Blog do Flavio Gomes
Imprensa

BOLACHA

SÃO PAULO – Em 2002, fiz TV pela primeira vez. A Bandeirantes me chamou para comentar as corridas da estreante F-Renault, trazida ao Brasil por Pedro Paulo Diniz. O narrador seria Luciano do Valle. Convivi com o Bolacha naquele ano, e em poucos eventos. Quando tinha F-1 eu não podia ir. Foram sete ou oito […]

lucianodovalleSÃO PAULO – Em 2002, fiz TV pela primeira vez. A Bandeirantes me chamou para comentar as corridas da estreante F-Renault, trazida ao Brasil por Pedro Paulo Diniz. O narrador seria Luciano do Valle.

Convivi com o Bolacha naquele ano, e em poucos eventos. Quando tinha F-1 eu não podia ir. Foram sete ou oito provas, não lembro direito. Uma delas em Londrina, no dia da final da Copa do Mundo no Japão. Eu estava hospedado no apartamento da filha do Galvão. Acabou o jogo, peguei o carro, fui para o autódromo, cheguei meio em cima da hora, e lá estava o Bolacha, pronto para narrar uma merda de uma corrida de F-Renault no dia da final da Copa do Mundo. Que o Brasil ganhou.

Eu fui para a corrida puto. Como é que alguém marca uma etapa de algo tão irrelevante para o dia da final de uma Copa? Bem, a F-1 vive fazendo isso. Mas dane-se, posso ficar puto, tenho o direito de ficar puto. E imagino como vai estar o Luciano. Final da Copa, o cara É o esporte no Brasil, e por causa desse monopólio besta está em Londrina para narrar uma corrida de F-Renault que ninguém vai ver. Não é justo.

Mas Luciano estava pronto e sorridente como sempre, no acanhado espaço que nos reservaram na torre de controle para fazer a corrida. Estava feliz com a vitória do Brasil, feliz mesmo, e já tinha organizado suas anotações com os nomes dos pilotos, jovens desconhecidos que ele admirava muito pelo talento e por serem “o futuro do automobilismo brasileiro”. Não estava puto.

Eu não tinha direito nenhum de estar puto.

Foi só por um ano, e depois nem sei o que aconteceu com as transmissões da F-Renault, voltei ao meu mundinho besta e Luciano seguiu com sua vida exuberante de um dos maiores narradores esportivos da história. É um grande orgulho, mesmo sabendo que aquele campeonato jamais poderia ser comparado a qualquer coisa que o Luciano já tinha feito na vida, e ainda faria.

Tive a chance de trabalhar com alguém que admirava, mas que não tinha exatamente como ídolo. Era mais um ícone, de uma importância enorme. Afinal, foi ele a voz da narração esportiva da Globo na Copa de 82, era ele a voz oficial do esporte olímpico, era ele o cara que tinha inventado o vôlei, o boxe, a NBA, o Campeonato Italiano, a Fórmula Indy, a sinuca, o hóquei, os domingos com esporte de cabo a rabo na TV.

Luciano do Valle era foda, em resumo. E lá estava eu empunhando o mesmo microfone que ele em 2002, no dia da final da Copa, e eu olhava para nós dois no monitor e pensava, porra, será que o Luciano não se sente decadente, será que ele não tem ódio do universo por estar neste fim de mundo para narrar uma corrida secreta, será que ele não está remoendo uma mágoa infinita por ter sido tirado de uma Copa porque é assim que são as coisas na TV, quem tem mais paga e leva, quem não tem que se dane?

Não, não estava. Estava lá no nosso espacinho na torre de Londrina para narrar a corrida do Allan Hellmeister (ele gostava desse nome, muitas vezes aparecia outro piloto na tela, e ele dizia Allan Hellmeister, desconfio que sabia que era outro, mas era dado a esse tipo de traquinagem), do Lucas di Grassi, do Sérgio Jimenez, do Allam Khodair, do Gustavo Sondermann, do Lucas Schowambach (deste o Luciano não fazia muita questão de dizer o nome, era muito complicado), do Diego Freitas, do Patrick Rocha…

Ele tinha razão, eram meninos talentosos, eram o futuro do automobilismo brasileiro, mas caramba, o Luciano tinha narrado o Emerson ganhando em Indianápolis, tinha feito o título do Piquet na F-1, como é que podia estar tão sereno e tranquilo, animado e empolgado, numa biboca no norte do Paraná no dia da final da Copa do Mundo para dar traço no ibope?

Pois estava.

Isso diz mais sobre Luciano do Valle do que qualquer elegia que eu pudesse fazer num dia em que a tristeza é imensa.

A última vez que o vi foi há uns dois ou três anos, num domingo à noite numa pizzaria. Estava sozinho na mesa. Me parecia triste. Não falei com ele.

Tchau, Bolacha.