Blog do Flavio Gomes
Autódromos

PRECISAMOS FALAR SOBRE INTERLAGOS

SÃO PAULO (e logo) – O prefeito eleito de São Paulo, João Doria, escolheu a palavra “privatização” como mote central de sua campanha, baseada na imagem que vendeu de “gestor”, e não de “político”. Milionário, adorador do deus da iniciativa privada, curiosamente foi mesmo no setor público que Doria alavancou sua carreira, como presidente de […]

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SÃO PAULO (e logo) – O prefeito eleito de São Paulo, João Doria, escolheu a palavra “privatização” como mote central de sua campanha, baseada na imagem que vendeu de “gestor”, e não de “político”.

Milionário, adorador do deus da iniciativa privada, curiosamente foi mesmo no setor público que Doria alavancou sua carreira, como presidente de dois órgãos governamentais: a Paulistur, na gestão do então prefeito Mário Covas, de 1983 a 1986, e a Embratur, de 1986 a 1988, no governo do presidente José Sarney.

[bannergoogle]Embora tenha tentado descolar sua imagem da política tradicional, portanto, Doria ocupou cargos públicos quando entrava na casa dos 30 anos. Na Prefeitura de São Paulo, acumulou a presidência da Paulistur com a função de secretário municipal de Turismo. Só depois de passar pelo governo federal é que engatou uma trajetória claramente vinculada ao ofício de lobista profissional — o que não é crime, diga-se. Suas atividades ligadas ao empresariado brasileiro, com a promoção de encontros, congressos e reuniões, não passam disso.

Com o uso do espaço que conseguiu em emissoras de TV para divulgar suas ações e dar espaço a empresários em seu programa de entrevistas, Doria acabou formando uma teia de relações que o colocou numa posição de “muso” da iniciativa privada. Ampliou seus negócios para áreas como marketing, promoção de eventos e publicação de revistas — a mais sensacional de todas, sem dúvida, chama-se “Caviar”, e é descrita como “uma sofisticada revista de LUXO, que trata com alta qualificação do mercado de luxo no Brasil e no mundo”.

Suas revistas são um sucesso, a julgar pela generosidade com que o governo do Estado de São Paulo as agracia com publicidade oficial. De julho de 2014 a abril de 2015, os contribuintes paulistas colaboraram com R$ 1,5 milhão de propaganda estatal nas páginas de sete de suas publicações. “Caviar” recebeu R$ 501,2 mil por anúncios em nove de suas luxuosas páginas — como se vê, quando a iniciativa privada não ajuda, vamos ao demonizado poder público, que ele garante.

Muito bem. Uma das promessas de campanha do prefeito eleito foi a de vender Interlagos. Sim, “vender”, não apenas “privatizar”. Recorro às palavras do próprio em artigo publicado ontem, dia 12, na “Folha de S.Paulo”. Os grifos são meus.

Pretendo, sim, colocar à venda o complexo do Anhembi e o autódromo de Interlagos. A modelagem dessas ações ainda não foi totalmente concluída e dependerá, é claro, de estudos e discussões. Mas tenho a convicção de que a desestatização será aprovada e gerará vantagens imediatas.

A primeira delas será uma economia de R$ 600 milhões em quatro anos. Esse é o valor que a prefeitura gasta ao longo de um mandato para manter, ainda que de forma precária, o estádio, o autódromo, o centro de convenções, o pavilhão de exposições e o sambódromo municipais.

A outra vantagem são os R$ 7 bilhões que deverão ser obtidos com a venda do Anhembi e de Interlagos. Esse valor, centavo por centavo, irá para saúde e educação.

A prefeitura ganha duas vezes. A primeira, ao deixar de gastar com a manutenção dos espaços. A segunda, ao vender suas propriedades.

Anhembi e Interlagos, hoje, são administrados pela SPTuris, uma empresa de capital misto que tem como uma de suas acionistas a Prefeitura de São Paulo. É sucessora da empresa municipal Paulistur, que Doria presidiu nos anos 80.

