Blog do Flavio Gomes
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RIO – “Hortênsia não é com ‘s'”?, me perguntou alguém em voz muito baixa por trás de meus ombros, quando eu revisava, no “paste up”, texto por texto do caderno especial que publicaríamos no domingo, dia 4 de outubro de 1987, chamado “30 anos no espaço”. A palavra estava dividida entre a primeira e a […]

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RIO – “Hortênsia não é com ‘s'”?, me perguntou alguém em voz muito baixa por trás de meus ombros, quando eu revisava, no “paste up”, texto por texto do caderno especial que publicaríamos no domingo, dia 4 de outubro de 1987, chamado “30 anos no espaço”. A palavra estava dividida entre a primeira e a segunda linhas de uma retranca de apoio na página 6 do caderno, que falava sobre o ingresso de países da Ásia no mercado de lançamentos de satélites. A matéria era assinada “De Tóquio e Pequim”, por nossos correspondentes naquelas cidades — Mitsuhito Saito no Japão, alguém de quem não me lembro na China, já que Jaime Spitzcowsky só foi para lá em 1994.

A voz baixa era de Otavio Frias Filho, o OFF, filho do dono do jornal onde eu trabalhava havia menos de um ano na editoria de Educação e Ciência. Por ter estudado astronomia e conhecer toda a turma do INPE, IAG e ser primo do diretor do Planetário, coube a mim fechar aquele caderno quase inteiro, com textos produzidos pela Redação, pela Reportagem Local (a única assinatura era minha, numa matéria sobre os planos dos EUA de montarem uma base permanente na Lua; um quase contrabando, porque assinar matéria na “Folha” nos anos 80 era um parto) e por nosso pessoal em Nova York, Londres e Bonn, além de Pequim e Tóquio. O caderno, que celebrava os 30 anos do lançamento do Sputnik pela URSS, trazia também uma página inteira de serviços com dicas de filmes, vídeos, cursos, livros e museus sobre o assunto, uma pesquisa do DataFolha sobre o grau de conhecimento dos brasileiros sobre o espaço e uma entrevista exclusiva com Isaac Asimov assinada por Nelson de Sá.

Nossa editoria era pequena, mas desde minha chegada à “Folha” em novembro de 1986, aos 22 anos, estava bem claro que era uma espécie de menina dos olhos de Otavinho por algumas razões. A primeira delas, seu interesse por temas científicos e acadêmicos — paixões que ladeavam uma quase obsessão por dramaturgia e literatura. O jornalismo, mesmo, parecia mais sacerdócio que vocação; mas acabou, com o tempo, se transformando na sua razão de viver. Muito jovem, aos 26, assumiu o comando da Redação para implantar um projeto que revolucionou a maneira de se fazer jornalismo no Brasil cujos princípios são universais, mas que enfrentou duríssima resistência das gerações forjadas na imprensa dos anos 50 e 60 no país.

Foram anos loucos. Otavio se cercou, nos postos de comando, de jovens irrequietos como ele, dispostos a bater de frente com o que fosse preciso para impor suas ideias cujo objetivo final era, basicamente, tratar a informação com alguma objetividade e romper conceitos que contaminavam o ofício desde sempre. O Brasil saía de uma ditadura militar e a “Folha” foi o primeiro jornal a abrir suas páginas aos que foram calados pelo regime — regime este apoiado pela “Folha” desde o início, diga-se. Isenção, apartidarismo, espírito crítico, pluralismo e precisão eram alguns preceitos que formavam nossa doutrina, descrita em pormenores num severo “Manual de Redação” editado pela primeira vez em 1984 e que acabaria se tornando a bíblia da Barão de Limeira, 425.

Logo que cheguei, me colocaram para cobrir um conflito quase sangrento entre a “Folha” e o Sindicato dos Jornalistas, que não aceitava a decisão do empresa de contratar pessoas não formadas em jornalismo para atuar em sua Redação. Trabalhavam no quarto andar daquele prédio forrado de pastilhas coloridas economistas, sociólogos, médicos, cientistas sociais, químicos, biólogos, músicos, psicólogos, advogados, geógrafos, historiadores, qualquer um, enfim, que soubesse escrever e fosse capaz de seguir as normas do “Manual”, com qualquer formação acadêmica. O sindicato exigia que a “Folha” cumprisse a lei, que garantia reserva de mercado a jornalistas formados em faculdades de jornalismo, ou que já exercessem a profissão antes da exigência do diploma. A “Folha” cagava para a legislação e para o sindicato. E eu, formado em rádio e TV, escrevia sobre o assunto.

Era tema delicado, e todos os textos envolvendo a disputa tinham de passar não pela chefia da editoria, mas pelo dono do jornal. Era quase uma cruzada pessoal de Otavio, o direito que ele considerava ter de colocar para trabalhar em seu jornal quem quisesse, e não quem o sindicato dizia que poderia trabalhar lá. Em linhas gerais, eu concordava com a tese. Não via nenhuma razão muito plausível para impedir que um bom economista escrevesse sobre economia num jornal. Ou para que um médico não pudesse redigir artigos sobre assuntos ligados à saúde. Um bom jornalista também podia fazer o mesmo, se se preparasse para tal. Eu mesmo me considerava um improvável vitorioso nessa contenda — escrevia sobre maçaricos de plasma, física quântica, astronomia, celacantos, estruturas sociais de colmeias e apetite de aranhas com a mesma desenvoltura com que falava sobre qualquer outro assunto; bastavam minha curiosidade, a falta de vergonha de perguntar e a capacidade de redigir um texto compreensível, atributos que julgava possuir.

