Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, CANADÁ

SÃO PAULO (de volta) – Buenas, macacada. Não, não esqueci. Domingo tem GP do Canadá. Então, textinho antigo dos meus Diários de Viagem, 2003, creio. Saindo de Montreal para ir a Indianápolis, uma escapada pelas estradas do meio-oeste americano, uma pequena descoberta. Este texto está em “O Boto do Reno”, meu único livro publicado, que […]

SÃO PAULO (de volta) – Buenas, macacada. Não, não esqueci. Domingo tem GP do Canadá. Então, textinho antigo dos meus Diários de Viagem, 2003, creio. Saindo de Montreal para ir a Indianápolis, uma escapada pelas estradas do meio-oeste americano, uma pequena descoberta.

Este texto está em “O Boto do Reno”, meu único livro publicado, que minha editora Alessandra Alves negocia com alegria pelo e-mail aalves77@hotmail.com.

BRAZIL, INDIANA

Quando era mais jovem, alimentava um desejo juvenil de cruzar a Route 66. Tinha lido um livro de Jack Kerouac, o ícone da geração beat, e aquela história de encontros e desencontros e loucuras pelas estradas americanas me seduziu o bastante para tomar a decisão inapelável: quando eu crescer, vou alugar um Bel Air conversível e cruzar a Route 66 tomando Jack Daniels. Até hoje não sei onde fica a Route 66, vagamente suponho que saia de Chicago em direção ao oeste, Los Angeles ou San Francisco, já ouvi dizer também que foi desativada, mas estou com o mapa aqui ao lado e não localizo o diabo da estrada, achei a 61 e a 67, mas da 66, nada. O mapa é limitado, coitado, tem um pedaço de Illinois, um de Missouri, um de Indiana, uma ponta de Michigan e quase todo o Wisconsin. Foi o que me deram na locadora. Por isso, se a 66 ficar em algum outro canto, não vai aparecer no mapa. Mas é algo que já não me interessa. E, de qualquer forma, não sei se alugam Bel Airs conversíveis por aí.

No fundo, ainda bem que não levei a cabo a idéia besta de brincar de Kerouac. Afinal, não estamos nos anos 50 ou 60. Eu ficaria aborrecido depois de dez ou quinze quilômetros, como vinha sendo profundamente aborrecido o trajeto de Chicago a algum lugar que eu não sabia direito onde seria, por ter chegado à noite de Montreal e decidido pegar um carro e sair sem destino. Uma aventura e tanto, imaginei, rasgar as estradas da América para parar onde me desse na telha.

Estanquei numa cidade cujo nome desconheço, sei apenas que já era em Indiana, comi um sanduíche com gosto de isopor e me enfiei num desses milhares de hotéis de beira de estrada que terminam em Inn, vocábulo que quer dizer exatamente isso, estalagem de beira de estrada. Estava cansado e com sono e com o saco cheio. A perspectiva de esbarrar em algum sítio minimamente interessante a caminho de Indianápolis era remota. Notei logo de cara, ao parar num posto de gasolina para comprar cigarros. Tomei de um mapa mais amplo e detalhado, que levei ao caixa, abri diante do gordo de plantão e perguntei se havia algo para ver pelas redondezas. O rapaz me disse que não sabia, porque nunca tinha saído de Chicago na vida, mas se prontificou a me apontar points of interest no mapa, assinalados com quadradinhos magenta, esta indefinível cor que é magenta mesmo, e eu retorqui que eles, americanos, achavam qualquer merda interessante, por isso carecia de credibilidade aquela sucessão de quadradinhos magenta entre Chicago e Indianápolis. Ele concordou por concordar, interessou-se mais pelo meu relógio, decepcionando-se quando informei que era falso. Péssima idéia, porque paguei a conta com uma nota de cem dólares imediata e justificadamente colocada sob suspeita, dados meus antecedentes recém-revelados.

Devolvi o mapa, não sem antes notar que ele vinha acompanhado de uma bússola, instrumento deveras útil nos Estados Unidos, muito engenhoso mesmo, já que se existe um lugar no mundo onde se leva a sério o norte, o sul, o leste e o oeste, é aqui. Deixei a bússola e o mapa com o gordo, aquele arremedo que me deram na locadora era o suficiente, e voltei ao meu Toyota cuja placa esclarece que Illinois é a terra de Lincoln. As placas de carro nos Estados Unidos são verdadeiras aulas de história e geografia, lendo-as o motorista atento nem precisa ir à escola, porque saberá onde nasceu Lincoln e que em Minnesota há dez mil lagos.

