Blog do Flavio Gomes
F-1

A TAL PRIMEIRA VOLTA

RIO (nem parece) – Busquei no acervo da “Folha”, onde trabalhava na época, o que escrevi sobre o GP da Europa de 1993. Queria ver se tive a noção, no dia, de como aquela primeira volta de Senna em Donington ganharia uma dimensão histórica, como ganhou. Bom, sabe como é a tal da lei de […]

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RIO (nem parece) – Busquei no acervo da “Folha”, onde trabalhava na época, o que escrevi sobre o GP da Europa de 1993. Queria ver se tive a noção, no dia, de como aquela primeira volta de Senna em Donington ganharia uma dimensão histórica, como ganhou.

Bom, sabe como é a tal da lei de Murphy, né? Justo a edição de 12 de abril de 1993 está incompleta. Todos os cadernos, exceto o de Esporte, foram escaneados. Paciência.

Apenas na chamadinha da Primeira Página, assinada — o que era raro naqueles tempos, mas o jornal fazia isso quando o repórter estava fora do país, era sinal de prestígio –, há uma menção às ultrapassagens que Ayrton fez, sobre Wendlinger, Hill e Prost. E, no extrato daquilo que foi publicado no caderno esportivo, o redator da chamada incluiu a opinião deste que vos bloga hoje, 25 anos depois: “(…) Senna mostrou que é o melhor piloto do mundo em pista molhada (…) e provou que Prost é um zero à esquerda sob chuva”.

[bannergoogle]Eu era cheio de dar opiniões em textos noticiosos — um erro conceitual, ainda mais para os padrões exigidos pela “Folha” nos anos 90, durante a implantação de seu rigorosíssimo “Manual de Redação” –, mas por alguma razão, no meu caso, toleravam. Respeitavam meu estilo, não me enchiam o saco, e eu achava ótimo.

Quanto às opiniões, não estava errado. Senna era mesmo o melhor na chuva, e Prost vivia fazendo cagadas no molhado. Aliás, poucas semanas antes o francês fora vítima da água em Interlagos, jogando no lixo seu favoritismo à vitória. O brasileiro aproveitou as presepadas de Alain nas duas oportunidades e, depois de ganhar em São Paulo e Donington sob condições parecidas, era legítimo considerá-lo o melhor naquele quesito ditado pelos índices pluviométricos locais.

Mas não lembro, sinceramente, se nos textos que escrevi para o jornal naquele dia exaltei demais a tal da primeira volta, porque a corrida foi doida demais para que me detivesse apenas nela. Para se ter uma ideia, Prost fez sete pit stops. Senna, cinco — na verdade, trocou de pneus quatro vezes, e na quinta passagem nem parou, registrando inclusive a melhor volta da corrida nessa hora, porque a entrada de box encurtava o circuito e não havia limite de velocidade no pitlane.

E ainda teve Barrichello, que chegou a andar em segundo e fez uma primeira volta tão fabulosa quanto a de Ayrton. O drama de seu abandono no fim talvez tenha me parecido, na ocasião, tão relevante quanto as ultrapassagens de Senna no início. A Jordan parou sem gasolina a poucas voltas do final. Como os carros tinham controle de tração, o equipamento, no piso molhado, foi mais acionado do que o normal e esgotou o tanque de seu carro. Erro de cálculo que o time não assumiu, colocando a culpa numa bomba de combustível defeituosa. Cascateiros.

[bannergoogle]O fato é que o tempo vai passando e a gente acaba reduzindo tudo que viu e viveu a uma seleção de melhores momentos, como se tivéssemos de compactar nossos arquivos para salvar apenas fotos e vídeos mais bonitinhos, jogando fora o que não interessa. O cérebro humano, nisso, é engenhoso. Por isso, com a fragmentação da memória, o que ficou foi a tal da primeira volta. E ela foi se tornando cada vez melhor e mais épica com o passar dos anos.

Talvez, no entanto, essa percepção não tenha sido imediata. Na semana seguinte, por exemplo, nem falei dela na minha coluna “Warm Up”, que era publicada aos sábados no jornal. O tema principal foi Piquet, que depois do acidente de 1992 voltava a Indianápolis para desafiar o oval. O texto está aqui. Menção a Senna, só na última das quatro notinhas: “Ayrton vive sua melhor fase. Um piloto como ele no auge é assustador”, escrevi.

De novo, não estava errado. Foi, para muita gente, a melhor temporada de sua carreira em termos de pilotagem. Com uma McLaren meio manca de motor, venceu cinco corridas em cima de um carro quase imbatível — a Williams da suspensão ativa, de Prost e da Renault. Elogios a Ayrton eram tão fartos e frequentes, que não se fazia necessária mais uma coluna laudatória uma semana depois da prova.

E o que me lembro daquele fim de semana, exatamente?

Bom, do frio e da chuva, por óbvio. Do museu de Donington, espetacular. Da sala de imprensa meio improvisada, tinha de sair e descer uma escada metálica muito escorregadia cada vez que queria mijar, e eu sempre achava que iria levar um tombo — aí sim épico — naquela merda. Da dificuldade em obter informações sobre as dores de Rubinho, que ficou todo travado depois de uma prova desgastante para um moleque de 20 anos. E, se não me equivoco, de Senna atribuindo a vitória a Deus, na única vez em que me irritei com suas tendências místicas melosas e exageradas e lhe disse que aquele negócio de atribuir tudo a Deus já estava ficando um saco, e que na verdade ele tinha guiado muito bem, e que se pudesse, por favor, que falasse disso, que era o que me interessava.

Mas para ele, foi Deus mesmo. Talvez eu tenha registrado a responsabilidade divina pelo resultado nas matérias que escrevi, mas precisaria procurar nos meus arquivos (se o jornal não tem essas páginas escaneadas, eu tenho tudo guardadinho), e eles estão em São Paulo.

Se lembrar, quando for para lá de novo procuro.