Blog do Flavio Gomes
F-1

INTERLEWIS (4): BERNIE E O HOTEL

SÃO PAULO (18°C, sereno) – Quando o GP do Brasil abria a temporada da Fórmula 1, o Hotel Transamérica, mais ou menos na região do autódromo, era um formigueiro nos dias que antecediam a corrida. E, também, um para-raios de malucos de todos os tipos. Ali, nos largos corredores e nas amplas salas de eventos […]

O Transamérica: antigo QG da F-1, palco de momentos memoráveis

SÃO PAULO (18°C, sereno) – Quando o GP do Brasil abria a temporada da Fórmula 1, o Hotel Transamérica, mais ou menos na região do autódromo, era um formigueiro nos dias que antecediam a corrida. E, também, um para-raios de malucos de todos os tipos.

Ali, nos largos corredores e nas amplas salas de eventos do clássico hotel eram distribuídas as credenciais permanentes de todos os jornalistas que cobriam a categoria e mais centenas de passes para a imprensa nacional. Costumávamos chamar o Transamérica de QG da F-1, e era mesmo. A maioria das equipes se hospedava lá, e era comum esbarrar em pilotos bebendo uma caipirinha nos restaurantes do térreo, tomando sol na piscina ou dando umas tacadas no pequeno campo de golfe anexo.

Além disso, na quinta-feira anterior à prova, acontecia a famosa “coletiva da Marlboro”. Durante anos a Philip Morris promoveu a entrevista com os pilotos da McLaren, equipe patrocinada pela marca de cigarros, Ayrton Senna incluído. Para a maior parte da mídia local, era a única chance de chegar perto do piloto e de fazer alguma pergunta a ele num enorme auditório lotado — poucos conseguiam credenciais para o GP, e portanto não tinham acesso ao autódromo; sua cobertura começava e terminava ali.

Assim, apareciam para a coletiva repórteres do país inteiro, grande parte deles representando pequenos jornais de bairro, veículos de cidades minúsculas, emissoras de rádio desconhecidas e revistas de todos os gêneros — eram comuns caras que trabalhavam, sei lá, em publicações sobre Florais de Bach, vestidos de noiva ou bricolagem se inscreverem para aquele evento específico.

Era divertido, às vezes constrangedor — se o cara dos Florais de Bach conseguisse, por alguma conjunção astral, se apoderar do microfone e fazer uma pergunta, dava até medo –, mas o fato é que o local fervilhava e o clima de Fórmula 1 se sentia em cada centímetro quadrado daquele enorme saguão de entrada.

Além dos jornalistas meio excêntricos, fãs completamente aparvalhados tomavam o hotel e alguns deles, sabe-se lá como, invadiam o auditório com seus bonés do Banco Nacional e macacões vermelhos de brim costurados em casa, e não conseguiam conter a histeria e excitação pela possibilidade de ver seu ídolo de perto, ou de simplesmente estar no mesmo ambiente que ele.

Mesmo depois da morte de Senna a cerimônia, que representava a abertura dos trabalhos da temporada, permaneceu. A Marlboro passou a patrocinar a Ferrari, e vieram Schumacher, depois Barrichello, depois Massa, e assim foi. Lembro de um biruta que ia todos os anos com uma credencial de um jornaleco qualquer de Guarulhos, ou de Taboão da Serra, algo assim, um sujeito estranhíssimo de cabelos longos e sebosos, olhar injetado, com uma bolsa de couro a tiracolo, calça de moletom e sapatos sociais. O figurino lumpesino era finalizado com uma camisa desgrenhada e desabotoada sobre camiseta encardida com a estampa do capacete de Senna.

