Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, MÔNACO

SÃO PAULO (antes que me esqueça) – Baita coincidência. Estava catando algum texto da linhagem “Diários de Viagem” com referências a Mônaco e lembrei que o que dá o nome ao meu livro foi escrito por aquelas bandas, nos idos do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2004. Bom, está aí embaixo. […]

SÃO PAULO (antes que me esqueça) – Baita coincidência. Estava catando algum texto da linhagem “Diários de Viagem” com referências a Mônaco e lembrei que o que dá o nome ao meu livro foi escrito por aquelas bandas, nos idos do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2004. Bom, está aí embaixo. O livro, esse vocês ainda podem comprar com minha editora Alessandra Alves direto pelo e-mail aalves77@hotmail.com. “Tá vendendo que nem pão quente”, ela me disse, antes de sair para disputar a Maratona de Cabul.

O BOTO DO RENO

(Abro com parênteses, já antecipando ao douto leitor que este texto está de antemão prejudicado por um tremendo infortúnio. Ao iniciar minhas viagens tenho por hábito rabiscar em papéis esparsos, blocos avulsos, onde quer que se escreva, anotações para este famigerado Diário. Servem-me como guia, como fazem os organizados ao elencar tópicos que serão abordados numa reunião ou palestra. Trouxe, o hábito de rabiscar anotações, não de reuniões, nem de palestras; das primeiras, raramente participo; nas outras, que profiro por vezes, sempre me lembro de listar tópicos quando já não há mais tempo para tal, e isso transforma minhas palestras numa bagunça generalizada de idéias e frases soltas atiradas na direção dos pobres estudantes, que é a quem falo, e que não entendem nada, mas no final me acham um cara legal. Vem, o hábito, de minha memória ruim. Por isso anoto as coisas. E quando as perco, como sucedeu no caso deste texto que ora inicio, nada mais me resta do que tentar escrever com o que sobra de minhas lembranças, não sem antes me perguntar: onde foi parar a porra do papel? Paciência. Essas anotações perderam-se para todo o sempre. É uma pena, porque rabisco mais sentimentos que fatos. Instantâneos d’alma, não d’olhos. Sou muito bom em apóstrofos, que pensava chamarem-se apóstrofes, ainda bem que consultei o dicionário.)

Registre-se: na noite do dia 19 de maio de 2004, pela primeira vez, meu filho me telefonou.

Lembrarei para sempre onde eu estava, o ponto exato do planeta em que me encontrava quando tocou o celular. Sou um homem moderno. Possuo um aparelho GSM, sigla cujo significado apenas intuo, foi comprado recentemente. Ele funciona na Europa graças a um pequeno cartão que, disse-me a moça da companhia telefônica (operadora, para usar termo mais atual), registra todos meus dados. Todos?, perguntei, e ela garantiu que sim. Saí da loja com a sensação de saber mais da vida que aquela moça, o cartão do meu telefone não sabe picas de mim, não tem dado nenhum sobre mim, exceto os telefones de outras pessoas, uma agenda. Dados importantes sobre mim, nenhum, asseguro. Meu telefone não desconfia que gosto de tomar caipirinha. É um dado relevante sobre mim e ele não tem. A moça da operadora exagerou nos poderes do cartão.

Estava num calçadão em Menton, pequena cidade colada em Mônaco. Saía de jantar agradável e voltava a pé ao hotel, quando soou o toque inconfundível de meu GSM e do outro lado da linha a voz grave e rouca: Oi, pai.

Eu deixei um cartão com meus filhos antes de sair de casa. Nele constam meus telefones, do escritório, de casa, do fax, o e-mail, informações necessárias quando se formaliza uma apresentação. Dei meu cartão aos meus filhos, o que parece uma tolice, mas eles já lêem os números e recentemente aprenderam a discar (teclar; desculpem a antiguidade no redigir) no telefone, por isso ganharam um cartão de visitas do pai. Fiz um quadradinho em torno do número do celular, olha aqui, chegando da escola é só ligar esses números aqui, não esquece de apertar o botão vermelho para dar linha.

E no primeiro dia de Europa toca o telefone, eram 19h04 do dia 19 no Brasil, quatro minutos do dia 20 no sul da França, e do outro lado: Oi, pai.

Foi, disparado, o evento mais importante de um périplo de quase duas semanas, aquele grave e rouco Oi, pai, sem palavras preliminares como alô, quem fala, quer falar com quem. Um essencial Oi, pai, que era isso que ele queria, apenas, dizer oi ao pai. Aquele cartão, papelzinho, como ele batizou o cartão cheio de números e funções, foi guardado na mochila da escola, e quando ele chegou em casa a primeira coisa que fez foi ligar para o pai para dizer oi. Era o que ele teria pelos próximos 15 dias, um papelzinho para dizer oi ao pai.

O mais novo também quis falar e igualmente sem grandes rodeios foi direto ao assunto. Quando é que você vai voltar, e ficou bem difícil explicar a linha do tempo, terça-feira da outra semana, que é algo que vai além de semana que vem. Para o mais novo, qualquer coisa que vá acontecer no futuro, seja o futuro daqui a um minuto ou daqui a um século, é amanhã. Amanhã?, perguntou, e eu não soube como explicar direito que ia demorar um pouco mais. Está demorando muito, pai.

E pelos 15 dias seguintes tudo que fiz foi esperar, perto da meia-noite européia, aquele oi, pai, grave e rouco, o que muito me alegrou a cada toque do celular GSM, é gostoso receber um telefonema dos filhos, minha mãe tem razão de reclamar que não ligo nunca. É que nunca tenho muito para falar, embora um singelo oi, pai, ou oi, mãe, sejam suficientes, a recente experiência com meu GSM comprova isso.