Os americanos têm uma vida bastante idiota e por isso se apegam nessas pequenas porcarias, que se vêem por todos os lados. Slogans, palavras de ordem, necessidade de conferir importância a fatos, eventos, habilidades e exclusividades cuja relevância no mundo dos vivos é zero. Tudo é único, maior, original, melhor ou predileto. Quando desci no aeroporto de Chicago, que deve ser o maior do mundo em alguma coisa, talvez em metros quadrados de carpete, a primeira coisa que descobri foi que o cartão Diners ganhou o Freddie Awards de programas de milhagem. E pelo sexto ano! Quem me informava, num cartaz luminoso enorme, era Steve não-sei-de-quê, arquiteto de campos de golfe, sorridente com seu Diners na mão. Será que alguém decide usar cartão Diners ao saber que ele ganhou o Freddie Awards seis vezes seguidas? Só porque Steve, o arquiteto, recomenda? Eu jamais usaria nada recomendado por um arquiteto de campos de golfe, cuja maior qualidade é espalhar buracos pela grama. E quem é esse Freddie do prêmio, afinal?

E é assim por onde se passa, na gloriosa América. Chega-se às raias do exagero, como a loja de carros usados de Walt Evans em Rensselaer, uma cidade do tamanho de um cu por onde passei, que se orgulha de ser “The home of the $2,195 car”, slogan devidamente registrado em âmbito nacional, ninguém mais nesta América de Deus pode se intitular o rei dos carros de 2.195 dólares, que Walt Evans mete-lhe um processo nos cornos. Tudo registered, tudo trade mark. Um verdadeiro pé-no-saco. E é por isso que meu semblante normalmente neutro e anônimo se revela francamente hostil a todos já quando entro no avião, transformando-me num terrorista em potencial quando começo a responder às perguntas do pessoal da imigração. Como não tenho visto de imprensa, porque o meu de turista vale até 2008 e não vou entrar na fila para pedir outro nem fodendo, quero que se dane, digo simplesmente que estou entrando na sagrada terra apenas para assistir a uma corrida, o que de pronto leva os agentes ao pânico ou, no mínimo, à suspeita pura e simples de que estou fazendo algo errado. O desta vez perguntou como é que eu fazia para pagar tantas viagens, é só nisso que eles pensam, em dinheiro, e eu ia responder que casei com uma mulher rica, mas preferi abreviar a conversa dizendo que era só uma vez por ano, apesar da profusão de carimbos no passaporte que denunciam, a quem sabe ler letras e números, que saio do Brasil uma vez a cada 15 dias. O cara encasquetou com o visto do Líbano. O que você foi fazer no Oriente Médio, acusou-me, e eu ia preparar outro discurso, mas falei apenas que passei por lá, e ele se deu por satisfeito e meteu mais um carimbo na minha fuça. E aqui estou.

Saí da autoestrada, ou highway, estamos na América, e decidi me livrar daquela paisagem medíocre de oásis com lanchonetes, hotéis e shoppings a cada entroncamento, todos iguais, absolutamente idênticos e calóricos, para pegar uma estrada menor, de número 231, direção sul, e tudo que passei a ver foi milho. Não sei se é assim no país todo, mas o fato é que o horizonte por estas bandas é amplo, e a gente vê nuvens negras por todos os lados, raios, a qualquer momento pode vir um tornado. A vantagem dessas estradas sem curvas e de horizontes largos é que você vê a merda em que está se metendo de longe. Sendo rápido e esperto, dá para fazer meia-volta e fugir da cagada que deve ser se enfiar no meio de um tornado. Nunca me enfiei num, enfim, e por isso estou apenas especulando. Pode ser que não dê tempo de escapar.

Cruzei cidades que não se parecem com nada, horrorosas e pobres, Hebron, North Demotte e Remington, esta última cuja principal atividade econômica me pareceu ser cortar grama, embora eu sempre tenha achado que era a fabricação de máquinas de escrever, de onde se conclui que o nome da cidade não faz o monge. Segui desinteressado rumo ao sul, já conformado em topar com a emocionante Indianápolis dois dias antes do tempo quando fui salvo pelo mapa. Descobri o Brazil.

Um pouco mais abaixo e à esquerda, falo sob a perspectiva cartográfica, encontrei Brazil. Uma cidade em Indiana com tal nome, perdida no meio-oeste desta América abençoada, a mim emergiu como uma dádiva. Brazil sempre esteve lá, eu que nunca tinha notado. E à surpresa e à excitação por ter feito uma senhora descoberta, que certamente me renderia um Prêmio Esso, seguiu-se uma vergonha solitária, alertado que fui por meu bom-senso, que anda meio em desuso, de que um Brazil nos Estados Unidos só devia ser novidade para mim mesmo, essa coincidência de nomes já deve ter sido assunto para reportagens em todos os jornais do Brasil com S, se bobear o Fantástico lá esteve com repórter, editor, produtor e câmera para registrar aquele pedacinho de Brazil bem antes. Não descobri o Brazil, asseverou-me o bom-senso.