Ele sempre chegava carregando uma pasta de cartolina amarfalhada cheia de papéis e recortes de jornais amarelados para levar a cabo a autoinfligida e sacrossanta missão de convencer Schumacher a financiar a construção de uma praça consagrada a Senna. Nela, a estúrdia figura vislumbrava uma enorme estátua e altares diante dos quais devotos como ele pudessem cultuá-lo e prestar homenagens àquele que o rapaz tinha na conta de uma divindade. Um dia, depois de tentar por anos a fio, logrou pegar o microfone para entoar sua pregação diante do alemão estupefato, mas conseguiu apenas balbuciar algumas palavras desconexas, ninguém entendeu nada e ficou por isso mesmo. Depois veio me procurar para pedir apoio à sua benta demanda, mas dei-lhe um chega-pra-lá imediato, porque tudo que não precisava na vida àquela altura era ser cúmplice de um tantã.

Hoje fui buscar minha credencial no Transamérica e não havia ninguém no saguão. Nem do lado de fora, nem nos corredores, nem nas antes frenéticas mesas dos bares e restaurantes, os auditórios estavam vazios e a maioria das salas, também. Com a construção de novos e modernos hotéis no Morumbi e na região da Berrini o QG da F-1 foi-se dissipando, e hoje o velho hotel recebe apenas os jornalistas mais antigos para a estada no fim de semana do GP e distribui as credenciais “race by race” para a imprensa nacional.

Senti uma certa melancolia ao me deparar com aquela imensidão desabitada, lembrei daqueles anos elétricos trabalhando em jornal e rádio, da ansiedade pela coletiva da Marlboro, pela retirada do meu passe que valia para toda a temporada, da permanente tensão para saber o que a concorrência estava fazendo, como sairiam os jornais naquele dia e no outro e no outro, e quando entrei no imponente banheiro ao lado da tabacaria que hoje está fechada, junto a uma das entradas que levam à recepção, olhei-me no espelho e vi aquele menino de trinta anos atrás que não parava um segundo, corria o tempo todo atrás de alguma coisa, vivia a profissão com uma energia que, hoje, me parece sobrenatural.

Estava dando uma volta pelo paddock agora à tarde junto com o Fernando Silva, do Grande Prêmio, e cruzamos com Bernie Ecclestone no caminho. Ele me pareceu menor e um pouco mais magro e frágil com seus 89 anos de idade. Nossos olhares se cruzaram e ele estendeu a mão para me cumprimentar. Trocamos um aperto de mão como se fôssemos velhos amigos, o que está longe de corresponder à realidade. Bernie sempre foi o todo-poderoso do pedaço, e se é verdade que o entrevistei várias vezes, não é menos verdade que nossas conversas foram sempre breves e respeitaram a hierarquia tácita do ambiente ao qual pertencíamos: ele era o dono e eu o cara que às vezes precisava perguntar algo para o dono.

Mas este breve encontro no paddock hoje, que não deve ter durado mais do que dez segundos, me comoveu e emocionou. Bernie raramente parava para falar com repórteres do Terceiro Mundo, na maioria das vezes estava apressado para resolver suas coisas, vivia cercado de assessores e respondia andando com frases curtas porque tinha mais o que fazer. Hoje, parou ao me ver e o aperto de mão foi mais longo que o habitual — pelo menos tive essa impressão. Sorri ao vê-lo e lhe disse uma frase qualquer em inglês — good too see you, you look brave. Achei que ele sorriu de volta, e antes de retomar o passo virou-se para mim e se despediu cordialmente, e acho que nós dois ali percebemos que nosso tempo dourado neste mundo aqui já passou, o que não tem nenhuma importância, porque fizemos o que tínhamos de fazer, ele com seu campeonato, seus pilotos, suas equipes, seus contratos, exercendo o poder ao seu modo, eu com meu microfone, gravador, caneta, laptop e bloco de anotações, minhas palavras ditas ou escritas, exercendo o poder que achava que tinha ao meu modo, também.

Bernie nem sabe meu nome, provavelmente, mas durante anos éramos rostos que se encontravam 15, 18, 20 vezes por temporada cada vez num país diferente, cada um exercendo seu papel neste enorme teatro de operações, glórias, fortunas e fracassos.

Estes dois rostos se reconheceram hoje mais uma vez e se deram conta de que tais encontros nunca mais serão tão frequentes quanto eram, e estão chegando ao fim.

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