Blog do Flavio Gomes
Gira mondo

ÁFRICA

SÃO PAULO – Desembarquei à noite, e se bem me lembro mais de uma semana antes da corrida. Tinha algo a ver com o preço da passagem, era mais barata se o período de permanência no destino fosse de não sei quantos dias. Viajava de Varig e havia um voo, desconfio, que saía do Rio, […]

safricaflagSÃO PAULO – Desembarquei à noite, e se bem me lembro mais de uma semana antes da corrida. Tinha algo a ver com o preço da passagem, era mais barata se o período de permanência no destino fosse de não sei quantos dias. Viajava de Varig e havia um voo, desconfio, que saía do Rio, parava na Cidade do Cabo, em Johannesburgo e seguia para a Tailândia. Ou talvez não parasse no Cabo e fosse direto para Jo’burg, como logo aprendi.

Bem. Desembarquei à noite, estávamos em fevereiro de 1992 e o apartheid havia terminado oficialmente em 1990, embora, na prática, só tenha terminado de verdade com as eleições de 1994. Meu hotel ficava no centro da cidade e peguei um carro. Um carro pequeno, branco, é do que me lembro. Mão inglesa, mas eu sabia dirigir essas coisas. Com um mapa no banco, minha cara branca, meus cabelos loiros e meus olhos azuis, fui para a cidade e encontrei o hotel, no centro. Não deve ter sido complicado, eu me lembraria se tivesse sido.

Na África do Sul, como em muitos países, a tomada para ligar o computador na energia era diferente da que eu tinha. É um inferno, isso. Se bem me lembro, três pinos, sendo um deles, o terra, mais grosso. Mas a tomada do banheiro era num padrão mais ou menos conhecido, embora o aviso fosse claro: apenas para aparelhos de barbear. Nunca levei isso muito a sério em hotéis e espetei o velho Toshiba para mandar algumas linhas ao jornal. Só que o diabo da tomada não carregava o computador, e foi aí que passei a levar a sério essas tomadas apenas para barbeadores.

Desci, fui à recepção e perguntei se eles tinham algum adaptador. Não tinham. Onde compro a essa hora? Eram umas oito, nove da noite. Tem um lugar virando ali. OK. O senhor vai lá? Vou, uai.

Saí, com minha cara branca, meus cabelos loiros, meus olhos azuis e alguns rands no bolso para comprar meu adaptador. O lugar indicado era uma daquelas bodegas que vendem de tudo, latas de refrigerante, cigarros, isqueiros, chicletes, sanduíches prontos, batatas fritas de pacote, sorvetes, lâmpadas e, com alguma sorte, adaptadores de tomadas. E tinha mesmo, tanto que comprei e voltei tranquilamente para meu hotel, e foi com algum espanto que o rapaz da recepção, negro, me viu entrando sossegado com o adaptador na mão, mais uma carteira de Peter Stuyvesant, marca de cigarro que adotei como minha naqueles dias, a caixa branca com uma tarja vermelha. Eu guardo esses detalhes.

Agradeci sorrindo, afinal tinha sido muito bem-sucedido nas minhas compras, e ele me disse que eu não deveria sair por ali àquela hora da noite. E por que não deveria, perguntei, e ele disse que era porque ali só havia negros, e o centro da cidade é perigoso para brancos como o senhor.

Fiquei sem reação, porque não me senti em perigo em momento algum, talvez tenha percebido um ou outro olhar, e de fato só havia negros nas imediações, mas e daí?, eu estava na África, o Continente Negro, não era particularmente uma surpresa haver muitos negros, e até onde eu sabia, o apartheid tinha terminado, o presidente De Klerk já havia convocado eleições abertas para dali a algum tempo e o Madiba estava solto.

Nos dias seguintes, mais de uma pessoa me disse que fui muito corajoso de sair com minha cara branca, meus cabelos loiros e meus olhos azuis pelo centro de Jo’burg numa noite de meio de semana para bater perna atrás de um adaptador de tomada. Podia ter sido assaltado, espancado e morto. Achei que aquilo era mentira, alarmismo típico de quem gosta de supervalorizar qualquer merda, não me senti nenhum herói humanitário por ter enfrentado uma turba negra de peito aberto. Não senti nada, apenas saí para comprar um adaptador, e se alguma menção honrosa mereço, foi por ter encontrado, que essas coisas, às vezes, são bem difíceis de achar quando se precisa delas.