Não era, em resumo, um debate que me interessasse muito, e talvez por isso meus textos carregavam a aridez e o distanciamento desejáveis pelo jornal naquela questão que eu considerava aborrecida e irrelevante. Queria, mesmo, que aquela briga acabasse logo para pegar pautas mais estimulantes, enquanto flertava com o pessoal de Esportes — meu desejo de sempre — para que assim que abrisse uma vaga por lá, me dessem uma chance.

Demorou bastante. OFF gostava das minhas matérias. Antes de irem para a página, eu era obrigado a tirar um print, como dizíamos, colocar num envelope daqueles vai-e-volta, gritar “desce!” até aparecer um boy — a Redação era cheia de auxiliares, uma gritaria maluca, “desce!” o tempo inteiro, eram eles que levavam e buscavam papéis, recados, café, fotos, lanches, tudo — que levaria a matéria à Direção de Redação, onde ela seria lida pelo dono do jornal, nada menos que isso.

Otavio era rápido, respeitava os horários de fechamento, e dez minutos depois o boy voltava com o envelope já endereçado não a mim, mas ao editor, que pegava o print para fazer as alterações solicitadas, mas via de regra minhas matérias voltavam intactas, sem nenhuma observação rabiscada a caneta, o que significava que deviam ser publicadas exatamente como eu tinha escrito. Uma vez, numa das primeiras que tive de fazer sobre a briga com o sindicato, OFF estava na Redação e meu editor, Marcelo Leite, levou o print direto para ele, sem a intermediação do boy e do envelope, e ele leu de pé, enquanto fumava seu Hollywood e jogava sua Bic para o alto — mania que tinha, a caneta girava no ar e nunca caía no chão –, devolveu e disse algo como “se todo mundo escrevesse como esse menino minha vida seria muito mais fácil”, o que considerei um elogio e tanto.

Acabei me transferindo para Esportes no começo de 1988, e já fui com cargo de chefia, editor-assistente, o que me levava a participar de duas ou três reuniões por dia, e Otavio comandava pelo menos duas delas, a da hora do almoço e a do fechamento, e elas aconteciam no mesão da sala de reuniões da Redação. Era um momento sempre muito tenso e solene quando ele estava. Porque OFF era um sujeito esquisito, muito tímido e exigente, falava pouco e muito baixo, e quando falava, geralmente era para esculhambar com muita classe e acidez o produto que fazíamos, “uma fábrica de erros”, como ele dizia, obcecado por uma perfeição que, sabia, jamais seria atingida.

Eram sessões de autoflagelo, aquelas reuniões. Eu, moleque, à frente de uma editoria com a qual ele nunca se importara muito — me respeitava muito mais pelo tempo em que trabalhei com ciência e educação do que por coordenar uma equipe de 30 repórteres e redatores que escreviam sobre futebol, surfe e Fórmula 1 –, não me incomodava porque sabia que o que teria de falar não lhe interessava minimamente. Assim, era praticamente isento de críticas ou observações; o universo em que vivíamos, de Corinthians, Palmeiras, Mike Tyson, Alain Prost, Teco Padaratz, Ben Johnson, Sergey Bubka e outros personagens da época, definitivamente, lhe soava um pouco distante e exótico. Sofriam os editores de Política, Economia, Cidades, Ilustrada, Primeira Página, os carros-chefe do jornal. As pessoas tinham muito medo dele, jamais questionavam suas sugestões ou solicitações, mesmo sabendo que, algumas vezes, elas eram impossíveis de serem cumpridas — o esporro inevitável, sempre em voz muito baixa, viria devastador no dia seguinte quase em forma de humilhação pública.

O mesão nos anos 90. Sou o moleque de camiseta branca entre Eleonora de Lucena (secretária de Redação), e Artur Ribeiro Neto (Política).

Eu achava aquilo tudo bem divertido, para dizer a verdade — o temor nos olhos daquelas cobras-criadas dentro de uma Redação enlouquecida e enlouquecedora. Otavio era quase da minha idade, apenas sete anos mais velho. Tratava-o como a um igual, ou ao menos tentava fazer isso. Um dia, numa dessas reuniões — pode ter sido no dia dessa foto, como saber? –, me pediu alguma bobagem e eu falei que OK, a gente iria fazer. “Mas você não vai anotar, Flavio?”, perguntou, sem alterar o tom de voz. Eu disse que não precisava, que não era maluco, iria me lembrar, e ele resmungou alguma coisa como “por isso que este jornal nunca será nada”, e quando a reunião terminou outros editores foram até minha mesa para dizer que eu não devia ter feito aquilo, que não se fala desse jeito com um diretor de Redação, ainda mais quando o sujeito é dono do jornal, e talvez tivessem razão.

