Blog do Flavio Gomes
Futebol

A MAIOR DAS DECISÕES

SÃO PAULO (eu vi) – 26 de agosto de 1973. Eu tinha nove anos e morava no Rio. Já torcia para a Portuguesa havia algum tempo, desde o final de 1963, quando da concepção. Na TV em branco e preto em Copacabana, assisti à decisão do Campeonato Paulista entre Portuguesa e Santos. Ganhamos. Afinal, que […]

lusacampea73
De pé, da esq. para a dir.: Pescuma, Zecão, Badeco, Isidoro, Calegari e Cardoso; agachados: Xaxá, Enéas, Cabinho, Basílio e Wilsinho.

SÃO PAULO (eu vi) – 26 de agosto de 1973. Eu tinha nove anos e morava no Rio. Já torcia para a Portuguesa havia algum tempo, desde o final de 1963, quando da concepção. Na TV em branco e preto em Copacabana, assisti à decisão do Campeonato Paulista entre Portuguesa e Santos.

Ganhamos. Afinal, que me conste, a Portuguesa é campeã paulista de 1973. Mas aquela final de exatos 40 anos atrás rende até hoje. Foi a primeira decisão por pênaltis do futebol brasileiro, ao menos em campeonatos importantes, e o juiz Armando Marques errou a contagem, fazendo com que o título fosse dividido entre o grande da capital e o simpático time da Baixada.

Na época, não lembro de ter entendido direito o que tinha acontecido no Morumbi. Sabia, apenas, que anularam um gol do Cabinho e que o Zecão, meu primeiro e maior ídolo no futebol até hoje, pegara o primeiro pênalti cobrado por alguém. Era o suficiente para me sentir campeão.

Zecão foi o maior goleiro de todos os tempos. Sua camisa amarela com listras pretas no ombro e gola partida era um manto que continha uma solenidade jamais alcançada por casula nenhuma de papa algum. Ficava na parede do meu quarto o retrato, destacado da “Gazeta Esportiva”. Se Zecão pegou um pênalti, nessa coisa esquisita de decidir um título nos pênaltis, fomos campeões e pronto.

Em 1993, na “Folha”, fiz uma grande reportagem dos 20 anos daquela decisão. Só foi publicada em dezembro, mais de três meses após a efeméride, porque eu exigi publicá-la em duas páginas livres do jornal. Está aqui, para quem quiser ver (tem de virar as páginas, está no fim do caderno de Esportes). Eu queria desmascarar a falácia de que o Santos tinha sido prejudicado, oh, coitado. Lembrava do gol do Cabinho.

Mas quase ninguém lembrava. Os jogadores da Portuguesa com quem falei, todos. Os do Santos, nenhum. Juiz e bandeirinhas tinham versões desencontradas. E os incêndios nas emissoras de TV, comuns nos anos 70, dizimaram as imagens do jogo — sobraram algumas do Canal 100 e os pênaltis. Um gol fantasma, o do Cabinho. Mais fantasmagórico ainda porque o autor do gol não se lembrava dele. Incrível. Cabinho sofrera um acidente de carro na época e tinha o que se chama de amnésia localizada. Simplesmente não se recordava de um monte de coisa que tinha vivido 20 anos antes.

Sábado, agora, a TV Tribuna de Santos levou ao ar uma reportagem emocionante, depois de promover o encontro de vários jogadores dos dois times que estiveram naquela decisão. Meus olhos se encheram de lágrimas ao ver Cardosinho, Xaxá, Dicá, Wilsinho, Basílio e Badeco. Meus heróis, meus grandes heróis daquela tarde fria de agosto de 1973 no Morumbi com 116 mil pagantes. Metade torcendo para a Lusa, e não acreditem em quem disser o contrário. O estádio estava dividido. Ponto.

Há um ótimo relato dessa final, também, com lindas fotos, no Canelada, em texto assinado por Luiz Nascimento. Tem toda a história do campeonato, a vitória do Santos no primeiro turno, a conquista da Portuguesa no segundo, o título da Taça São Paulo entre um e outro (os torneios foram paralisados para a seleção excursionar) e a origem do time de 1973 — que brotou da histórica Noite do Galo Bravo no ano anterior, quando o presidente Oswaldo Teixeira Duarte mandou embora seis titulares após uma derrota para o Santa Cruz.

Dia desses, o pessoal do Impedimento, o melhor site de futebol do país, me pediu um texto sobre aquele time para a série “Esquadrões Marginais”. Está aqui o texto completo, mas reproduzo o que mandei para eles na íntegra abaixo. Tomara que vocês tenham paciência para ler (ninguém mais lê nada que tenha mais de 140 caracteres, é uma batalha inglória, mas dane-se).