Sem muito o que fazer até o dia do primeiro treino, que pode ter sido numa quinta-feira, já que era pista nova no calendário, acabei conhecendo, não me lembro bem em quais circunstâncias, um rapaz de Curitiba, branco, que estava estudando jornalismo em Jo’Burg e gostava de esportes. Nos encontramos para tomar uma cerveja e ele me contou que alguns brasileiros atuavam no futebol sul-africano, e achei que aquilo poderia render algum material para o jornal, como de fato rendeu. Para quem tiver curiosidade de ler, está aqui.

Graças ao rapaz de Curitiba, fiquei sabendo que havia sete brasileiros jogando por lá, além de um técnico, Wander Moreira, que outro dia soube que morreu em Apucarana. Fui ao seu apartamento e me lembro de duas coisas em particular: o papo divertidíssimo de um sujeito que daria um livro e de suas filhas lindas, já pós-adolescentes, heroínas ao lado daquele homem que vivia de treinar equipes de futebol na África, 18 anos rodando pela Somália, Sudão, Moçambique, Tanzânia, Suazilândia e sabe-se lá onde mais. Wander Moreira…

Bem, vamos em frente. Um dos sete brasileiros que jogavam lá era Jaiminho, razoavelmente conhecido porque tinha feito parte de um bom time do São Paulo nos anos 80, que tinha Müller, Careca e outros caras bons. Neguinho lépido, habilidoso, foi parar no time mais popular da cidade, o Orlando Pirates, e iria estrear naquele fim de semana num torneio de abertura de temporada contra o grande rival local, o Kaizer Chiefs. Era uma boa matéria, sem dúvida, e o amigo curitibano arrumou o telefone do Jaiminho e combinamos de tomar uma cerveja para fazer uma entrevista, e então eu, com minha cara branca, meus olhos azuis e meus cabelos loiros, descobri o que era o apartheid.

Pegamos Jaiminho no hotel onde ele estava morando, ou talvez fosse um apartamento alugado, não lembro bem, e saímos pela noite de Jo’burg para tomar um negócio num bar e fazer uma entrevista, e como eu já estava havia alguns dias na cidade, sabia de um lugar legal pelas redondezas, e para lá fomos. Quando parei o carro na porta do bar, descemos, dois brancos de olhos azuis e cabelos loiros, com um neguinho de olhos espertos e dentes muito brancos, mas não fomos longe. Entra no carro, disse o curitibano a Jaiminho, porque em nossa direção vinham três caras enormes, de pele avermelhada e ar pouco amistoso, e falaram alguma coisa em africâner que não entendemos, e por via das dúvidas entrei no carro também, e meu amigo, e um dos caras encostou no meu pneu, tirou o pau para fora e começou a mijar no carro, enquanto os outros dois gesticulavam e gritavam para que fôssemos embora dali, isso deu para entender.

Saímos em silêncio, e eu poderia dizer aqui que fiquei com muita vergonha do que tinha acabado de acontecer, mas não fiquei, fiquei com muita raiva, vergonha eu não tinha motivo algum para sentir porque não fazia parte daquele grupo, e quando quebrei o silêncio disse apenas “filhos da puta, filhos da puta”, e fui procurar outro bar, onde nos sentamos e conversamos.

No fim de semana, fui com meu amigo ao jogo de estreia do Jaiminho, no FNB Stadium, que deve ter sido um desses reformados para a Copa de 2010. De brancos, no estádio, dava para contar nos dedos: eu, o amigo, os dois goleiros e o trio de arbitragem. Eles não gostam de goleiros negros, me explicou um jornalista local. Assisti ao jogo de dentro do campo, arquibancadas cheias, torcida toda negra, uma festa e uma alegria que eu não consigo descrever direito, aí, antes do início da partida, entra no gramado um coral de negros fortes e negras gordas, vestidos com roupas coloridas de motivos tribais, e eles vão para o grande círculo, e o estádio se cala, e eles começam a cantar, sem microfone, sem instrumentos, o hino sul-africano em zulu.

Foi a coisa mais linda que vi na vida, a liberdade.