Blog do Flavio Gomes
Brasil

ASSUMAM, AGORA

SÃO PAULO – Foi em 23 de agosto do ano passado que escrevi pela primeira vez sobre o tema, num post intitulado “Zero esperança”. Tinha acabado de ver um dos vídeos de figura tristemente notória na internet, o “Tiozão da Hornet”, ou “Klebão”, com seus quase 500 vídeos cometendo barbaridades de motocicleta pelas ruas da cidade. Reproduzo […]

SÃO PAULO – Foi em 23 de agosto do ano passado que escrevi pela primeira vez sobre o tema, num post intitulado “Zero esperança”. Tinha acabado de ver um dos vídeos de figura tristemente notória na internet, o “Tiozão da Hornet”, ou “Klebão”, com seus quase 500 vídeos cometendo barbaridades de motocicleta pelas ruas da cidade. Reproduzo um trecho, cortando o que não é essencial ao raciocínio:

São 491 vídeos. Nome e sobrenome. Alguns mostram até que o rapaz tem lá suas ideias, alerta contra as drogas, contra o preconceito, contra o crime. Talvez tenha bom coração, família, mulher, filhos, sei lá. Mas um vídeo só, apenas um, esse aí embaixo, deveria ser suficiente para que as autoridades da cidade impedissem-no de dirigir qualquer coisa motorizada. Qualquer coisa. Não estou discutindo caráter, bondade, maldade, nada, nada disso. Não sei quem ele é, não tenho o menor interesse em conhecê-lo, espero apenas nunca cruzar com ele na rua, porque provavelmente vou me assustar, cair da lambreta e me estatelar no asfalto. Somos uma cidade de milhões de cretinos, idiotas, irresponsáveis, egoístas, estúpidos. Alguns deles postam 491 vídeos no YouTube. E fica tudo por isso mesmo. Donde se conclui que cretinos, idiotas, irresponsáveis, egoístas e estúpidos também são facilmente encontráveis entre as autoridades da cidade, medrosas, covardes, patéticas. Se uma polícia de uma cidade como São Paulo é incapaz de fazer algo contra alguém que faz o que esse rapaz faz no trânsito, nas ruas e nas estradas, fazendo o favor de dar nome, sobrenome e endereço para quem quiser encontrá-lo, esqueçam. Isso aqui não tem jeito, mais.

O que mais me espantou à época foi menos  festival de atrocidades no trânsito e mais a quantidade de gente que assistia aos vídeos e vibrava com elas. O blog foi atacado por defensores do “Tiozão”, embora o que ele mostrasse com sua câmera na moto fosse algo claramente indefensável para qualquer pessoa com um mínimo de civilidade. Daí o título, “Zero esperança”.

Não sei se por coincidência, pouco depois de aparecer aqui o protagonista foi alvo de algumas reportagens em canais abertos de TV, que igualmente receberam saraivadas de ofensas por parte dos seguidores do motoqueiro. Mas a estupidez humana é tão ilimitada, que uma certa WNTV, um desses canais de TV pela internet, incorporou o “Tiozão” ao seu quadro de apresentadores, dando a ele um programa semanal, parece.

No último dia 28 de janeiro, recebi uma informação sobre o atropelamento de um senhor de 53 anos na avenida Duque de Caxias, no centro de São Paulo. O homem atravessava a avenida, que tem duas pistas separadas por um canteiro central, na faixa de pedestres, mas com o sinal aberto para os carros. Aproveitou que não vinha ninguém e atravessou. Todos fazemos isso, às vezes. É imprudente. Um carro que estava na pista da direita resolveu passar para a outra aproveitando a interrupção do canteiro central num cruzamento, fazendo uma manobra cujo caráter irregular estava claramente expresso por uma placa de trânsito. O carro atingiu o homem, que foi atirado longe e teve fratura no crânio. As imagens estão no vídeo aí no alto. Ele trabalhava numa loja de autopeças da região.

Oito dia depois, o homem, Antonio Farias, morreu no hospital. Deixou mulher, três filhas, um filho e duas netas.

Quando recebi a informação, surgiu o nome do atropelador: Kleber Atalla, o “Tiozão da Hornet”. Era ele quem dirigia o carro. Minha surpresa se limitou a isso: ele estava dirigindo um carro, uma picape Fiat Strada, e não sua motocicleta. Por tudo que “Klebão” costuma fazer no trânsito, supunha que a probabilidade de seu envolvimento num acidente de trânsito dar-se-ia sobre duas, e não quatro rodas.

Mas era, obviamente, uma questão de tempo para que algo sério viesse a ocorrer. Ocorreu, e uma pessoa perdeu a vida.

Essa vida será, claro, debitada na conta de Kleber Atalla, que fez uma manobra proibida e imprudente, típica dos que se consideram donos das ruas e avenidas e creem na impunidade acima de tudo. Que seja processado, julgado e condenado, e nunca mais dirija nada. Mas deve ser debitada, sobretudo, na conta de todas as autoridades policiais, de trânsito, de governo, de administrações municipais, estaduais e federal que, covarde e inexplicavelmente, fecham os olhos para as centenas de manifestações de insanidade que surgem a cada dia no YouTube e lá ficam à disposição de quem tiver coragem e senso de cidadania para punir seus autores.

Se no dia 23 de agosto, cinco meses atrás, quando escrevi sobre o assunto, ou nas semanas seguintes, quando o triste personagem se tornou célebre para além de seu universo de admiradores através de reportagens de TV e outras mídias, alguma autoridade tivesse tomado a única atitude aceitável para o caso — chamá-lo a prestar depoimento, indiciá-lo e cassar sua carteira de motorista —, ele não estaria dirigindo nem patinete em vias públicas. E o senhor Antonio estaria vivo. Mas o “Tiozão” continuou sem ser incomodado com sua infeliz jornada de colocar a vida dos outros em risco, registrando cada demonstração de escárnio em seus vídeos assistidos por milhões de pessoas.

Vocês, autoridades que se omitiram e nunca fizeram nada, mataram o senhor Antonio Farias, 53 anos. Vocês mataram o marido de dona Rosemeire e pai de Mariane, Bruna, Ana Beatriz e Wellington. Vocês continuarão matando Antonios e Josés e Joões enquanto motoqueiros, motoristas e caminhoneiros seguirem filmando suas façanhas para deleite de milhões de debiloides excitados sem que alguém se dê o trabalho de identificá-los e puni-los.

Parabéns.