A Portuguesa dos anos 70 era o melhor time do mundo. Se não foi campeão mais vezes, azar do mundo.

Para que se entenda o que era a Portuguesa naquela década, talvez seja razoável lembrar os desinformados que o goleiro da seleção brasileira campeã no México era da Portuguesa, Félix. Se ele já estava jogando pelo Fluminense na ocasião, é detalhe pouco relevante. O mesmo vale para o lateral-direito Zé Maria, furtado do Canindé pelos vizinhos da Marginal sem número.

Éramos, portanto, o melhor time do mundo. Até a noite de 13 de setembro de 1972, quando fomos derrotados miseravelmente pelo Santa Cruz no Parque Antarctica por 1 a 0. Jogávamos no modesto estádio dos co-irmãos da Pompeia por uma razão bastante simples. Nosso estádio, o Independência, inaugurado alguns meses antes, ainda não possuía a iluminação adequada para partidas noturnas. Assim, concedíamos aos rivais da zona oeste a honra de jogar em seu gramado.

Pois que perdemos para o Santa Cruz, e naquela noite o doutor Oswaldo Teixeira Duarte decidiu demitir metade do time. Foram seis dispensados, todos titulares: Hector Silva, Lorico, Samarone, Ratinho, Piau e Marinho Peres. Foi a Noite do Galo Bravo. As dispensas foram anunciadas em coletiva de imprensa no dia seguinte pelo presidente em lágrimas. “Este clube hoje não mais aceita atletas que depois de um mau resultado comparecem à imprensa e afirmam que não têm motivação para ficar aqui. E como é duro para nós dizer para um atleta como o Marinho que não o queremos mais aqui dentro! O que vou dizer ao meu associado que gosta e adora o Piau? Mas eu não posso jogar o dinheiro do clube fora.”

(Tem áudio desse pronunciamento do presidente, no blog do jornalista Milton Parron, da rádio Bandeirantes.)

Doutor Oswaldo mandou metade do time embora e no ano seguinte deixamos de ser o melhor time do mundo para nos tornarmos o melhor do universo, fomos campeões da Taça São Paulo e à decisão contra o Santos. Zecão; Cardoso, Pescuma, Calegari e Isidoro; Badeco e Basílio; Xaxá, Enéas, Cabinho e Wilsinho. Esse era o time dirigido por Oto Glória, o homem que mais entendeu de futebol no planeta em sua e em todas as épocas. O Santos tinha um goleiro que se chamava Cejas. O resto do time, sinceramente, não me vem à memória. Não devia ser muito bom.

Fomos evidentemente roubados naquele jogo de 116 mil pessoas no Morumbi, numa noite de agosto, um ano depois da Noite do Galo Bravo. Só falam nos pênaltis, a conta ridícula que só favoreceu o clube da Baixada. Não nos foi dada a chance de empatar. Faltavam dois para cada lado, e estava 2 x 0 para o time deles. Antes, no tempo normal de jogo, Cabinho teve um gol anulado de forma bizarra. Tão grotesca a marcação da arbitragem que após esse jogo os arquivos de todas as emissoras de TV foram queimados para que não sobrasse registro do escalpo. Não há imagens do gol de Cabinho. Mas há dos pênaltis. Incêndios criminosos e muito bem engendrados.

Eu me lembro, porém. Do gol e de tudo. Assisti ao jogo em preto e branco pela TV no Rio de Janeiro, onde morava. Na minha parede, colada com durex, havia uma página da “Gazeta Esportiva” com uma foto gigante de Zecão, o maior goleiro de todos os tempos. A camisa era amarela, com faixas pretas em torno do sovaco e gola preta dividida em dois. Não sei explicar isso escrevendo. Espero que o editor deste texto chinfrim encontre uma foto de Zecão com a camisa amarela para que o leitor compreenda a descrição da camisa.

Detalhe que é importante, neste relato, porque eu queria uma camisa daquela de qualquer jeito, e minha mãe só encontrou, no Rio, uma cor de laranja com a faixa preta no sovaco, mas a faixa não contornava o ombro inteiro, era interrompida na altura dos ombros, também não sei explicar, mas o fato é que era apenas semelhante, não igual, e aquela camisa amarela do Zecão tornou-se uma obsessão para a vida toda, o Santo Graal que nunca encontrei.

