Blog do Flavio Gomes
Gomes

O COMEÇO DE TUDO

SÃO PAULO (sempre fui) – Pois que segunda-feira foi Dia do Jornalista. Que bom. Agora entendi por que recebi algumas mensagens de pessoas desconhecidas me dando parabéns. Neste mês, salvo engano, completo 32 anos de profissão. Também tenho lá minhas efemérides. Considero o dia em que minha primeira coluna foi publicada no “Popular da Tarde” […]

SÃO PAULO (sempre fui) – Pois que segunda-feira foi Dia do Jornalista. Que bom. Agora entendi por que recebi algumas mensagens de pessoas desconhecidas me dando parabéns.

Neste mês, salvo engano, completo 32 anos de profissão. Também tenho lá minhas efemérides. Considero o dia em que minha primeira coluna foi publicada no “Popular da Tarde” o marco zero da minha carreira. Acho que escrevi sobre os 30 anos dois anos atrás.

Mas há uma certa imprecisão aí. Porque eu jamais poderia ignorar a famosa “A Patada Quadrada”, periódico que teve apenas um número e foi descontinuado, provavelmente, porque naqueles tempos de ditadura não era nada fácil ser dono de jornal.

“A Patada Quadrada”… Saudades daqueles tempos, daquela redação destemida e arrojada. Foi fundada no dia 7 de agosto de 1973, auge do governo militar. Precisava ser muito corajoso para encarar os milicos e driblar a censura. No dia 8 pela manhã uma última notícia foi publicada no pé da página 6, e as demais ficaram em branco. Será que nos empastelaram?

Não lembro bem. Eu tinha 9 anos e a decisão firme de ser jornalista estava tomada. Acho que já contei. Resolvi ser jornalista graças a um jogo de tabuleiro cujo nome não lembro, mas que jogava com minha mãe. Os personagens eram um repórter, talvez um chefe de redação, um policial, um bombeiro, um assaltante. Jogávamos os dados e cada um tinha de cumprir sua missão. O assaltante, assaltar um banco; o policial, prender o assaltante; o bombeiro, apagar um incêndio; o chefe, mandar o repórter, no caso eu, que sempre escolhia o repórter, chegar antes do assaltante, do policial e do bombeiro às cenas dos acontecimentos. O repórter estampado no tabuleiro usava chapéu e tinha uma etiqueta onde se lia “Press” presa por dentro de uma fita.

Eu queria ser repórter e usar um chapéu daqueles. Nada mais me importava na vida.

Então, finalmente, no dia 7 de agosto, fundei “A Patada Quadrada”. No expediente, anotei o nome do diretor, Patinhas, e do repórter, Donald. Creio que fiz isso para que o DOI-Codi não me encontrasse. Daí os pseudônimos, porque na verdade o diretor era eu mesmo, assim como o repórter.

Em sua curta existência, “A Patada Quadrada” publicou 13 notícias e dois anúncios. E apenas uma ilustração, perpetrada por algum artista marginal da época, possivelmente ele também procurado pelos órgãos de repressão. Era uma almofada, que ilustrava a primeira notícia do jornal:

Hoje a Dona Wilma fez uma almofada nova.

Como se nota, e se notará nas demais notícias, “A Patada Quadrada” era moderníssima. Muito antes que seus concorrentes, já adotava textos curtos, antecipando o que 40 anos depois seria chamado de Twitter. Textos curtos e diretos, essa era nossa norma, era o que ditava nosso Manual de Redação. Como na segunda nota, uma denúncia grave que já vinha acompanhada do desfecho da apuração:

O Sr. Fernando hoje não quis tomar banho porque não estava com vontade.

Exemplo de “new journalism”. A denúncia, repito, grave: meu irmão não quis tomar banho. Caso investigado, a conclusão: não tomou porque não estava com vontade. O episódio certamente teria repercussão no dia seguinte, e é uma pena que “A Patada Quadrada” não sobreviveu por muito tempo, de modo que não saberemos nunca quais as consequências do ato tresloucado do Sr. Fernando.

