Blog do Flavio Gomes
Comes & bebes

FOTO DO DIA

SÃO PAULO (sei bem) – Ao ver a foto do jantar dos pilotos na China e a divertida história de dividir a conta por 18, lembrei de outra que, provavelmente, já contei aqui. Mas conto de novo. Estávamos na Austrália, abertura de temporada. Acho que 2003, talvez 2004. Não vou lembrar direito. Os jornalistas brasileiros […]

jantarcaroSÃO PAULO (sei bem) – Ao ver a foto do jantar dos pilotos na China e a divertida história de dividir a conta por 18, lembrei de outra que, provavelmente, já contei aqui.

Mas conto de novo.

Estávamos na Austrália, abertura de temporada. Acho que 2003, talvez 2004. Não vou lembrar direito.

Os jornalistas brasileiros sempre tiveram o hábito de jantar juntos. E quase sempre nos mesmos restaurantes, ano após ano. Tínhamos vários favoritos. O La Lanterna, em Kelberg, pertinho de Nürburgring, era um desses. Jantares épicos com o anfitrião Maurizio, um italiano que foi com a família para a Alemanha quando era criança, e que terminava a noite na mesa bebendo grappa com a gente.

Tinha também o “Bife na Pedra” em Nevers, que naturalmente não se chamava “Bife na Pedra”, e sim La Mange’Oir, onde a gente comia sempre a mesma coisa — bife na pedra. Sendo bem honesto, descobri o nome agora, entrando no Google Fuckers Mappers. Foi só achar a estação de trem e subir a rua.

Em Heidelberg, era também um italianinho que tinha na parede, entre dezenas de quadros, uns desenhinhos que as filhas do Reginaldo Leme fizeram quando crianças. O dono colocou moldura e lá devem estar até hoje. A gente acabava a noite invariavelmente bebendo sambuca com grãos de café flambados no Café Journal — o original.

Na Inglaterra, era o pato laqueado, ou desfiado, ou sei lá como, no Rice Bowl em Towcester. A chinesinha — como pude esquecer seu nome? — nos recebia todos os anos com a mesma alegria e, incrível, lembrava o nome de todo mundo. Todo mundo. Sei que nos entupíamos de pato e cerveja chinesa, até não querer mais.

Em Montreal, nos anos Senna, o ponto de encontro era um restaurante português cujo nome esqueci — mas o Ayrton jantava lá, era Estrela de Alguma Coisa, se não me engano. Depois, adotamos o Gibby’s na Cidade Velha, onde devorávamos bifes gigantescos e sempre tínhamos problemas com as reservas — ou chegávamos atrasados, ou em número muito maior de comensais. Foi lá que eu e Fábio Seixas, uma vez, jantamos com a futura senhora Ecclestone, a Fabi, e sua irmã. Poucas vezes na história da humanidade duas moças ficaram tão chocadas com a quantidade de besteiras que dois homens podem dizer.

O 7 Portes, em Barcelona, foi nosso refúgio gastronômico por anos, até percebermos que era turístico demais e caro além da conta. Desertamos e adotamos o Salamanca, na Barceloneta, frequentado por jogadores do Barça e pela Mirian Dutra — foi onde conheci o pequenino FHC. Frutos do mar em ambos.

Em Imola e Monza nem sempre conseguíamos jantar juntos, porque as turmas se dividiam pelas cidades próximas — eu sempre fiquei em Riolo Terme para o GP de San Marino, e em Milão para o GP da Itália. Na Hungria, havia o “Caviar”, que também tinha outro nome — esse não consigo encontrar –, de onde saí carregado uma vez e o Cândido Garcia teve de me colocar debaixo do chuveiro gelado quando chegamos ao hotel.

[bannergoogle] Em Mônaco, a campeã de audiência era uma pizza com ovo estralado debaixo das arquibancadas da velha reta dos boxes. Na Bélgica, o querido Henrique Cardão, jornalista português que nos deixou em 2013, preparava moules avec frites na casinha de Robertville que alugávamos e onde se travava uma batalha jamais admitida pelos melhores quartos — eu resolvia isso chegando antes e tomando posse da suíte de cima, com vista para a montanha e banheira no banheiro.