Alcino Reis Rocha, em entrevista à mesma “Folha” publicada hoje, dia 13, disse que os números de Doria não batem com a realidade. Segundo ele, presidente da SPTuris, “o município não repassa dinheiro para a manutenção do autódromo e do Anhembi”. O autódromo, para ficar no que nos interessa, geraria em quatro anos despesas de R$ 32 milhões. Mas notem: isso não é prejuízo, é custo. A previsão para 2016, é de que Interlagos feche o ano dando lucro de R$ 6 milhões.

[bannergoogle]É isso que o prefeito quer privatizar? O lucro de Interlagos? Por que cargas d’água o prefeito acredita que esses R$ 6 milhões serão mais belos se usados por algum amigo da iniciativa privada, em vez de ficar nos cofres da cidade?

Doria fala em arrecadar R$ 7 bilhões com a venda do Anhembi e de Interlagos. Não sei direito como chegou a esses valores. Fico me perguntando quem iria dispender tal quantia para comprar equipamentos que, na visão do prefeito, são um ônus para a cidade, um peso morto, uma fonte de prejuízos.

Não são. De acordo com a SPTuris, o Anhembi vai gerar um lucro para a empresa de R$ 18,7 milhões neste ano. No ano passado, o lucro foi de R$ 59,6 milhões. É um bom dinheiro. Considerando que a SPTuris tem capital misto e a Prefeitura é uma de suas acionistas, parte desse lucro ficou para a cidade.

Portanto, o argumento de que Anhembi e Interlagos dão prejuízo para São Paulo é falacioso.

Mas digamos que o prefeito eleito conheça esses números. Ainda assim, pode alegar que uma venda seria positiva para a cidade — afinal, R$ 7 bi poderiam ser usados para outros fins.

OK. Mas voltamos à pergunta inicial: quem pagaria R$ 7 bi por equipamentos que, juntos, dão lucro de R$ 25 milhões por ano? Numa conta besta, considerando os valores estimados pela SPTuris para 2016, quem colocar R$ 7 bi em Interlagos e no Anhembi levará 280 anos para recuperar o dinheiro investido.

Mas Anhembi e Interlagos são muito mal administrados, poderiam gerar muito mais dinheiro se estivessem nas mãos da iniciativa privada, alguém pode argumentar. OK. Digamos, então, que a fabulosa iniciativa privada consiga quintuplicar esses lucros com um estalar de dedos. De R$ 25 milhões por ano, Interlagos + Anhembi passariam a dar um lucro de R$ 125 milhões. Os R$ 7 bi voltariam em… 56 anos.

Candidatos?

Acreditar que tudo em que a iniciativa privada coloca o dedo vira ouro é um equívoco monumental, ainda mais num país como o Brasil. Vou reproduzir, na íntegra, o que escreveu o blogueiro “Cassius Regazzoni” nos comentários de post recente sobre Interlagos. É uma descrição precisa sobre esse embate privado x público no país:

Não sei porque fico espantado com manifestações como essa. Esses novos liberais de fachada parecem não saber nada sobre a história do Brasil. Vêm com um discurso datado, criticando uns que denominam de “socialistas” para encobrir muita ignorância e preconceito.

A verdade é que ignoram que a iniciativa privada no Brasil é uma grande merda.

Ignoram que a maioria dos grandes grupos empresariais brasileiros cresceu e fez fortuna às custas do Estado malvadão que sempre atacaram. Vide empreiteiras, bancos e etc.

Tudo de relevante neste país foi produzido pelo Estado. Petrobras, Vale do Rio Doce, Cia. Siderúrgica Nacional, infraestrutura aeroportuária, hidrelétricas, refinarias.

