Blog do Flavio Gomes
Gomes

O CHEIRO DE ACETATO

SÃO PAULO (cafajestes) – Por dois anos, todas as semanas, frequentei aquele local. Gostava muito do nome da rua: Cenno Sbrighi. Nunca soube quem foi Cenno Sbrighi, até procurar, agora há pouco, no “Dicionário de Ruas”, página mantida pela Prefeitura de São Paulo. Campeão de ping-pong na adolescência, formou-se em medicina no Rio, foi atleta […]

SÃO PAULO (cafajestes) – Por dois anos, todas as semanas, frequentei aquele local. Gostava muito do nome da rua: Cenno Sbrighi. Nunca soube quem foi Cenno Sbrighi, até procurar, agora há pouco, no “Dicionário de Ruas”, página mantida pela Prefeitura de São Paulo. Campeão de ping-pong na adolescência, formou-se em medicina no Rio, foi atleta de remo do Fluminense, trabalhou no Miguel Couto e na Santa Casa e gostava de caçar perdizes e codornas. Nada de muito especial, mas deve ter feito algo importante, talvez tenha caçado a maior perdiz do mundo, ou quebrado algum recorde de codornas abatidas no mesmo dia. O fato é que virou nome de rua, e é nessa rua, num dos muitos subdistritos da Lapa, que ficava a Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura.

[bannergoogle] Emissora dos Diários Associados inaugurada em 1960, a Cultura passou por um grande incêndio em 1965 e foi comprada dois anos depois pelo governo do Estado, transformando-se em TV educativa (a história da Cultura está aqui, para quem se interessar). Mas engana-se quem imagina que ela tenha sido usada apenas para telecursos ou para veicular programas chatos e laudatórios dos vários governos estaduais que a sustentaram.

Contrariando todas as expectativas, a Cultura passou por cima da previsível tutela oficial para se transformar numa emissora de vanguarda com programação de altíssima qualidade. Quem aqui não se divertiu com o “Castelo Rá-Tim-Bum”, “Bambalalão” ou “Vila Sésamo”? Quem não se lembra do “Roda Viva” quando era o principal programa de entrevistas do país, conduzido por gente do naipe de Rodolfo Gamberini, Lilian Witte Fibe e Paulo Markun? Hoje é uma piada, apresentada por um fóssil do jornalismo cujo nome me reservo o direito de sequer mencionar. E o “Cartão Verde”, com Trajano, Juca Kfouri e Armando Nogueira? O que dizer do “Vitrine”, do “Metrópolis”, da “Fabrica do Som”, do “Provocações”, do “Viola, Minha Viola”? E das transmissões esportivas com Luiz Noriega, Orlando Duarte, José Góes?

Por dois anos, frequentei aquele local. Quando fui contratado pela SBPC para fazer programas de ciência para a Rádio Cultura AM, meu primeiro emprego remunerado, gravávamos tudo nas instalações da USP e levávamos a fita de rolo às sextas-feiras até o prédio da Cenno Sbrighi. Foi a primeira vez que entrei numa emissora de TV e rádio, final de 1984.

Não sei se consigo descrever. Nas minhas memórias, tudo tinha cheiro de acetato, se é que acetato tem cheiro. Discos, fitas, cartuchos. Sim, acho que discos eram feitos de acetato, ainda são. Tinha cheiro de espuma, também, a espuma que revestia as paredes dos estúdios de rádio, sempre à meia-luz, indevassáveis, solenes. Nas mesas cheias de botões por trás de pequenas janelas à prova de som, aqueles equipamentos metálicos que faziam pequenos ponteiros de VU se mexerem me davam a sensação de que, através deles, eu seria capaz de falar ao mundo. O que quisesse. Pelos corredores se desvendavam discotecas, palcos, estúdios enormes de TV, um piano de cauda e fábricas de cenários coloridas e cheias de marceneiros serrando e pintando.

Aquele era meu mundo, definitivamente — como seria, algum tempo depois, a redação do jornal cheia de máquinas de escrever e fumaça de cigarro, os primeiros computadores com tela de fósforo verde, teclas da Remington e teclados anônimos me oferecendo a mesma, e poderosa, sensação: de que, através deles, eu seria capaz de escrever ao mundo. O que quisesse.

