Blog do Flavio Gomes
F-1

INTERLEWIS (1): DESAPEGA

SÃO PAULO (nublado, 19°C) – Semana passada, o “fanfest” da Fórmula 1 no Ibirapuera patrocinado pela Heineken teve um mote: Ayrton Senna. Levaram alguns carros para exibição pública. Um deles a Toleman de 1984. Foi pilotado por Ayrton Senna. Outro, a Lotus de 1985. Quem pilotava? Ayrton Senna. A Heineken lançou uma ação nas redes […]

Hamilton foi no Bial. O tema? Senna

SÃO PAULO (nublado, 19°C) – Semana passada, o “fanfest” da Fórmula 1 no Ibirapuera patrocinado pela Heineken teve um mote: Ayrton Senna.

Levaram alguns carros para exibição pública. Um deles a Toleman de 1984. Foi pilotado por Ayrton Senna.

Outro, a Lotus de 1985. Quem pilotava? Ayrton Senna.

A Heineken lançou uma ação nas redes sociais. Parece que está valendo, ainda. Cada postagem no Twitter, Instagram ou Facebook com a hashtag #ObrigadoSenna vai reverter cinco reais para o Instituto Ayrton Senna. Não foram divulgados números oficiais da campanha. Não sei se alguém vai informar o total arrecadado, muito menos sua destinação.

No autódromo, junto a uma tribuna patrocinada pela cervejaria — que também batiza oficialmente a corrida — uma placa diz: #ObrigadoSenna.

O helicóptero foi pintado de quê? Ayrton Senna

Kubica bateu agora há pouco. Fui ver da terraça, foi logo ali no Sol. O helicóptero sobrevoava o acidente para registrar as imagens. Pintado de amarelo com faixas verde e azul. Igual ao capacete de Ayrton Senna.

Ontem à noite, Hamilton foi ao programa do Bial. O tema dominante da entrevista? Ayrton Senna.

Bolsonaro prometeu um autódromo em Deodoro para levar a F-1 para o Rio. Sugeriu um nome: Ayrton Senna.

Amanhã um antigo carro de F-1 vai dar umas voltas em Interlagos antes da largada. É uma McLaren MP4/4 de 1988. O carro foi pilotado por Ayrton Senna. Quem vai guiar é Bruno. Sobrinho de Ayrton Senna. Que ontem ensaiou o evento pegando uma bandeirinha do Brasil de um fiscal para desfilar pela pista como fazia Ayrton Senna.

No pedágio, outro dia, notei na cabine uma caixinha sugerindo a doação do troco da tarifa em centavos para o Instituto Ayrton Senna.

Em maio a morte de Senna fez 25 anos. Todas as ações publicitárias elaboradas pela família do piloto neste ano usaram a expressão “comemorar os 25 anos do legado de Senna”, algo que não faz o menor sentido. Qual foi o legado dele no último quarto de século, depois de morto?

O instituto que leva seu nome não existia quando ele era vivo. Não foi um legado que deixou. As próprias atividades da entidade não representam exatamente um legado idealizado por Senna em vida. O IAS se define como uma organização que promove “a conexão entre a produção de conhecimentos científicos e a prática de educadores com objetivo de fundamentar invocações”, estimula “a elaboração de políticas educacionais inovadoras baseadas em evidências”, estabelece “parcerias com secretarias  de ensino para produzir conhecimentos, formar educadores e pilotar soluções educacionais escaláveis que podem inspirar práticas e políticas de educação” e conduz “ações de engajamento para a mobilização de diversos setores da sociedade interessados na causa da educação”.

Não sei bem o que essas coisas querem dizer, exatamente. Sei que o IAS nunca construiu uma escola, mandou confeccionar uniformes para estudantes carentes ou comprou uma caixa de giz para equipar uma sala de aula. Noto, pelos relatórios financeiros publicados no próprio site do instituto, que ele vem dando prejuízo há algum tempo. Foram R$ 9,3 milhões em 2015, R$ 6,2 milhões em 2019, R$ 11,2 milhões em 2017 e R$ 2,8 milhões em 2018.

Entre as atividades auto-propaladas pelo IAS está o que se chama genericamente de “gestão”. Tendo como fonte de renda doações de pessoas físicas e jurídicas e os royalties de todos os produtos que levam a marca Senna — tudo isso sujeito a um regime tributário baseado na isenção impostos, uma vez que a organização opera na área educacional –, percebe-se que a gestão financeira não tem sido grande coisa. Apenas nos últimos quatro anos, um prejuízo acumulado de cerca de R$ 30 milhões. Espero que não sirva de exemplo para os pobres diretores de colégios públicos espalhados pelo país.

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O nome Senna é onipresente quando se fala de F-1 no Brasil. Não se tem notícia de uma única transmissão da TV Globo ou de sua irmã SporTV em que o nome do piloto não tenha sido citado pelo menos uma vez — quase sempre muito mais do que uma vez. Todas as histórias que Galvão Bueno conta quando narra as corridas têm Senna como personagem principal. Os comentaristas também o usam como referência constantemente, desprezando o fato de que a F-1 de 25 anos atrás tem muito pouco em comum com o esporte praticado hoje, tecnologicamente falando. Além do mais, Senna nunca correu em 12 dos 21 traçados do calendário de 2019.

Parece que Senna é a única coisa boa que o Brasil produziu na F-1. O país faz parte do calendário da categoria desde 1973. A lista de pilotos que já largaram em pelo menos um GP tem 31 nomes. Seis deles ganharam corridas. Outros dois, além de Senna, foram campeões mundiais. Reduzir a história brasileira na F-1 a Senna é uma enorme injustiça, da qual, desconfio, ele não compactuaria.

Os espíritas dizem que as almas precisam descansar. Não entendo muito do assunto, mas já ouvi falar que existe um certo ritual para as coisas do Além, que convém deixar os mortos em paz, caso contrário eles ficam vagando por aí assombrando gente viva. Não sei se é verdade, já que nunca fui assombrado por alma penada nenhuma. Só sei que não deixam o coitado sossegar. É legado pra cá, obrigado pra lá, hashtag aqui, instituto ali, num moto perpétuo insuportável. Proponho até uma nova hashtag, nestes tempos pautados pelo símbolo do jogo da velha: #QueSacoSenna.

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