Blog do Flavio Gomes
#69

BON VOYAGE (4)

LONDRINA (agora, Interlagos) – Meu Voyage tem quatro pequenos furos na tampa do porta-malas. E duas entradas circulares tapadas com chapa. Nos furos, um dia, sabe-se lá quando, um aerofólio foi fixado. Nas entradas, hoje fechadas, havia válvulas para reabastecimento. Meu Voyage, um dia, sabe-se lá quando, disputou corridas de longa duração. Mil Milhas, talvez? Quando? Quem? […]


LONDRINA (agora, Interlagos) – Meu Voyage tem quatro pequenos furos na tampa do porta-malas. E duas entradas circulares tapadas com chapa. Nos furos, um dia, sabe-se lá quando, um aerofólio foi fixado. Nas entradas, hoje fechadas, havia válvulas para reabastecimento. Meu Voyage, um dia, sabe-se lá quando, disputou corridas de longa duração. Mil Milhas, talvez? Quando? Quem?

Ele foi encontrado no início do ano nos fundos de uma oficina. O dono precisava desocupar o imóvel, passou em frente à nossa oficina, viu uns carros de corrida, parou, conversou com o Nenê Finotti, meu chefe de equipe, e falou dele. Nenê foi lá, viu, gostou e trouxe para casa.

Um dia apareci na oficina, nem sei o que fui fazer, porque tinha parado de correr, e ele me apresentou ao Voyage. Vamos fazer, falou. Relutei. Fiquei alguns minutos olhando para o pequeno sedã, então pintado de azul e branco, vi o santantônio montado com esmero, o tanque de combustível grande que insinuava uma vida passada nas pistas em longas e difíceis provas, os faróis tímidos — Volkswagens são carros tímidos –, as pequenas rodas de aro 13, dei a volta nele, olhei a traseira, as discretas lanternas dos anos 80, e ainda relutando, falei: OK, vamos fazer.

Desde então, abril, vi o carro pouquíssimas vezes. Duas ou três, não mais. A última em agosto, talvez? Três, quatro meses sem aparecer na oficina, às voltas com milhares de outras coisas desimportantes, o Nenê me informando de vez em quando do andamento das coisas, a gente tinha combinado de estreá-lo em Londrina, até onde eu sabia ia dar tempo e o cronograma que meu chefe estabeleceu, sem nem me dizer qual era, vinha sendo cumprido à risca.

Fui conhecer meu novo carro de corrida, de verdade, ontem de manhã. Eu teria um treino livre no início da tarde e uma sessão de classificação algumas horas depois. A pintura, na verdade a “envelopada”, ficou bonita. Gostei. Vermelho, amarelo, branco, um carro alegre.

Não sei se ele me reconheceu quando cheguei ao autódromo. Nossos encontros anteriores haviam sido breves e pouco intensos, dificilmente acharia que aquele cara que passou duas ou três vezes na oficina seria seu parceiro algum dia. Na última visita, cheguei a sentar no banco que tinha comprado para marcar a posição ideal para minhas pernas e braços curtos de piloto meio-metro. Foi o contato mais íntimo que tivemos.

Por isso, talvez, o Voyage que um dia teve aerofólio traseiro e bocais de tanque de gasolina na tampa do porta-malas não deve ter ficado nem um pouco impressionado com aquele cara que, agora ele lembrava, passou duas ou três vezes na oficina nos últimos sete meses e agora estava sentado atrás do volante “quatro bolas” (o novo não ficou pronto) com uma capa de carro dobrada no assento e nas costas para alcançar direito os pedais.

Foram 11 voltas, um tempo medíocre na casa de 1min40s, mas 11 voltas tranquilas, sem sobressaltos, rodadas, ou escapadas assustadoras, apenas uma passada pela grama numa freada mal calculada, e assim ele voltou aos boxes intacto, e ao final trocamos poucas palavras, valeu, boa, até já. Me perguntaram o que achei, respondi apenas “gostei, é neutro, não sai de frente, nem de traseira”.

Poucas horas depois, o cara estranho de pernas curtas voltou, sentou no banco com a capa no assento e nas costas e foi para a classificação, e quando voltou tinha baixado dois segundos, e quando eu soube desses dois segundos, ainda dentro do carro funcionando, dei um murro no volante e disse, puta que pariu, boa, caralho, e nesse momento tenho a impressão que o Voyage envelopado com cores alegres sorriu pela primeira vez no fim de semana.

Caiu o mundo de madrugada em Londrina e a primeira corrida de hoje, pela manhã, foi com chuva. Estávamos em 18º no grid. Gosto de andar na chuva, ainda mais com tração dianteira e pouca potência — meu motor é 1.6 e usamos carburador mini-progressivo, que é divertido, mas não assusta os picas da frente com seus Weber monstruosos.

Éramos 2o no grid, embora 25 tivessem participado da classificação — alguns quebraram, outros desistiram por causa da chuva forte. Largamos bem, quatro ou cinco posições ganhas, duas ou três perdidas em poucas curvas, e minha única missão era andar perto de um Gol da mesma categoria, carro bem desenvolvido e pilotado por gente de gabarito (Rafinha na primeira bateria, Speto na segunda). E para minha surpresa, o Gol estava lá, ao alcance da nossa vista e das nossas freadas e retomadas, deixei até um Passat e uns Fuscas mais bem cotados para trás, o carrinho ia bem na chuva, e na sexta volta passei, passamos, caralho, e fomos abrindo, e a porra da corrida não acabava nunca, começava a secar, o Passat do Tranjan me alcançou faltando cinco voltas, mas até onde eu podia compreender estava em primeiro na categoria, e quando apareceu a placa de uma volta para o fim prendi a respiração e falei pela primeira vez na corrida com ele, falta uma volta, sem cagadas, por favor, eu que tenho de dizer isso, ele respondeu, e quando apareceu a quadriculada e vi o pessoal na mureta fazendo o número 1 com o dedo indicador percebi que sim, ganhamos a corrida.

Ganhamos a corrida, OK, apenas 14º na geral, mas ninguém quebrou ou bateu, e quem precisava ficar atrás ficou — com problemas no acionamento do segundo estágio do acelerador, soube depois, mas não importa. Ganhamos a corrida, rapazinho.

Ele chegou sujo e enlameado, mas inteiro e satisfeito. Prazer, garotão, agora sua vida vai ser assim, eu nesse banco com a capa dobrada para alcançar os pedais, você me levando do jeito que achar melhor.

Na segunda corrida, quebramos na volta de apresentação — algum piripaque na bomba de combustível. Chegou a funcionar de novo quando o cara da picape já ia nos rebocar para os boxes, mas apagou outra vez. OK, fica aí no meio do gramado assistindo tudo de camarote que daqui a pouco venho te buscar. Atravessei a pista, fiquei na mureta vendo os amigos correrem, quando acabou rebocamos o mocinho para os boxes, e lá chegando a bomba voltou a funcionar.

Desculpe, ele me disse. Fica tranquilo, já fizemos o bastante por hoje.