Voltemos à Austrália, onde começou este texto. Melbourne é uma cidade grande, e também lá ficávamos espalhados — eu e o Seixas, normalmente, nas espeluncas mais baratas. Também não havia nenhum lugar especial para comer todas as noites, mas o Donovan’s, em St. Kilda, era objeto do desejo dos mais esfomeados — de novo, eu e o Seixas. Caríssimo, na beira da praia, não era definitivamente pro nosso bico.

Mas no fim deu que a turma combinou, vamos lá, deixa de frescura, e acabamos fondo.

Mesa grande, Galvão Bueno entre nós — grande companheiro de viagem, devo dizer, parceiro de bizarrices como pular catraca do metrô em Viena –, e Galvão estava estudando sobre vinhos, e resolveu escolher os vinhos a partir de seus conhecimentos de enologia recém-adquiridos, e quando vimos os preços dos vinhos, bem, nos fodemos.

E vinham os vinhos, e as lagostas, e os camarões, e os mariscos, e puta que la merda, essa conta vai evaporar toda nossa verba, pensamos eu e o Seixas, cujo orçamento era significativamente menor que o do Galvão, e mais vinho, a uva daqui é a Shiraz, vejam, percebem as notas florais de violeta?, sacaram o aroma de ameixa e mirtilo?, e é claro que não estávamos sacando nada, apenas nos desesperávamos mais a cada garrafa pedida, até que o Galvão foi ao banheiro, ou fumar um cigarro.

Convoquei imediatamente uma assembleia na mesa assustada — além de nós dois, os pobretões, tinha um monte de gente da Globo, de imprensa escrita, pessoal da Petrobras, de rádio, amigos, anexos, bicões — e pedi a palavra. Nós não vamos conseguir pagar essa conta, falei. Fodeu. E apontei na direção das sei-lá-quantas garrafas de Shiraz com aroma de violeta. Vamos fazer o Galvão pagar, decidi.

Todo mundo falou ao mesmo tempo, questão de ordem, Excelência, ele paga um pouco mais, eu não tenho dinheiro, meu cartão não vai passar, vamos rachar, vamos fugir e deixar ele aí, sem a sobremesa eu não saio de jeito nenhum, e naquela confusão danada vi ao longe que Galvão voltava, pedi silêncio energicamente e disse, apenas: “Deixem comigo”.

[bannergoogle] Galvão voltou e pediu mais dois Shiraz, estes mais robustos e densos com aroma de damasco e alcaçuz, não é possível que vocês não vão notar, estes deixam um sabor de chocolate preto e gengibre no final, e então eu falei: Galvão, tá sabendo do Bolacha?

Bolacha era Luciano do Valle, por anos os dois dividiram a preferência do telespectador brasileiro, o que tem o Bolacha?, perguntou, e saí contando uma cascata alucinada sobre a casa que ele tinha comprado em Porto de Galinhas, que estava rico pra cacete, tinha assinado um contrato que previa um salário faraônico com a Bandeirantes, e olha que só narra de domingo e jogo bom, mas é maior que o meu?, perguntou de novo, e eu não parava de falar, mencionei labradores e araras amazônicas, uma mansão em Vinhedo com lago e cachoeira, duas Mercedes blindadas e duas Ferrari amarelas, e quando falei do helicóptero, Galvão me interrompeu.

Helicóptero? Pois é, respondi fazendo pouco caso de seu assombro e dando um gole no Shiraz com notas de groselha e cerejas pretas. Helicóptero, continuei, e você com aquela fazenda mequetrefe em Londrina com duas vacas, três bodes e cinco galinhas, o cara tá rico demais, não sei quanto você ganha na Globo, mas o contrato do Bolacha, olha, hoje, aqui, ninguém boatava a mão no bolso…

E então Galvão bateu na mesa e, entre indignado e desafiado, nem me deixou terminar a frase, ah, ele pagava a conta, é?, então essa conta aqui é minha, eu pago esta merda, vocês acham que ele ia pagar tudo isso?, e então olhei discretamente para os amigos que ouviam aquele diálogo em respeitoso espanto, notei neles certo alívio, chamei o garçom e pedi mais um Shiraz. Aquele com notas de cerejas pretas e groselha, acrescentei. Milani.

No jantar do pilotos, dividiram em 18.