Aí, depois que está tudo pago e amortizado, vêm os filhos de uma puta falar de privatização, financiada pelo BNDES, para gerar receita para uma parcela de amigos abastados. Os caras acham bom, por exemplo, pagar o pedágio mais caro do mundo apenas para dizer que funciona porque é privado.

O empresariado brasileiro morre de medo de correr riscos e hoje vive de juros, pasmem, pagos pelo Estado brasileiro.

Sem a atuação do Estado na economia, o Brasil não teria sequer energia garantida ou boas universidades. Aliás, sem o Estado malvadão, Interlagos não existiria.

Alguém é capaz de encontrar alguma mentira no que o blogueiro escreveu? Aliás, se puder, “Cassius Regazzoni”, identifique-se. O que você escreveu merece assinatura.

Interlagos é patrimônio público. Foi construído na década de 40 por uma empresa privada, a Companhia Auto Estradas (que também fez o aeroporto de Congonhas), e desapropriada pelo município na década de 50 porque seus proprietários pretendiam transformar a pista num bairro planejado. Àquela altura, o automobilismo já tinha um papel importante na vida da cidade e a Prefeitura pegou o terreno e o autódromo para si, indenizando a família que construiu a pista.

Tudo que foi feito ali nesses anos todos saiu dos cofres de São Paulo. A F-1 chegou aqui em 1972, saiu por alguns anos para correr no Rio e voltou em 1990. De lá para cá, o autódromo passou por reformas e melhorias. A corrida traz divisas para a cidade e é o evento mais importante do calendário municipal em termos de geração de impostos.

[bannergoogle]Entre as funções de uma prefeitura está a de promover, fomentar e prover atividades esportivas para sua população, sem discriminar quem os pratica. Se é legítima a construção de piscinas, pistas de skate, campos de futebol, parques, quadras de basquete e futsal, é igualmente legítima a propriedade e manutenção de um autódromo. Não fiz nenhum levantamento, mas posso afirmar, pelo que conheço mundo afora, que a imensa maioria dos autódromos no exterior pertence a governos. Quando muito, são geridos por entidades privadas — como em São Paulo.

Tem muita gente que vive de automobilismo em São Paulo e no Brasil. Interlagos tem uma função social. Gera empregos e movimenta e economia. Por que, então, um patrimônio que é da cidade há mais de meio século tem de ser simplesmente vendido? E mais: quem vai comprar? Mais ainda: quem comprar vai fazer o quê com o autódromo? E de onde tiraram essa premissa que qualquer equipamento público tem de dar lucro para quem quer que seja?

Equipamentos públicos dão despesa, porque cabe a uma prefeitura bancar sua existência para que o público dele usufrua. Se as coisas não são como gostaríamos em Interlagos, isso se deve muito menos ao poder público do que a quem comanda o automobilismo em São Paulo e no Brasil. Estou falando de entidades como a FASP e a CBA e dos clubes cartelizados que ganham dinheiro com esse equipamento público. De certa forma, o uso de Interlagos já é privatizado. Ninguém usa aquilo de graça quando se fala de sua atividade principal, o automobilismo. Não é justo que se diga que a população paga para gente rica correr de carro. Ricos ou não, os que correm de carro pagam para usar o autódromo. E não pagam pouco.

Assim, essa história de que Interlagos tem de passar às mãos da infalível iniciativa privada para deixar de dar prejuízo e virar um oásis de qualidade e eficiência é conversa. Primeiro, porque não dá prejuízo. Segundo, porque só não é oásis de nada porque os usuários não cobram de quem deveriam — de novo, federação, confederação e clubes — aquilo que teriam direito de receber.

O problema de Interlagos não é ser de propriedade da cidade, nem o fato de ser administrado por uma empresa que tem participação acionária do poder público. O problema de Interlagos é a estrutura do automobilismo nacional e regional. Essa, sim, é um desastre. E, até onde se sabe, entidades e clubes não são públicos. São privados. Bem privados.

Apontem seus canhões na direção certa. É tudo que posso dizer.