Blog do Flavio Gomes
Diários de viagem

DIÁRIOS, ALEMANHA

GUARUJÁ (fechando o botequim por hoje) – A mando de minha editora Alessandra Alves, em todas as semanas de corrida eu devo publicar algum texto antigo que está no meu livro. O meu livro é ela que vende, por e-mail, aalves77@hotmail.com. Alessandra Alves, minha editora, acredita que estes textos estimulam as pessoas a comprarem meu […]

GUARUJÁ (fechando o botequim por hoje) – A mando de minha editora Alessandra Alves, em todas as semanas de corrida eu devo publicar algum texto antigo que está no meu livro. O meu livro é ela que vende, por e-mail, aalves77@hotmail.com. Alessandra Alves, minha editora, acredita que estes textos estimulam as pessoas a comprarem meu livro. Eu já acho que ninguém mais lê textos desse tamanho.

MIL QUILÔMETROS DE SOLIDÃO (escrito em julho de 2003)

Aprendi muito entre o GP da Europa e o GP da França.

Aprendi que adoro andar de trem, algo que produz uma nostalgia de uma vida que não é a minha, que conheci já bem tarde, aos 25 anos, quando vim à Europa pela primeira vez, e só de trem andamos, eu e ela, éramos jovens e tudo nos espantava e nos deixava boquiabertos.

Aprendi que já há trens muito velozes na Alemanha, também, como os TGV franceses e os trens-bala japoneses. São bons, te levam rápido de um canto a outro, muito melhor do que viajar de avião. Falta o charme do barulho de trem, as rodas passando pelas emendas dos trilhos num suceder interminável que te dá sono, mas é um trem, afinal, sai de uma estação, pára em outras, uns descem e outros sobem com suas malas e vidas, encerra a viagem numa grande gare.

Aprendi que a gare de Munique é bela, pulsante, cheia de gente indo e vindo, já havia estado em Munique, acho que sempre digo que gosto da Alemanha, e gosto mesmo, um país inacreditável quando se sabe que há pouco mais de 50 anos estava de joelhos, todo arrebentado pela sanha de um homem.

Aprendi que os taxistas de Munique são quase todos imigrantes, ao menos o que peguei para ir ao hotel era, tomo o exemplo individual e generalizo, e não gostam de muito papo, apenas mostrei um papelzinho com o endereço, quinze minutos depois ele me apontou o valor da corrida, paguei, e ele foi simpático, tirou a mala do carro, jamais o verei de novo.

Aprendi que jamais verei de novo muita gente e muita coisa na vida, com quem a gente vai cruzando ao acaso, como o velhinho simpático e solícito do hotel em Munique, que reservei pela internet sem saber direito se o lugar era bom, e era muito bom, no norte, longe do centro, ao lado do maior parque da cidade, o Englisch Garten, que foi construído por certo kaiser ou imperador.

Aprendi que não é preciso fazer nada de especial numa cidade que não é a sua, e como ainda estava sol, muito calor, fim de tarde, coloquei um calção e uma camiseta, dez euros no bolso, um boné e resolvi sair correndo, correndo, mesmo, a pé, achar o parque, ver as coisas como um Forrest Gump sem destino, e corri, corri, corri, achei o parque, e comecei a ver coisas que nunca mais vou ver de novo, como o Trabant esquecido num quintal de uma casa dentro do parque, como a bandeira com o arco-íris pedindo paz pendurada na pequena varanda de um prédio também dentro do parque, provavelmente alojamento de estudantes, o parque fica perto da universidade.

Aprendi que há um lago no parque, um lindo lago, e o que o sol se derramando no fim de tarde em Munique sobre o lago é muito belo, e eu corria, corria sem parar, e tudo ia passando por mim muito rápido, e do outro lado do lago havia muita gente banhada pelo sol, e fui até lá correndo e correndo.