Mesmo assim, decidi ir a Brazil, já que estava perto e minhas outras opções eram pouco promissoras, apesar de uma Paris do outro lado da fronteira, em Illinois, só que a Paris famosa fica no Texas, essa deve ser fajuta. Mesmo a particularidade de ter sido batizada com o nome de um país distante não chegava a ser algo ímpar, em Brazil. Em Indiana, por razões insondáveis, há uma Peru, uma Morocco, uma Lebanon e outras mais com referências a rincões longínquos, como Frankfort e Alexandria. Brazil era apenas mais uma dessas.

Insisti, pois, em valorizar a passagem inesperada. À primeira placa indicando Indianápolis à esquerda e Brazil à direita, estacionei o carro no acostamento, junto da entrada de uma casa aprazível, e obtive um retrato. No mesmo instante chegava ao lar a gorda dona da casa aprazível com sua filha pequena. Passou ao meu lado temerosa e parou bem adiante. Não abriu a porta de sua van enquanto eu não entrei no carro depois de cumprida minha missão jornalística de fotografar a placa. Sabe-se lá, a América é cheia de loucos e eu podia estar com um rifle pronto a abater mulheres gordas com filhas pequenas. Este mundo é muito perigoso e a gorda deve ter comentado o esquisito episódio que afetou sua rotina estúpida com seu marido gordo de noite, à mesa.

Cheguei rápido a Brazil e procurei com afinco alguma referência ao Brasil que não fosse o nome da cidade. O que chegou mais próximo foi um restaurante mexicano. Mas não me dou por vencido assim rápido, estacionei novamente o automóvel ao passar diante de um pequeno museu para tentar descobrir ao menos o por quê do nome, vai ver a cidade foi fundada por algum egrégio conterrâneo, mas o museu estava fechado. Por sorte, ficava em frente à prefeitura. Àquela altura, ninguém me impediria. Entrei para falar com o prefeito. Que para minha surpresa estava lá dando expediente.

Claro que nem em Brazil vai-se entrando na prefeitura e falando com o prefeito assim, sem mais nem menos. Passei por uma secretária que ficou sinceramente espantada ao se deparar com alguém do Brasil em Brazil. E ela chamou o prefeito, um rapazola mal passado dos 30 anos, de bigode e sem gravata, que atende por Thomas Arthur e me deu seu cartão. Foi simpático e solícito, mas não soube dizer porque Brazil se chama Brazil. Um tremendo mistério. Quis saber se ele já tinha estado no Brasil e Tom lamentou tal lacuna em sua vivência internacional, a mim deu a impressão de que o mais distante que já se afastou de Brazil foi Terre Haute, a 15 milhas dali, o que não o condena, afinal é prefeito de Brazil e nada mais, mas assegurou não ser um total ignorante nas coisas da América do Sul, já que sua mulher tem uma amiga na Argentina. Oh, admirei-me. Mas não tem nada do Brasil aqui, uma árvore, uma bandeira, um brasileiro, argüi, e ele me apontou orgulhoso uma foto na ante-sala de seu gabinete, uma fonte que foi presenteada pelo governo do Brasil na década de 50. Oh, disse eu, ainda mais admirado. Fui procurar a fonte, Tom me indicou o caminho.

Fica no conhecidíssimo Forest Park, defronte à sede local da American Legion. Gentileza de JK, doada em 1950, finalmente inaugurada em 26 de maio de 1956, e é uma réplica fiel do Chafariz dos Contos de Ouro Preto, Fountain of Tales, a original erguida entre 1745 e 1760 nas Minas Gerais, é o que diz a placa, mas suponho que há algum erro aí, nem no Brasil levam 15 anos para fazer uma fonte. Mas que seja. Em Brazil há um Chafariz dos Contos e nele está pregado o nosso brasão, a estrela de cinco pontas com o Cruzeiro do Sul no centro.

É claro que Tom, antes de me encaminhar ao chafariz, presenteou-me com um folheto bastante elucidativo sobre Brazil o qual muito apreciei, por informar que 97,4% de sua população é formada por brancos, 52,7% de mulheres, 47,3% de homens, idade média de 35,9 anos, taxa de desemprego de 5,2%, 88 dias sem nuvens por ano, 8.142 habitantes em 2000 e 8.188 em 2001, o que me levou a concluir que os brazileiros trepam pouco, sendo, assim, o que mais me chamou a atenção em Brazil, mais ainda que a fonte.

Não sei para onde vou amanhã, é ainda um dia livre, e faça-se justiça, esse amargor com a digníssima América deve-se mais ao presente que ao passado, em algum momento de minha vida rasgar as highways foi doce, onze anos atrás eu e ela saímos da Grande Maçã rumo ao norte igualmente sem roteiro, e foi tudo muito bom e lindo e ingênuo como éramos. Diz uma música, bela: “Eu ando pelo mundo/divertindo gente, chorando ao telefone/minha alegria, meu cansaço…/meu amor, cadê você?/eu acordei, não tem ninguém/ao lado.”

Sinto muito a falta dela ao meu lado e fico amargo pelo tempo que estamos perdendo, que há de voltar.