Blog do Flavio Gomes
Brasil

OS TRIOS

SÃO PAULO (é o samba, é o povo, é o trio) – Eu gosto de carnaval. Sempre tenho a sensação de que estou aproveitando menos do que deveria, que está todo mundo se divertindo, menos eu, mas creio que é sensação comum a quem, por alguma razão, não está numa escola, ou num sambódromo, ou […]

SÃO PAULO (é o samba, é o povo, é o trio) – Eu gosto de carnaval. Sempre tenho a sensação de que estou aproveitando menos do que deveria, que está todo mundo se divertindo, menos eu, mas creio que é sensação comum a quem, por alguma razão, não está numa escola, ou num sambódromo, ou atrás de um trio, ou num bloco, ou no frevo. Ninguém me proibiu de fazer nada disso, não estou/vou porque não deu/não quero, então gosto mesmo assim, e embora já não faça parte dele faz tempo, não tenho raiva de quem gosta.

Já tive meus carnavais, é bem provável que já tenha escrito algo parecido no passado, e essa é também uma sensação comum a quem parece meio alijado da festa ou porque não é chicleteiro, ou porque não descolou um convite para o camarote-da-brama, ou porque não arrumou nenhum pacote da CVC para Recife, ou porque não tem onde ficar no Rio para cair num bloco às sete da manhã. A sensação de que carnaval já foi. Algo que, aliás, muitas músicas de carnaval cantam, aqueles carnavais. Se temos de reclamar do carnaval, que seja disso. Porque contamos nossa vida em carnavais, e eles vão ficando para trás, e a vida também.

Aí que muita gente fica deprimida no carnaval, porque na TV parece que nos obrigam a escancarar o sorriso, a ser felizes, a pular, pular e pular. Como ordenam todas as cantoras e cantores de carnaval — de qualquer gênero, na verdade —, vâmo tirá o pé do chão e jogá a mãozinha pro céu! Se um dia proibirem cantores e cantoras brasileiras de nos pedirem para tirar o pé do chão e jogar a mão para o céu, acabam os shows de música no Brasil — assim como se proibirem os participantes do Big Brother de pronunciarem a palavra “afinidade”, o programa sai do ar.

Quem está em casa não tem como tirar os pés do chão e jogar as mãos para o céu, ou para o alto, não sei direito se é para o céu ou para o alto. Não fica bem, seria algo meio patético. Mas é fato que nestes quatro ou cinco dias quase todos os aparelhos de TV ficam ligados como se impusessem aos não-foliões um fundo musical obrigatório, para não deixar ninguém esquecer que são dias em que é preciso pegar, abraçar, beijar, suar, trepar, ser feliz ou fingir que é. E se você não está no meio daquela multidão em Salvador, Olinda, Rio, Floripa, Ouro Preto, sei lá onde mais, é você que está com problemas. No ano que vem, não esqueça de procurar seu agente de viagens, ou de comprar uma fantasia para sair na comunidade da Viradouro, mesmo se você nunca esteve em Niterói — foda-se, saiu na escola é da comunidade —, ou um abadá para o Nana Baiana, o Camaleão, o trio da Ivete Sangalo.

Abadá. Quando passei o carnaval em Salvador pela primeira (e única, infelizmente) vez, eram mortalhas que comprávamos para sair atrás do trio. Mas tinha trio que não precisava pagar nada. O de Armadinho, Dodô e Osmar, por exemplo, era seguido só pela turma da pipoca. Não tinha “corda” — entre aspas porque “corda” no Carnaval soteropolitano, e acredito que nas micaretas, é na verdade uma barreira humana, seguranças que protegem os saltitantes vestidos com abadás patrocinados dos pipocas sem grana e sem patrocínio, que pulam do lado de fora escutando a mesma música, e de graça.

As mortalhas viraram abadás por obra e graça de um publicitário baiano, Pedrinho da Rocha, que conta essa história e muitas outras em um blog bem legal. Eu gostava da palavra “mortalha”, fiquei meio contrariado quando elas viraram abadás de um ano para o outro, mas nunca tinha ouvido falar numa até o Carnaval de 1993, o tal que passei em Salvador. Foi quando descobri que era preciso comprar uma mortalha se eu quisesse seguir o trio que cantava Cara Caramba Cara Cara-ô, ou sair atrás daquele da moça que achei que se chamava Eva, mas depois vim a saber que era Ivete Sangalo (essa moça tem uma legião de devotos hoje que desprezo olimpicamente, considero completamente retardados/as quem se refere a ela como “Vevete”, uma espécie de entidade inatacável; acho-a uma pentelha medíocre, musicalmente desvirtuada, mas reconheço que tem pernas muito interessantes), enfim, não sabia que funcionavam como um convite, que eram vendidas por cambistas ou por funcionários de hotéis, e fiquei legitimamente espantado com aquele comércio todo, que julgava inexistente na ingênua Bahia dos meus livros de Jorge Amado — que de ingênuos nada têm, sacanas, isso sim.

Hoje vejo na TV que a festa baiana é cada vez mais “corporate”, por assim dizer. Ela foi tomada pelos marqueteiros de São Paulo, não há um centímetro quadrado no circuito Barra-Ondina ou do Campo Grande que não seja patrocinado por alguma marca de cerveja, ou de cartão de crédito, ou de banco. Tem patrocínio até no rabo do mais durango pipoca, não se abana o rosto sem fazer propaganda de alguma coisa, os trios são estruturas futuristas com DJs e telas de LCD, aquela coisa pretensamente modernosa mas que no fundo é cafona a dar com o pau, cantam e tocam qualquer merda, até o cara do Chiclete com Banana tirou a barba — e isso vai virar case na agência das giletes, certamente, pela enorme repercussão de fato tão relevante nos sites de celebridades.

Trio elétrico é algo que existe desde 1950, salvo engano, e começou com um fordinho com uma guitarra e um violão elétrico ligados na bateria, Dodô e Osmar eram os músicos, depois veio o Armadinho (não sei se a ordem de chegada é exatamente essa) e o povo atrás. No início, portanto, era uma dupla elétrica, e com a chegada do baixo elétrico virou trio, e o nome continua valendo, inclusive para vender carro popular com trava-ar-direção. Depois vieram os caminhões, mercedões sendo os mais populares, e não é de hoje que eles são usados como outdoors ambulantes. Afinal, são enormes, o que não falta é espaço para anunciar. Esse da foto lá no alto é dos anos 80, do trio Traz os Montes, pioneiro em algumas bossas elétricas que não sei direito quais são, onde o Chiclete começou a tocar com outro nome. Eram quase todos assim.

Suspeito que o som dos trios antigamente era mais legal, quase sempre instrumental, elétrico mesmo, havia uma música de trio, um gênero musical, bem diferente estética e musicalmente desses megapalcos cheios de celebridades ocas que se movem entre camarotes patrocinados, gente fazendo coraçãozinho com as mãos e outras gravando tudo para colocar no Facebook o mais rápido possível como a gritar para os amigos: vejam como eu sou feliz e aproveito a vida!

Está tudo meio babaca, mas não é um fenômeno isolado da Bahia, tudo está meio “corporate” hoje em dia e nada existe se não for parar no YouTube ou no Facebook. Paciência. Deve haver, certamente há, carnaval em algum canto do país onde as pessoas apenas brincam, sem preocupação alguma com o novo iPad. Eu ainda vou encontrar.