Zecão pegou o primeiro pênalti na final de 73 e como aquela era a primeira decisão por penais realizada no Brasil, acho que já deveria ser o bastante para que a taça nos fosse entregue. Não sei de onde tiraram a série de cinco, e depois as alternadas. Perdeu o primeiro, acabou. É o que acho mais justo, quando se trata da Portuguesa. As outras decisões por pênaltis não me interessam particularmente e podem adotar as regras que quiserem. Mas no caso do meu time, creio que se o goleiro pegar o primeiro, como Zecão pegou, está de bom tamanho.

Não estava, porém, e o juiz errou, nos roubou, terminou antes, e o time, dada a decisão do árbitro, se retirou do estádio. Foram buscar nossos jogadores no vestiário para seguirem as cobranças, mas o que queriam? O jogo tinha acabado, não? Se acabou, nada mais tendo a fazer aqui, vamos embora. E fomos. Se resolveram nos dar o título depois, dividindo com os do Litoral, já não era mais muito importante. Apenas mais uma taça. Claro que éramos campeões, como sempre fomos.

Em 1975, praticamente com o mesmo time, fomos derrotados nos pênaltis, de novo, pelo São Paulo. Em 1976, ganhamos a Taça Governador do Estado ao golear o Guarani no Palestra por 4 a 1 com Silvio Luiz, olho no lance, apitando. Como se vê, eram finais aos borbotões e desfiles de craques, sendo Enéas o maior de todos. Dizia-se, na época, que o Enéas do Palmeiras era o Ademir da Guia, o do Flamengo era o Zico, o Enéas do Santos era Pelé.

Deixamos de ser o melhor time do mundo no final da década de 70, com um canto do cisne em 1980, o vice-campeonato do primeiro turno numa final com o Santos. Depois entramos numa crise que, esporadicamente, visita outras glebas e nos permite glórias fugazes, como a Série B de 2011.

Desses anos 70 me recordo das noites geladas no Pacaembu e das manhãs no Canindé, jogávamos muito de manhã, às 11h, com as arquibancadas repletas de garotas de biquíni que deixavam as piscinas para ver a Lusa e, depois, voltavam à água e ao sol, lindas e bronzeadas. Havia três torcidas organizadas, a Leões da Fabulosa, a Corações Unidos da Portuguesa e a Força Jovem. Usávamos, na Leões, calças brancas e camisas vermelhas. Era o uniforme principal do time, também. A CUP tinha lindas bandeiras brancas com um coração vermelho no meio. A Jovem era formada por uma molecada valente, camisas verdes com gola e mangas vermelhas. Colocávamos 15, 20 mil pessoas em alguns jogos. Nunca menos do que 10 mil, contra qualquer adversário.

Havia enorme respeito pela Lusa, algo que foi se dissipando ao longo dos últimos anos e tenho uma tese para explicar isso. Quando caímos, em 2002, estava começando esse negócio de videogame de futebol. Fifa, PES, essas merdas. A garotada passou a ter essas coisas como referência. Futebol existia primeiro ali, depois na TV e, depois, na vida real. Quem não existia no Playstation e na Globo, portanto, não poderia existir na vida real. E a Portuguesa foi eliminada do mundo pelos games e pelos programas de TV, feitos por moleques igualmente educados pelo Playstation.

E é por isso que essa gente retardada não entende quando quem realmente conhece futebol diz que Portuguesa x Corinthians, ou Santos, ou São Paulo, ou Palmeiras é um clássico. Por isso que um reporterzinho, outro dia, tomou uma invertida linda do Muricy Ramalho quando o técnico interrompeu o fedelho, que lhe perguntava por que o São Paulo não tinha ganhado nenhum clássico naquele ano. Como não? Ganhamos da Portuguesa, disse o Muricy. E o frangote, com os dedinhos nervosos no smartphone, se espantou e falou: como assim, Portuguesa é clássico?

O moleque deveria ser empalado e o smartphone enfiado em seu rabo, mas sobreviveu porque somos generosos e da paz.

26 de agosto de 1973. Foi nossa última grande conquista, embora o título da Série B de 2011 me seja muito cara, assim como o vice-campeonato brasileiro de 1996 para o Grêmio de Felipão. Essas vivi mais de perto, no estádio, onde se deve. Mas eu morava no Rio há 40 anos, e assisti àquela decisão, a maior de todas na história do futebol, na TV em branco e preto. O branco era o Santos. O cinza era a Portuguesa. O Zecão era o de amarelo. Sim, sei que ninguém vai acreditar, mas naquela TV em branco e preto a camisa do Zecão era amarela, não me perguntem como.