Aprendi que no verão eles abrem dentro do parque, ao lado do lago, um Bier Garten, jardim de cerveja, é o que quer dizer, e as pessoas se espalham por mesas compridas de madeira para tomar cerveja, comer salsicha e batata frita, e falam muito e bebem e riem e se rendem ao sol. Eu estava com fome e sede, parei de correr, resolvi me render ao sol e ficar ao lado daquela gente toda que nunca mais verei de novo, e meus dez euros deram só para a salsicha e a batata frita, a cerveja ficou para outro dia, fiquei com sede, matei a fome, e prometi a mim mesmo que um dia volto ali para tomar cerveja.

Aprendi que andar a pé sem destino, sem mapa, sem nada, é bom demais, e voltei a pé ao hotel sem obrigação de fazer mais nada, e liguei a TV num canal francês e vi um documentário sobre São Paulo, a minha cidade, falavam de tudo, trânsito, favelas, gigantismo, um documentário sobre uma das maiores cidades do mundo com seus problemas e encantos, francês é bom de documentários, e lá pelas tantas apareceu uma imagem do meu prédio, de onde moro! Caramba. Depois entrevistaram a prefeita, e ela fala francês direitinho, aprendi isso, também, que a prefeita fala francês, e que está fazendo uma porção de coisas boas em São Paulo que, morando em São Paulo, eu não sabia que ela estava fazendo. A gente não sabe de nada.

Aprendi na manhã seguinte que alemães são sempre muito pontuais, eu havia agendado uma visita à Audi, que fica em Ingolstadt, a 85 km de Munique, muito mais para ver o museu cheio de DKWs do que qualquer outra coisa, e faltavam cinco para as nove quando estacionou um belo Audi na rua, vi pela janela, era o motorista que me levaria para Ingolstadt.

Aprendi que de um dia para o outro o tempo muda muito, chovia e fazia frio, e meu motorista era simpático e dirigia rápido, me mostrou o estádio que estão fazendo na estrada para a Copa de 2006, e aprendi que ele gosta de futebol e que torce para o time pequeno de Munique, não o Bayern, mas o 1860, o que me deixou satisfeito porque também torço para um time que não é lá essas coisas, e aprendi que a gente pode ter algo em comum com alemães que nunca vimos e que nunca veremos outra vez.

Aprendi que se você é jornalista e solicita uma visita a um museu ou a uma fábrica mesmo que movido a interesses meramente pessoais, na Alemanha te recebem com grande solenidade e atenção, e foi assim que conheci quatro moças encantadoras que me guiaram pelo museu e pela fábrica, Angelika, Cecilia, Uta e Noeli, esta uma brasileira de Curitiba que fala duzentas línguas.

Aprendi uma porção de coisas sobre a Audi, a Auto Union, a DKW, a Horch, a Wanderer, mas não creio que isso interesse a todo mundo, por isso vou pular essa parte, guardo minhas lembranças da visita ao museu comigo mesmo, assim como as lembranças que comprei na lojinha, as miniaturas, as fotos, às vezes eu mesmo me assusto com essa paixão quase obsessiva por uma marca de automóvel que nem existe mais. Cada louco com sua mania, é o que digo sempre, para não esticar a conversa.

Aprendi que pêra com gorgonzola e figo fica bom, foi o que me serviram no restaurante chique da Audi, e aprendi muito sobre como se faz um carro na fábrica, um negócio impressionante com suas prensas monstruosas, seus robôs que pegam, levantam, transferem, colam, soldam, pintam, aparafusam, levam, trazem, calculam, e com os homens que operam tudo aquilo, e como é que pode de uma chapa de aço que entra de um lado sair um automóvel do lado de lá, e tão bom, bonito, perfeito.

Aprendi que meu carro saiu dali e que se eu procurar tem um caderninho no arquivo da fábrica onde está anotado tudo que nele foi feito, e quando, e como, e, principalmente, por quem. Quem colocou isso, quem apertou aquilo, quem testou, quem passou um paninho, e eu olhava para aqueles operários e operárias e me sentia um pouco amigo deles, afinal foi dali que saiu meu carro que me leva a todo canto, onde coloco meus filhos para viajar e para ir à escola, há um grau de intimidade aí. Não vou vender meu carro nunca.