Quando Senna foi campeão mundial em 1990, fechei uma edição linda que tinha, na página dupla central, um álbum de fotos (vocês chamam de galeria, hoje) contando em imagens a carreira do piloto. Era muito difícil montar uma dupla como aquela, porque tínhamos de pegar as fotos em papel, escolher uma por uma em pastas enormes e desconjuntadas, creditar e legendar, e o trabalho de calcular a proporção de cada uma — que tinha de “descer” para ser refotografada no tamanho exato — era do diagramador, e naquele dia a menina que foi designada para fechar o caderno comigo estava em seu primeiro dia de jornal e caiu no seu colo aquele enorme abacaxi, e o horário do fechamento foi chegando, e eu desesperado, até que aquela mesma voz baixa e sem inflexões falou de novo no meu ombro “como estamos?”, e eu gritei sem me virar “tá quase, tá quase, me deixem em paz um minuto que fecha!”, eu era meio histérico na hora de fechar o jornal, e quando olhei para trás era o Otavio, que naquele domingo estava de plantão — sim, o dono do jornal também pegava uns plantões — fechando a Primeira Página, e reforcei, “tá quase, calma que fecha”, e ele disse “OK, tenta não atrasar porque você sabe como é o industrial”, e fechou, claro, jornal sempre fecha.

Otavio me convidou para ser diretor de Redação da “Folha da Tarde”, o outro jornal da casa, quando teve de me demitir depois que me recusei a ficar na Itália acompanhando o inquérito sobre a morte de Senna, em 1994 — eu peguei o avião e voltei porque achava a ordem estúpida, aquilo iria levar anos, e porque precisava estar aqui para a cobertura do funeral. Agradeci, recusei e disse que se não servia para ser repórter, não servia também para chefiar um jornal inteiro. Ele respondeu que não queria me demitir, mas que não podia passar por cima de quem tinha decidido me mandar embora. Porra, você é o dono do jornal, Otavio, falei, mas ele tinha razão, seria contrariar uma determinação de alguém que ocupava cargo de confiança, e saí sem nenhuma mágoa dele, embora puto.

A última vez que falei com Otavio Frias Filho foi em 2005, 11 anos depois de sair da “Folha”. Tinha lançado meu livro, “O Boto do Reno”, e coloquei um exemplar no correio para ele. Um dia toca o telefone no meu escritório na Paulista e a secretária diz, “um momento que o Otavio vai falar com você”, e eu não sabia quem era. Fiquei surpreso, nunca havia recebido um telefonema dele, nem quando estava na “Folha”. O último texto do livro se chama “Imola, 1994“, e relata minha saída do jornal. Com o mesmo tom de voz de sempre, disse que havia gostado muito do livro e que não sabia “que tinha sido daquele jeito” que as coisas tinham acontecido. Já tem tempo, Otavio, esquece, que bom que você gostou, falei. Ele agradeceu e disse que iria pedir para a Monica Bergamo publicar uma nota sobre o lançamento na Ilustrada, o que realmente aconteceu. Agradeci, também, e nos despedimos sem grandes tolices como “precisamos tomar uma um dia desses”.

Pena que tenha sido uma conversa tão breve. Naquela época eu tinha acabado de ler “Queda livre – Ensaios de risco”, livro que OFF escreveu relatando sete experiências pessoais que vivera naqueles anos — a saber: um salto de para-quedas, uma imersão no Santo Daime, um período dentro de um submarino da Marinha Brasileira, a atuação como ator numa peça de Zé Celso, o percurso do caminho de Santiago de Compostela, um mergulho no mundo do swing e das trocas de casais e um trabalho temporário no CVV. O livro é uma obra-prima e não disse isso a ele — devia. Em 2007, quando seu pai morreu, publiquei um texto no blog e um ex-funcionário do “seu” Frias pingou nos comentários um relato muito bonito sobre os tempos em que trabalhou para ele na Granja Itambi. Copiei e mandei para seu e-mail dizendo apenas que achava que ele gostaria de ler aquilo. Não houve resposta, mas espero que tenha lido.

Otavio descobriu há um ano que tinha câncer no pâncreas. Fiquei sabendo ontem à noite. Morreu na madrugada de hoje aos 61 anos.

“Girassol, Cerejeira, Lírio e Hortênsia são alguns dos nomes dos satélites de tecnologia de aplicação japoneses. Por eles já se pode perceber a preocupação do país em mostrar ao mundo que seu programa espacial tem fins pacíficos”, dizia o começo do texto que Otavio, como eu, leu palavra a palavra naquela noite de sexta-feira no “paste up” revisando o caderno sobre os 30 anos do Sputnik. Hortênsia era, sim, com “s”. “Com ‘c’ é a jogadora de basquete”, disse a ele, justificando o erro e já saindo de estilete na mão à caça de um “s” na mesma fonte e tamanho para consertar — não era difícil — nas centenas de tiras de textos jogados no lixo no terceiro andar, onde olhávamos as páginas prontas antes de seguirem para o fotolito e para a impressão.

Saiu certo, com “s”.