Blog do Flavio Gomes
F-1

VENDE A MÃE (2)

SÃO PAULO (tudo meio parecido) – Aproveitando o ensejo, pingo aqui vídeo enviado pelo Alexandre Neves com tomadas onboard de uma curva que já se tornou clássica na F-1, o S do Senna. A compilação traz imagens desde 1990, ano em que a corrida voltou a São Paulo, graças à intervenção da então prefeita Luiza […]


SÃO PAULO (tudo meio parecido) – Aproveitando o ensejo, pingo aqui vídeo enviado pelo Alexandre Neves com tomadas onboard de uma curva que já se tornou clássica na F-1, o S do Senna. A compilação traz imagens desde 1990, ano em que a corrida voltou a São Paulo, graças à intervenção da então prefeita Luiza Erundina.

Para quem não lembra, a prova foi realizada no Rio por nove anos seguidos, de 1981 a 1989 (antes disso houve só uma edição, em 1978). Naquele ano, porém, nos célebres testes de pneus de pré-temporada em Jacarepaguá, o francês Philippe Streiff sofreu um acidente, o santantônio de seu AGS quebrou, ele sofreu uma fratura no pescoço e o atendimento médico foi considerado desastroso pela FIA. Streiff ficou tetraplégico.

[bannergoogle]O triste episódio, somado a problemas de organização e financeiros do Rio, culminou com a decisão de excluir o Brasil do calendário elaborado para a temporada seguinte.

Erundina, eleita em 1988 pelo PT numa disputa épica com Paulo Maluf — não havia segundo turno, na época –, resolveu abraçar a causa de manter a F-1 no país. Em abril de 1989, chamou o presidente da CBA, Piero Gancia, e o presidente da FASP, Marcos Corsini, para conversar. A toque de caixa, elaborou um plano de negócios para reformar Interlagos a custo zero para a cidade. Essa era uma exigência da FIA: levar a cabo mudanças drásticas no circuito, que tinha quase 8 km de extensão e era considerado perigoso para os padrões da categoria.

De fato, alguns pontos como a Curva 3, no fim do Retão, e a Curva do Sol, sem área de escape, eram bem problemáticos. Além disso, a extensão da pista contrariava a estética das transmissões de TV. Com aquele tamanho, Interlagos faria uma corrida de menos de 40 voltas, o que era pouco e, também, custoso. Havia a necessidade de espalhar câmeras demais por uma área muito extensa para cobrir cada volta. E, igualmente, construir arquibancadas em locais onde seria praticamente impossível. Em resumo, era caro.

Erundina, Gancia (esq.) e Corsini, da FASP: salvando o GP do Brasil

Um projeto foi feito na correria, com a ajuda e consultoria de Ayrton Senna. Não foi o melhor de todos. Francisco Rosa, à época administrador do autódromo, tinha ideias mais interessantes, que adequavam o traçado àquilo que a FIA pedia com a implantação de algumas variantes, mas preservava o desenho original. Dá para ver o que ele idealizou na foto acima, no painel atrás da prefeita e do inesquecível Gancia.

Chico sugeria uma chicane no Retão para livrar os pilotos da Curva 3 e, antes da antiga Ferradura, um desvio para a esquerda em aclive, onde a pista antiga seria retomada na Curva do Laranja — atualmente chamada de Laranjinha.

Era um ótimo projeto, e é verdadeiramente uma pena que não tenha sido executado. Não conheço muitos detalhes da negociação que acabou fazendo com que as propostas de Ayrton se impusessem, mas não se pode negar que tudo que ele dizia tinha muito peso. E, igualmente, deve-se elogiar seu empenho em mergulhar de cabeça na cruzada de Erundina para trazer o GP de volta a São Paulo — a prefeita compreendia que era um ótimo negócio para a cidade, como sempre foi.

No fim, as ideias de Senna foram aprovadas e a pista, encurtada para os pouco mais de 4 km de hoje. A construção de uma curva em declive ligando a antiga Reta dos Boxes à Curva do Sol, que passaria a ser percorrida no sentido contrário, acabou se transformando na assinatura do novo circuito. E ela foi batizada de S do Senna.

Os trabalhos duraram três meses e foram feitos num ritmo frenético, no fim de 1989. Era preciso correr contra o tempo, porque o GP do Brasil seria a segunda etapa do campeonato, no fim de março. E, até lá, o autódromo precisaria ser vistoriado pelos dirigentes sediados em Paris e testado. Além da pista em si, havia a necessidade de se construírem novos boxes, torre de controle, edifício com sala de imprensa e camarotes, escritórios para as equipes, praticamente tudo. Interlagos estava em estado de abandono desde o início dos anos 80, depois de perder a F-1 para o Rio. Era um autódromo em ruínas.