Mas levávamos o rolo de fita, eu dizia, e na verdade quem levava era o João Bosco, nosso editor-chefe, já falei dele aqui, perdi totalmente a pista de João Bosco Jardim de Almeida, primeiro grande professor do ofício e da vida que aquele ofício reservava para mim.

(Sim, já dei um Google atrás do João. É incrível. A referência mais recente é de 2004, estava entre os responsáveis pela avaliação de um curso de psicologia no Amazonas. Uma citação, nada mais. Nenhuma foto, nenhuma página no Facebook, nada no LinkedIn, e quando isso acontece é como se a pessoa não existisse, nunca tivesse existido — acho que todos pensamos assim hoje. Invejo pessoas que conseguem escapar das garras das ferramentas de busca, do Grande Deus Google. Gostaria de ser uma delas. Mesmo assim, basta ter tido seu nome escrito algum dia em algum papel, e alguma coisa se encontra. E o pouco que encontrei só faz minha admiração e respeito aumentarem. João Bosco Jardim de Almeida aparece em vários relatórios da Polícia Política nos papéis do Arquivo Público de Minas Gerais. Era líder estudantil, vigiado pela ditadura, integrante da ALN, cada passo registrado, relatado, arquivado. As reuniões, os encontros, as assembleias, o que lia, o que escrevia, com quem se encontrava… Por isso, e ele nunca falou no assunto, deve ter fugido do Brasil em algum momento, sentindo-se sufocado pelo regime que muita gente, na micareta de domingo, vai pedir que volte. Trabalhou na BBC, onde estava quando foi recrutado para voltar e montar o programa de divulgação científica da SBPC. Medo, ainda? Em 1984? Bem, o presidente ainda era um general quando a gente começou a fazer nossos programinhas de rádio. Poucos meses depois Tancredo seria eleito pelo Colégio Eleitoral. Não militei em movimento algum na ditadura, era apenas um garoto, e portanto não tenho condições de julgar o que sentiam aqueles que voltavam, ressabiados, desconfiados, assustados. Não sei se o João está vivo. A última vez que o vi foi em 1989, em Londres. Tinha voltado para a Inglaterra, morava num apartamento pequenino e encantador. Ele tinha o quê, uns 20 anos mais do que eu, talvez? Se for assim, teria hoje setenta e poucos, claro que está vivo. Quem sabe nas suas Minas Gerais, olhando em paz para as montanhas infinitas, a paz que lhe foi roubada na juventude.)

Estacionava meu carrinho, um Gol prata LS, nas vagas internas, o nome e a placa, CA-4343, estavam na portaria, e felizmente o João sempre me esperava numa das dezenas de portas que levavam às entranhas da Cultura, e lá dentro, depois de percorrer vários labirintos, no estúdio do AM 1200 kHz que colocava as coisas no ar, o rolo era entregue e ajeitado no Akai vertical, havia vários, e então a vinheta que era a introdução de alguma canção do Clube da Esquina, com flauta e violão, acho, anunciava que estava começando “Encontro com a Ciência“, cujo acervo em algum momento da história foi digitalizado, mas desapareceu.

E durante uma hora, no mais absoluto silêncio, como se qualquer ruído dentro daquele estúdio pudesse por mágica — ou maldição — interferir no rolo que girava no Akai, ficávamos, eu e o João, escutando o resultado do trabalho daquela semana sem ter a menor ideia de quantas pessoas estariam nos ouvindo, ou se tinham gostado, algo que saberíamos dias depois, quando algumas cartas chegavam à casinha onde produzíamos tudo, em Pinheiros.

Conto tudo isso depois de ler que a Cultura, sem dinheiro e apoio do governo do Estado, está morrendo aos poucos. Alguns ex-apresentadores do canal gravaram um vídeo que é um grito de socorro, apelo que, receio, não será ouvido. Voltei à Cultura há dois anos, a convite de um amigo, para fazer uma participação breve num telejornal da hora do almoço. Quando terminou, pedi para dar uma voltinha pelos estúdios da rádio. São outros, não reconheci quase nada. Vi o piano de cauda, porém. E notei a meia-luz, que persiste. Mas já não havia ninguém, nem ao piano, nem atrás dos botões, os microfones transmitindo apenas silêncio.

Fui embora triste, porque nem o cheiro de acetato tinha mais.