SÃO PAULO (doce demais) – “Tendo ideia no museu de Roberto Lee, Flavio Magliari Gomes criou, à 1° de agosto de 1975 o MCVFD, que um dia depois de sua fundação tornou-se MCAFD. O ‘V’no 1° nome, quer dizer ‘velhos’ e no 2° o ‘A’ quer dizer ‘antigos’.”
Assim começava o texto datilografado numa Olivetti cor-de-laranja, cujas letras não eram típicas de uma máquina de escrever — antes, a fonte lembrava letras corridas, e nem sei se nos tempos das máquinas de escrever se usava o termo “fonte” para tipos de letras.
Uma crase errada, algumas vírgulas a mais, outra a menos, mas nada de muito grave. “O DKW no nome é por causa do grande número de DKWs que o museu tinha”, informava ainda o texto de apresentação daquele importante empreendimento, chamando a atenção para outras datas importantes de sua história: 2 de janeiro de 1976, 29 de julho do mesmo ano e 14 de janeiro de 1977. “As chamadas épocas de reconstituição”, quando muitos carros “foram retirados do museu, e somente dois permaneceram sem perigo de serem retirados: os DKWs”.
Não briguem com o menino que bateu o texto à máquina por errar um ou outro plural. Ele tinha 12 anos quando chegou ao formato definitivo de seu museu, depois das marcantes “épocas de reconstituição”, instalado numa escrivaninha antiga revestida pelo pai de papel ConTact com motivos psicodélicos, até onde me lembro.
Há uma vantagem em ser organizado quando criança. A gente encontra datas e eventos muito precisos. Se um dia alguém tivesse de escrever minha biografia, não teria muitas dificuldades em levantar dados como esse. “Flavio Gomes fundou seu primeiro museu em 1° de agosto de 1975”, poderá cravar meu biógrafo sem medo algum de errar.
Pois foi assim, então, no dia 1° de agosto de 1975, com a fundação do MCAFD, que comecei minha história com os automóveis e com os carros antigos. O texto fazia parte de um programa completinho para os visitantes, devia ser lido antes de abrir a escrivaninha para começar a falar de cada carro, um por um, de sua história, de sua importância, de seu caminho até vir parar no acervo do museu.
O MCAFD era uma entidade séria, que tinha sócios e cobrava ingressos. Até carteirinha emitia, mas a adesão não foi das maiores, nem mesmo em casa. No fim das contas, o sócio número 001 era seu fundador, porteiro, segurança e tesoureiro, e da número 001 não passou. A venda de carnês, que dava direito a visitas durante o ano inteiro por Cr$ 200,00, também não vingou. Os ingressos individuais custavam Cr$ 2,50 e igualmente encalhavam mesmo quando vinham os amigos adultos jantar em casa. Ninguém se interessava demais por meus carrinhos, ou talvez achassem caras as entradas, mesmo se menores de 4 anos não pagassem nada e houvesse pacotes de cinco ingressos por Cr$ 10,00, um ótimo desconto.
Desconfio que os adendos ao rigoroso regulamento de visitas também possam ter assustado os visitantes. O artigo I em seu parágrafo “a” dizia: “Caso um sócio ou visitante quebre algum automóvel do MCAFD, terá que pagar o dobro do valor do automóvel danificado”.
Eu também ficaria reticente, diante dessas condições draconianas.
No libreto descritivo de cada modelo, eles estão listados com os números 16 e 17, seguidos das informações: “Estes DKWs da ATMA foram conseguidos na AEROBRÁS. É uma história muito longa. A Aerobrás pretendia montar um museu somente com brinquedos antigos, que não fabricassem mais. No fundo da loja, eu vi os DKWs e perguntei se estavam a venda. Não estavam. Só que o papai foi lá no dia seguinte, e viu 4 frentes de DKWs na vitrine do fundo da loja. Conseguiu convencer o japonês de que haviam 2 DKWs e 2 peruas”.
De novo, perdoem alguns deslizes na conjugação verbal. O fato é que meu pai convenceu mesmo o japonês dono da Aerobrás de que ele tinha dois de cada, Belcar e Vemaguet, e comprou um de cada para mim. A lenda doméstica da época rezava que na verdade eram três Vemaguets e um Belcar, e que o japonês acabou ficando com duas peruinhas e nenhum sedã. Desgostoso, desistiu de fazer seu museu na loja.
A disputa entre museus é muito agressiva e virulenta no mundo inteiro até hoje, cheia de histórias de trapaças e comportamentos insidiosos. O MCAFD ganhou aquela batalha. Lamento pelo japonês, mas é a lei da selva.
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O acervo do MCAFD está praticamente intacto, hoje numa caixa de papelão junto da literatura da época, que contava com vários exemplares da “Enciclopédia do Automóvel” e até com a planta baixa da edificação, que poderá ser reconstruída um dia se eu encontrar uma escrivaninha igual, o que não será fácil.
É curioso que durante toda minha vida nunca contei a história do glorioso MCAFD para ninguém, um pouco de vergonha da criança meio pretensiosa e metódica que eu era, zeloso daquela coleção como se dela dependesse o futuro da humanidade. Estabelecia regras imaginárias, normas pétreas que norteariam a minha e a vida de todos os habitantes do planeta até o fim dos tempos. Ao menos para o meu terreiro, meu pequeno mundo. Nele, as regras quem escrevia era eu.
Um estranho instinto de preservação que ficou no passado, acredito. No fundo, eu só queria contar histórias que as pessoas ouvissem, e prestassem atenção nelas. Achava importante explicar como aqueles DKWs foram parar no meu museu. Achava importante relatar a origem daquelas miniaturas de carrinhos argentinos aparentemente toscos, mas que tinham sido fruto da minha primeira viagem internacional. Achava importante organizar os fatos e as coisas.
Se um dia eu conseguir colocar meus carros de verdade todos no mesmo lugar, vou mandar fazer um emblema gigante do MCAFD. Mas vai ficar do lado de dentro, porque ainda tenho uma pontinha de vergonha das minhas criancices.