Em novembro, a FIA incluiu o Brasil novamente no calendário.

Senna em Interlagos: como JK

De férias no país naquele fim de ano, Senna passou a frequentar o autódromo com alguma assiduidade para acompanhar as reformas. Eram famosas suas fotos dirigindo tratores ou orientando engenheiros no meio da lama no canteiro de obras. As imagens remetiam a antigos retratos de Juscelino Kubitschek supervisionando a construção de Brasília no deserto Planalto Central, onde em poucos anos brotaria a nova capital federal.

Lembro que, na época, eu era editor de Esportes da “Folha de S.Paulo” e o assunto era tratado como prioridade do jornal. Primeiro, porque envolvia Senna, o maior ídolo brasileiro. Segundo, porque tinha PT no meio. A vitória de Erundina no ano anterior fora uma surpresa, por se tratar da ascensão da esquerda na maior cidade do país — até então, salvo engano, o partido só tinha conquistado em sua curta história uma Prefeitura de capital, Fortaleza. Havia muita curiosidade sobre o quê aquela brava paraibana conseguiria fazer numa metrópole complicada e conservadora como São Paulo.

Estávamos, também, em época de eleição presidencial. Collor despontava no cenário nacional e Lula seria seu adversário no segundo turno de uma campanha histórica que mudou os rumos do país. O que Erundina fizesse por aqui teria claras repercussões num pleito épico — afinal, era a primeira vez que o Brasil elegeria um presidente diretamente desde Jânio Quadros.

Eram anos bem loucos e ricos, enfim. O debate político, olhando hoje em perspectiva, era de altíssimo nível — considerando o que se vê atualmente em redes sociais e o porte intelectual de possíveis candidatos em 2018, como Bolsonaro, Luciano Huck e João Doria. Verdade que eram muitos os pretendentes ao Planalto, nada menos do que 22. Mas tínhamos Brizola, Ulysses, Covas, o próprio Lula… Hoje dá desgosto de ver o que nos espera.

[bannergoogle]Erundina, para financiar a reconstrução de Interlagos, fez aquilo que políticos neoliberais sempre pregaram e nunca conseguiram pôr em prática no Brasil: recorreu à iniciativa privada sem ônus para os cofres públicos. Fechou um acordo com a Shell, que bancaria todos os custos e, em troca, receberia por prazo determinado alguns terrenos ociosos na cidade para que instalar postos de gasolina. A Shell pagaria pelo aluguel desses terrenos, e anteciparia os valores para as obras serem realizadas — elas custaram US$ 18 milhões. Uma permuta simples, fácil de compreender e claramente vantajosa para o município — os terrenos ganhariam uso, voltariam à Prefeitura depois de 20 anos e, durante o período em que fossem explorados pela Shell, gerariam empregos e impostos.

Tudo foi feito em tempo recorde, e em março de 1990 a F-1 estava de volta a São Paulo, com Collor se escalando para a premiação. Recém-eleito, ele chegou de helicóptero ao autódromo, assistiu à corrida no camarote da Unicór (que nem existe mais) e, quando foi ao pódio, cumprimentou Prost, Berger e Senna e esqueceu de entregar os troféus. O responsável pela execução dos hinos — no caso, França e Itália, de Prost e da Ferrari — se atrapalhou com a quebra de protocolo, os pilotos se agacharam e pegaram suas taças e garrafas de champanhe e, no fim, a cerimônia foi uma bagunça sem hinos ou entrega de prêmios. Collor ainda desceu para a pista, pegou um Opala Diplomata para dar uma volta e foi vaiado pelo público.

Lembro que o acordo com a Shell foi contestado e o contrato, anulado por conta da oposição que Erundina sofria dos vereadores da cidade. A Vega Sopave, empreiteira que fez as obras — e acabou não recebendo da Shell, já que os terrenos nunca foram cedidos –, tenta receber até hoje, pelo que sei. A questão ainda está na Justiça e a última notícia disponível dá conta de uma indenização que a Prefeitura deveria pagar. Mas, sinceramente, não sei qual foi o desfecho desse caso.

Vixe, contei tudo isso só para mostrar uns vídeos do S do Senna. Será que alguém ainda se interessa por essas histórias?