque eu sempre considerei a amizade a única coisa de verdade a nos manter nesse mundo chato.
E eu leio o texto novamente, num dia em que estou num desespero mudo, porque sinto que estou perdendo uma amiga…
Seus textos são mágicos cara, sempre mantenha-nos lendo.

Spada
Spada
13 anos atrás

Linda história,

Sou descendente de familia Italiana (pai, avós, tios, primos etc) e sei bem o que é isso de você chegar em casa e eles irem direto a cozinha para preparar algo per mangiare, te colocar um apelido e depois ficar conversando até altas horas.
Coisas de italiano mesmo, infelizmente perdeu um grande amigo.

Abs

luciano
luciano
13 anos atrás

Bom. não conheci Paulo.. mas tive Paulos na minha vida….. meus amigos que se foram……. e que vivem em paz…
Mas o mais importante é tentar entender que não estamos aqui só por estar e que sempre haverá um motivo , que não sabemos, mas.. um motivo por estarmos aqui…aprender? ensinar?….. enfim evoluir…. e é isto que eu quero para mim e desejo a todos… apenas a aceitar o que nos é de direito … da melhor forma possivel!
Flavio tb não sei o pq, mas é muito bom viver….. ah isso é!
Abraxxxxxx

ags
ags
13 anos atrás

já disse antes..bem antes..vce quando quer…e sabe muito bem usar o seu lado de poeta..ou coisa assim…a morte meu caro FG…deixa apenas lembranças….mas que em transito da vida,voltamos…e sempre tenha certesa…seu amicci Paolo..é vida…pensa…pensa..só isso……..belo texo rapaz…s x vce é melhor atras dessas letrinhas do que,atrás daquele MOMO do 69………. valeu……..rss

diego berquatto
diego berquatto
13 anos atrás

perfeito!! tu és o cara.. e paolo também, com certeza.

Marco Nunes
Marco Nunes
13 anos atrás

Gosto quando você escreve assim…

Paulo Vinícius
Paulo Vinícius
13 anos atrás

Flávio, também não sei…

se descobrires, me avise, talvez esteja aqui por uma razão parecida..

Meu, como tu mandas bem nos seus textos, como consegues transmitir com palavras sentimentos tão lindos.

Saudações,

Paulo (sua fonte obscuramente oculta do clima na regiçao oeste da capital)

Nilton "Boca'
Nilton "Boca'
13 anos atrás

amizades não se medem com o tempo ou a distância, permanecem intactas mesmo quando já não conseguimos ouvi-los !!!

Alexandre Lourenço
Alexandre Lourenço
13 anos atrás

Vc matou ele de raiva mas compensou com muita alegria tambem !!!!

Guilherme Prata
Guilherme Prata
13 anos atrás

Ótima crônica.
Eu tenho saudade das corridas de San Marino. Sempre ocorria corridas interessantes.

Rodrigo Pacheco
Rodrigo Pacheco
13 anos atrás

Cara, tu escreve muito bem. Parabéns.

Fábio Amaral
Fábio Amaral
13 anos atrás

Lindo o texto! Parabéns Véio, teus relatos sobre as viagens são espetculares!

Maxwell Barbosa Medeiros
Maxwell Barbosa Medeiros
13 anos atrás

Morreu novo.

José Brabham
José Brabham
13 anos atrás

Muito bom o texto… mas, gambiarra com PABX?!!

Gabriel
Gabriel
Reply to  José Brabham
13 anos atrás

Essa do PABX me fez chorar de rir… Belíssimo texto, Flávio!

Túlio Parodi
Túlio Parodi
13 anos atrás

Bela história, Flávio. E a vida continua…

Lucas Rafael Chianello
13 anos atrás

Que fera o texto! Que fera o Paolo Sandri ser juventino! Que fera este relato!