Aprendi, quando saía da fábrica com um carro muito bonito, parente do meu, emprestado, que ficaria com saudades daquelas moças tão atenciosas. Era terça-feira, voltei a Munique, na quarta de manhã fui a Dachau.

Aprendi em Dachau, o primeiro campo de concentração da Alemanha, que somos, os seres humanos, uns merdas. Foi uma visita marcante, talvez a mais marcante de minha vida besta. Em Munique você pode fazer uma excursão a Dachau, é algo bem interessante, juntam-se algumas pessoas na estação, vão todos de transporte público, trem regional e ônibus, e uma moça que devia ser britânica era a guia.

Aprendi que não se deve falar muito nessas excursões, estava muito calado naquele dia, e foi em silêncio que passei aquelas horas vendo aquilo tudo. Não é o caso de dar aula de história. Tenho um livreto sobre Dachau aqui ao lado, repleto de dados e casos, pensei em escrever sobre isso, sobre os absurdos, a crueldade etc, mas essas coisas a gente sente, e cheira, e vê, e não sei se dá para contar direito. Uma hora, no fim da visita, quando passava pela alameda que ficava entre os barracões que alojavam os prisioneiros, chutei uma pedra e fiquei com dó dela. Trouxe a pedra. Tirei a pedra de lá. Pedras e insetos saíam de Dachau sem problemas na Segunda Guerra. Pessoas, não. Morriam lá dentro, empilhadas e doentes e torturadas, depois iam para o forno e viravam fumaça.

Aprendi sobre todos nós em Dachau, mas havia uma viagem pela frente, voltei ao hotel, comi uma salsicha num posto de gasolina, comprei um mapa, peguei o carro e dirigi 450 km até anoitecer. O mapa não era dos melhores, genericamente “Europa”, o que significa que incluía a Lituânia, o Uzbequistão e a Finlândia, e eu não ia para tão longe, mas para isso, hoje, há sistemas de satélite no carro que nos indicam as direções, em várias línguas.

Aprendi que dá para acordar na Alemanha, ir a Dachau, passar pela Áustria, parar na fronteira com a Suíça e entrar na França, tudo no mesmo dia, e fui seguindo, Memmingen, Kempten, Lindau, Saint Gallen, Zurique, Basiléia, parei em Mulhouse, já na Alsácia, uma região fronteiriça entre França e Alemanha onde se fala alemão, e onde há o maior museu de carros antigos do mundo, foi meio sem querer. Era uma coleção de dois irmãos que ao longo dos anos foram juntando carros, e acabaram falindo um dia, fugiram para a Suíça e quando o governo francês abriu o galpão que ninguém sabia direito o que tinha dentro descobriu centenas de carros, muitos do século 19, a maior concentração de Bugatti do planeta, hoje é uma atração internacional, dei muita sorte de achar esse museu, do qual já havia ouvido falar mas, repito, caí nele sem querer.

Aprendi que de Mulhouse a Magny-Cours, o destino final, seria possível ainda ver muita coisa, e entrei no carro e parti para mais 450 km de estradas, o sistema de satélite já não funcionava mais, era apenas para a Alemanha, e peguei o mapa e fui em frente, Belfort, Baume-jes-Dames, adoro esses nomes de cidades francesas, Dijon, Beaune, estradinhas, plantações de uva, vinícolas, a região da Bourgogne, ou Borgonha, acho que é como Borgonha que se traduz, Autun, Château-Chinon.

Aprendi que por esses caminhos se compram vinhos feitos ali mesmo, e que se pode degustar, e me deu uma vontade imensa de tomar vinho e escolhi uma dessas casas, parei, e o rapaz me atendeu e experimentei dois tipos como se entendesse muito. O segundo, ele me disse, era mais “fruté”, concordei, é mais fruté, mesmo, me dá uma dessas, e saí contente da vida com minha garrafa de vinho fruté debaixo do braço.

Aprendi, finalmente, que depois de dirigir sozinho mais de mil quilômetros por quatro países diferentes a gente fica muito sensível a tudo, louco de vontade de ter alguém do lado para dividir o que está vendo, e que a solidão só é boa para isso, para sentir a falta dos outros.