Blog do Flavio Gomes
F-1

1001 NOITES (3) – QUE PENA

SÃO PAULO (sem lágrimas) – Sem querer filosofar muito, a vida é assim mesmo. A gente vai do céu ao inferno rapidinho e só resta levantar a cabeça e seguir em frente. E me parece que Charles Leclerc é desses que não se deixam abater. Num primeiro momento, assim que estacionou o carro depois de […]

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Vettel consola o jovem companheiro: não foi dessa vez, mas o futuro está aí para ser vivido

SÃO PAULO (sem lágrimas) – Sem querer filosofar muito, a vida é assim mesmo. A gente vai do céu ao inferno rapidinho e só resta levantar a cabeça e seguir em frente. E me parece que Charles Leclerc é desses que não se deixam abater. Num primeiro momento, assim que estacionou o carro depois de receber a bandeirada no Bahrein, deve ter tido vontade de cavar um buraco no chão e nele se enterrar. Aí respirou fundo, recebeu os abraços sinceros de Hamilton e Vettel, e foi buscar seu troféu de terceiro colocado.

O que mais Leclerc vai ouvir nos próximos dias, dos colegas ao atendente do chek in no aeroporto, do carteiro ao rapaz que faz baguete na chapa para ele todas as manhãs em Monte Carlo, será: “Calma, garoto, sua hora vai chegar, você tem muito tempo pela frente”. E é a mais pura verdade. Por isso ninguém viu cenas de desespero explícito do monegasco no circuito barenita, mesmo com a carga dramática que acompanha a perda de uma corrida ganha até faltarem dez voltas para o final. Seria lindo vencer em sua segunda prova pela Ferrari. Mas não deu, e foi lindo do mesmo jeito.

Charles é um garoto de 21 anos que a vida se encarregou de amadurecer rápido. Já levou alguns tombos pesados e o de hoje foi mais um, que nem de longe se assemelha às perdas recentes de gente muito querida, como seu padrinho Jules Bianchi, depois do acidente de Suzuka em 2014, e o pai, mais recentemente. Perto disso, perder uma corrida é fichinha. Sempre tem a próxima.

Mas que ele merecia vencer, merecia. E o automobilismo tem dessas crueldades. Carros de corrida quebram, é o que sempre digo. Faz parte da natureza do esporte. Às vezes é lá atrás e ninguém liga. Às vezes é na frente e todo mundo fica morrendo de dó.

Largada: Vettel pula na frente e Bottas também ultrapassa o jovem Charles em seu único tropeço no fim de semana

Leclerc fez a pole ontem com enorme autoridade e seu único tropeço no fim de semana foi a largada — superado por Vettel e Bottas, caiu para terceiro nos primeiros metros de um GP que começou promissor. A recuperação foi quase instantânea. Já na segunda volta, deixou Valtteri para trás. Hamilton veio junto e também passou o finlandês.

Vettel tinha começado a noite muito bem, e em três voltas já abria 1s7 para seu impetuoso parceiro. Mas sem nenhuma Mercedes na frente para atrapalhar, Charlinho mirou no alvo que lhe cabia e foi buscar. Na quinta volta, já estava na cola de Sebastian. Na sexta, passou fácil. E foi embora. No rádio da Ferrari, silêncio, Ou quase. Depois soube-se que a equipe pediu para o menino esperar duas voltas para superar Tião, se não fosse incômodo.  Ele não deu muita bola, levou uma só, e ninguém reclamou, nem ameaçou sequestrar seu cãozinho– para desespero dos que adoram demonizar o time e acham que todos seus resultados nos últimos 70 anos foram arranjados por ordem de alguma entidade satânica que recebe almas transtornadas no inferno montada num cavalo rampante.

A partir daí, Leclerc assumiu o controle absoluto da prova barenita com total serenidade, deixando para os outros a tarefa de tentar alguma coisa diferente na luta pelas duas posições restantes no pódio e pelos lugares menos entediantes do purgatório da zona de pontuação. Ali, diga-se, a brincadeira estava divertida. Ricciardo e Hülkenberg, dupla da Renault, eram os que mais se destacavam no bololô intermediário. Gasly, Norris e Raikkonen também entretinham o público.

Todo mundo começou a parar cedo para trocar pneus, indicando que dois pit stops seriam necessários para aguentar o asfalto abrasivo do circuito de Sakhir. Alguns, como Leclerc e Vettel, optaram pelos compostos médios na primeira parada. Outros, como Hamilton, seguiram nos macios. A janela de paradas devolveu Lewis à frente de Tião graças a um trabalho melhor da Mercedes.