Quando e se for a Menton de novo algum dia, farei questão de voltar àquele calçadão, onde pela primeira vez recebi um telefonema dos meus filhos.

Menton fica na fronteira com a Itália. Na sexta-feira, corri até a Itália. Tenho falado com alguma frequência sobre esse negócio de correr. Não sou um fanático, longe disso, e sequer corro muito. Por não ter corrido quase nada a vida inteira, elevo esses trotes em ritmo acelerado à categoria de acontecimentos ímpares, que de banal nada têm. Devo ter corrido uns cinco quilômetros até a Itália e considero tal feito digno de nota. Muito me espantam aqueles que correm longas distâncias quando contam com ar blasé que correram dez ou quinze quilômetros naquela manhã, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Como? Dez quilômetros? E não saiu na televisão?

Corro menos, mas aproveito esses momentos de extrema solidão para pensar. Penso enquanto corro, é o que resta a fazer. Estabeleço algumas metas para não desistir no meio do caminho. Em Menton: tem um circo lá, vou até o circo. Mais adiante, uma placa indicando Itália a um quilômetro, vou até a Itália. Ajuda motivacional, o circo e a placa da fronteira, até onde cheguei para me sentar esbaforido e destruído numa mureta, de costas para o mar, com o pé esquerdo na França e o direito na Itália. Uma façanha. Dependendo da precisão daquela linha fronteiriça, posso ir além: metade da bunda na França, metade na Itália. Notável. Na encosta do morro à minha frente, tinha uma casa. Aquele ali pode indicar em qualquer mapa-múndi onde mora, foi o que pensei. Correr deixa a gente sem muito oxigênio no cérebro, por isso acho que só penso bobagens como essa.

Mas não seria honesto de minha parte afirmar que os pensamentos, ao correr, sejam todos bobos como esse da bunda e do mapa. Devo admitir e reconhecer, prostrado diante dos deuses do atletismo, se é que existem, que tem me feito bem à mente correr de vez em quando. De Mônaco fui para Frankfurt e, com um monte de dias pela frente sem nada de especial para fazer, rumei para Koblenz, cidade por onde há anos passo e vejo da estrada, sem nunca ter tido a dignidade de parar.

Cheguei no meio da tarde e fui correr de novo, estou virando um verdadeiro fundista, e escolhi o Reno como cenário, desconsiderem aqui qualquer presunção, é que correr na beira do rio é bom. Fazia frio e lá fui eu, o ar gelado entrando pelas narinas e ferindo a garganta, mas fui em frente, eu e o rio à minha direita, olhando para mim. O objetivo era aquela ponte lá longe, por onde passava um trem. E fui, fui, e cheguei à ponte. E subi por um barranco, atravessei a linha do trem, devo ter cometido várias irregularidades, e cruzei a ponte, e parei para ver o trem passar a centímetros de mim, e abria um sorriso infantil a cada trem, adoro trens. E quando a tarde caía em Koblenz na beira do rio, tive a impressão de ter visto um peixe grande pulando e me acompanhando em minha correria, foi meu companheiro até que deixei a margem do rio, será que existe boto cor-de-rosa no Reno? Daria uma bela crônica, mas não há botos no Reno e acho que não era peixe nenhum, foi só impressão, inventei um companheiro fantástico só para espantar a solidão e o silêncio, sabendo que era tudo de mentira.

As cidades alemãs são silenciosas ao cair da tarde.

No dia seguinte fui a Colônia, cheguei à noite, antes fui visitar um amigo nas redondezas que vende peças para os carros velhos que tenho, mas não comprei nada desta vez, tudo muito caro. Almoçamos na sua casa, comida chinesa com vinho chinês. É uma família, a deste meu amigo, muito amistosa e generosa, mas bem que ele podia fazer um desconto naquele jogo de pistões. Bem, isso não interessa.

Colônia tem uma imensa catedral. E o Reno passa por lá também. Um amigo indicou um passeio de bicicleta, para quem tem pouco tempo é uma opção boa para se conhecer uma cidade da qual você só sabe o nome e só consegue enxergar a catedral. Cheguei ao lugar onde se alugam as bicicletas em cima da hora, quando a guia já estava saindo com um casal de alemães. Creio que estraguei o passeio de todos. Da guia, porque foi obrigada a traduzir suas explicações para inglês. Do casal, porque tinha de esperar pelas traduções a cada parada.

Absorvi o possível desse passeio de quatro horas de bicicleta por Colônia. As traduções eram em versão resumida, o que ela gastava cinco minutos para explicar ao casal, comigo virava um. Entramos em várias igrejas e gostei de aprender que Colônia teve 96% de suas construções destruídas na Segunda Guerra e que só pouparam a enorme catedral porque era um bom ponto de referência para os bombardeios aliados. Quando reconstruíram a cidade, descobriram centenas de sítios arqueológicos da época dos romanos, a guerra serviu para alguma coisa, afinal.

A guia falava mal inglês e, embora bonitinha e simpática, não tinha muita paciência para me explicar tudo direito, e por isso limitar-me-ei aos 96% que aprendi, contra números não há argumentos. Tinha uma história de uma mulher de imperador que por lá passou e depois matou o marido e voltou para Roma porque achava Colônia um saco, parece que era a mãe de Nero, e parece que Nero a matou, também, e nessas coisas de família não me meto.

O que aconteceu depois foi o de sempre, uma corrida, um que ganha, outro que perde, jantares com todo mundo no restaurante de sempre, risos, conversas em voz alta, piadas, casos contados, momentos que ficam guardados, por agradáveis que são, isso é inegável, mas nada foi igual àquele oi, pai, e qual a importância, afinal, de um telefonema no meio da noite em Menton?

Toda.