Nesta página, aliás, talvez esteja uma das explicações para a falência de “A Patada Quadrada”: o primeiro dos dois anúncios da edição, no qual se lia “Assista o Disney On Parade” — a outra propaganda dizia só “Creditotal da Ultralar”, reclame barato e pequeno. Com tão parcas receitas, obviamente resultado de um boicote das agências de publicidade àquele jornal que nascia com ideias de esquerda, seria difícil pagar os salários dos funcionários, a gráfica e a distribuição.

Ainda assim, o valente diário foi às bancas com um vasto cardápio de notícias de várias editorias, como Esporte, Política, Cultura e Comportamento.

Hoje eu fiz uma arminha de “plastito”.

A “Rede Globo” fez um novo show. É o Fantástico.

Na novela “Cavalo de Aço” ninguém sabe quem matou o velho Max. Desconfiam do Atílio.

A terceira página, de notícias policiais, tinha no alto o título dramático:

O grande apelo dos pais do menino raptado.

E, depois, um retrato das mazelas do Rio de Janeiro, onde “A Patada Quadrada” era editada, no segundo andar de obscuro prédio de Copacabana:

Quando eu fui no médico, teve um assalto na loja do lado.

Um testemunho forte e eloquente, colhido direto da fonte, nada de versões fajutas da polícia, o fato nu e cru: fui ao médico, vi a loja ser assaltada. Ninguém me contou. Eu vi.

Claro que um jornal combativo e de tendências subversivas como “A Patada Quadrada” precisava alisar o regime, também, e só isso justifica a nota anódina e desimportante que veio a seguir:

O ministro Jarbas Passarinho abriu uma sala de conferências que funcionará até o dia 9-8-73.

Esse tipo de notícia era muito comum em “A Patada Quadrada”. Os militares ficavam doidos, porque estava na cara que a frieza e distanciamento calculado da nota, a ausência de adjetivos e de loas aos nossos governantes, eram, no fundo, um ataque à ditadura. Era como se disséssemos: “O pulha do ministro vai inaugurar mais uma obra sem importância, enquanto nossos jovens morrem nos porões”. Isso me causaria problemas no futuro, como se verá, assim como a militância ecológica que incomodava muito os generais:

Uma baleia está dando cria nas praias do Guarujá.

Na seção de Esportes, mais afrontas ao regime. Nada de elogios à seleção, à CBD, ao gigantismo dos novos estádios que estavam sendo construídos no Nordeste. Somente duas notas, ambas eivadas de críticas à situação do esporte nacional:

O Gilson vai entrar no Campeonato de Autorama.

O jogo Flamengo x Bonsucesso que ia ser hoje foi adiado para o dia 14.

Gilson era um perigoso agente comunista, pseudônimo de um guerrilheiro que estava no Araguaia. Aquela nota era evidentemente cifrada, uma mensagem a alguém no Rio. O SNI percebeu. O adiamento do jogo do Flamengo expunha a bagunça do futebol brasileiro. Eles não suportavam tais críticas.

A pá de cal em “A Patada Quadrada” certamente foi a última nota do dia 7 de agosto de 1973, notícia de última hora, alarmante:

A agência União de Bancos foi assaltada. Os ladrões levaram 143.900 cruzeiros.

É só levantar nos arquivos. Óbvio que foi coisa da VAR-Palmares, e esse assalto não poderia nunca ter sido tornado público, para não levar o pânico à população e, igualmente, não entusiasmar demais os comunistas entocados nos aparelhos espalhados pelo país.

Daí que no dia 8 de agosto, “A Patada Quadrada” publicou sua derradeira notícia antes de encerrar suas atividades:

Hoje eu vou ter no colégio uma pesquisa sobre Santos Dumont.

E nada mais foi escrito. A história de coragem e valentia de “A Patada Quadrada” no combate à ditadura, de suas inovações gráficas e estilísticas, de sua militância pelo meio-ambiente e crítica ao regime ainda está por ser escrita.

Espero que a descoberta de seu único exemplar, que encontrei hoje numa velha caixa de sapatos, jogue um pouco de luz sobre esse importante capítulo da história da imprensa brasileira.