Com pneus mais macios, esperava-se que o inglês, então, partisse para cima de Leclerc. Nada… O menino que cresceu solto pelos morros das comunidades pobres da Côte d’Azur, soberano, seguia aumentando a diferença. E quem chegou foi Vettel, que na volta 23 recuperou o segundo lugar passando fácil por Hamilton. Com Charles 8s à frente, quase metade da prova já cumprida, tudo indicava que a esperada dobradinha da Ferrari desde os treinos livres seria confirmada — e com o charme de um novato em primeiro.

A prova entrou num momento de relativa calmaria, aquela que na literatura antecede as grandes tempestades, até a turma voltar aos boxes para a segunda troca de pneus a partir da volta 33. Hamilton voltou aos médios na volta 34, mesma escolha de Vettel duas voltas depois. Charles parou na 37 e seguiu na ponta sem sustos. Com os pneus de letras amarelas, Lewis começou a andar melhor e foi para cima da Ferrari #5. Na disputa, belíssima, Sebastian acabou rodando sozinho — “foi meu erro”, admitiu –, o carro ficou esquisito e pouco depois, vibrando muito, a asa dianteira bateu no asfalto e arrebentou. O alemão teve de voltar aos boxes, trocar tudo — pneus e bico — para retomar a prova em oitavo na volta 38.

O estouro da asa: pirotecnia no carro de Vettel depois de ser ultrapassado por Hamilton e rodar

Leclerc seguia em velocidade de cruzeiro enquanto o pau comia lá atrás. Então, veio a mensagem pelo rádio: “Tem algo estranho no motor”, alertou. A equipe não sabia o que era. No painel, a mensagem: “Fail B”. O sistema de regeneração de energia — que transforma calor das frenagens e rotação do turbo em potência — parou de funcionar. Leclerc perdeu velocidade imediatamente e começou a virar tempos cerca de 5s piores que todos os demais.

Uma tragédia grega. Com 150 cavalos a menos na traseira, Charles só pôde dizer “oh, meu Deus”. Hamilton chegou e passou na volta 48. Bottas, que estava em terceiro mais de 25s atrás quando o motor da Ferrari deu sinais de estafa, não precisou se esforçar muito para assumir o segundo lugar na volta 54, a três do final. Verstappen, que vinha logo atrás, também iria ganhar a posição.

Foi aí que o destino, tão perverso com Leclerc, resolveu lhe dar uma folguinha. Na volta 55, os dois carros da Renault quebraram ao mesmo tempo. Como ficaram em posições perigosas na pista, a direção de prova acionou o safety-car. Não haveria tempo de uma relargada e, assim, ninguém mais poderia ultrapassar Charles e sua Ferrari se arrastando. A quadriculada foi dada atrás do carro de segurança — pela oitava vez na história um GP terminou assim, sob bandeira amarela. Alívio para o monegasco, enfim. Pelo menos um trofeuzinho na estante. Melhor que nada.

O cumprimento de Hamilton: o pentacampeão reconheceu que deu sorte

No fim das contas, a Mercedes conseguiu mais uma dobradinha, ainda que tenha sido surrada pela Ferrari desde sexta-feira. Bottas segue líder do campeonato, graças a ponto extra da melhor volta em Melbourne — que hoje ficou com Leclerc. São 44 pontos, contra 43 de Hamilton. Verstappen, quarto colocado no Bahrein, vem em seguida com 27. Vettel, Norris, Raikkonen, Gasly, Albon e Pérez fecharam a zona de pontos no GP desértico. Norris e Albon marcaram seus primeiros pontos na categoria.

Charles foi abraçado por Vettel e Hamilton, ficou chateado, claro, mas não se dissolveu em prantos. Aquele buraco que teve vontade de cavar no deserto foi trocado por palavras firmes e otimistas. “Acontece. A equipe tem de se orgulhar de como melhorou da Austrália para cá. É triste para mim e para o time, claro, mas mostramos que temos o carro mais forte. Vamos para a próxima”, falou.

Hamilton, que na salinha pré-pódio consolara o rapaz dizendo que ele tem um lindo futuro pela frente, também demonstrou alguma comiseração pelo rádio enquanto comemorava a 74ª vitória de sua carreira. “Pena o que aconteceu com o Charles, foi muito triste”, comentou com seu engenheiro. Mas a compaixão terminou aí. “Agora precisamos trabalhar para voltar a andar na frente deles, porque neste fim de semana ficamos atrás.”

É assim, Charlinho. A piedade dura pouco nessa vida que você escolheu. Então, não tenha pena de si mesmo.