Blog do Flavio Gomes
F-1

N’ARRABBIATA (3)

RIO (eu tinha um da Sharp) – Vocês jovens, sabem o que é um 3 em 1? Pois bem, vou explicar. Houve um tempo, neste planeta, em que não se ouviam músicas no celular. Nem havia celular. Para ouvir músicas, você precisava de uma dessas, vá lá, mídias: rádio, toca-fitas ou vitrola, também conhecida como […]

RIO (eu tinha um da Sharp) – Vocês jovens, sabem o que é um 3 em 1?

Pois bem, vou explicar.

Houve um tempo, neste planeta, em que não se ouviam músicas no celular. Nem havia celular. Para ouvir músicas, você precisava de uma dessas, vá lá, mídias: rádio, toca-fitas ou vitrola, também conhecida como toca-discos. Aliás, mídias é o cacete. Você precisava de um desses aparelhos, os três supracitados. Que, por sinal, eram conhecidos como “aparelhos de som”. Ou, simplesmente, “som”.

Muito bem. Os nomes eram ótimos, inclusive. Nada de “media”, “pendrive”, “bluetooth” ou “smartphone”. Muito menos entrada USB. A propósito, o que quer dizer USB? Rádio é rádio desde sempre, pelo menos desde que nos conhecemos por gente. E não, não vem do latim radius, que é o osso do antebraço, e sim do latim tardio irradiatio, que no século 20, transliterado pelo francês, virou radiophonie, e aí essa palavra era longa demais para designar o aparelho que captava as ondas radiofônicas, e por isso ficou sendo rádio, mesmo, que é mais curtinho e fácil de dizer. Quanto aos demais aparelhos, seus nomes eram autoexplicativos. O toca-fitas tocava fitas. O toca-discos tocava discos. As coisas eram mais simples de compreender.

Antes do 3 em 1, que abriu este texto em sua primeira linha, surgiu a rádio-vitrola, que já era um espetáculo. Vitrola também tocava discos e era uma invenção da Victor nos EUA, um gramofone que se chamava Victrola e ficou tão popular que acabou tendo seu nome aportuguesado para vitrola, que nem gilete.

Pois bem. A rádio-vitrola, como vocês devem ter deduzido, era um rádio conjugado com um toca-discos, e quando a gente imaginava que já não tinham mais o que inventar, veio o 3 em 1.

Ah, o 3 em 1… Juntaram no mesmo aparelho a vitrola (ou toca-discos, escolha o que mais lhe aprouver), o toca-fitas e o rádio. Como podiam ser tão engenhosos? Melhor ainda: o que você tocava no rádio ou no toca-discos podia ser gravado no toca-fitas! Era só apertar, ao mesmo tempo, o “play” e o “REC”. Que maravilha!

O 3 em 1 da Sharp: bons tempos em que as coisas eram chamadas pelos seus nomes

Com o tempo, os 3 em 1 foram caindo em desuso porque deram de inventar uns amplificadores que podiam ser conectados a cada um dos aparelhos específicos por cabos, e diziam que o som era melhor e mais potente. Eles também eram acoplados a equalizadores e tinham entradas atrás para um monte de caixas de som. A partir daí deixei de entender dessas coisas.

Mas eu citei o 3 em 1 porque — sim, este continua sendo um blog mormente dedicado às coisas do automobilismo — hoje fomos brindados com uma corrida 3 em 1 em Mugello. Foram três em uma só. Três largadas, três histórias diferentes, só faltaram os três vencedores, porque aí seria querer demais. O vencedor foi o de sempre, Lewis Hamilton. E se você não viu, entenda: foram três corridas em uma só porque a prova teve de ser interrompida duas vezes por bandeiras vermelhas, oferecendo ao distinto público as tais três largadas. Agradeçamos ao regulamento, que acabou com aquela coisa chata de reiniciar corridas atrás do safety-car.

Obrigado, regulamento.

Verstappen atola na primeira volta: safety-car na pista deflagrando sequência de doideiras de Mugello

Tudo começou graças a esse incidente aí em cima, na primeira volta do GP da Toscana. Com problemas em seu carro, Max Verstappen foi ficando para trás na largada e na curva 2 vários pilotos se enroscaram no meio do pelotão, a saber: Gasly ensanduichado por Grosjean e Raikkonen, Raikkonen batendo na traseira de Verstappen, Verstappen jogado à brita, Sainz rodando, Vettel desviando e perdendo o bico na McLaren do espanhol, Gasly e Verstappen abandonaram e o safety-car teve de ser convocado para arrumar aquela zona toda.

Quem liderava a corrida, depois de uma boa largada — e u’a má de Hamilton –, era Bottas, com Leclerc, também muito bem na partida, em terceiro. O Mercedão vermelho-ferrari (não sei de nomes de cores usam maiúsculas, vai assim mesmo) ficou à frente do pelotão até o fim da volta 7, quando de repente apagou as luzes e saiu da frente de Bottas na última curva, num comportamento pouco usual mas, segundo a FIA, dentro do regulamento.

Bottas atrás do safety-car vermelho: na relargada, confusão que parou a prova pela primeira vez

Tudo na vida é uma sequência de eventos, não? Bottas poderia ter acelerado assim que apontou na reta e tudo seguiria na santa paz toscana e não estaríamos aqui falando de aparelhos de som 3 em 1. Mas ele não o fez. Deixou para fazê-lo lá na frente, na linha de chegada, de modos que Hamilton não pudesse aproveitar o vácuo na longa reta para retomar a liderança perdida na largada.

Só que quem estava lá no fundão da sala não se deu conta dessa decisão de Bottas. Alguns, quando viram a bandeira verde num painel eletrônico, enfiaram o pé no acelerador. Outros, que estavam à frente, enfiaram o pé no freio porque perceberam que Bottas não tinha enfiado o pé no acelerador, ainda. Estão acompanhando?

Aí foi uma cagada geral. Sainz, Magnussen, Giovinazzi e Latifi, cada um a seu modo, destruíram seus carros uns nos outros. A reta principal ficou cheia de destroços. A corrida teve de ser paralisada. Eram, pelo horário de Roma, 15h29 — 10h29 em Brasília. Bandeira vermelha.

Bate-bate no fundão: uns aceleraram, outros frearam, e no fim quatro abandonaram

Poderia ter sido pior. Teve gente que bateu acelerando. Outros quase capotando. Felizmente ninguém se machucou. Grosjean, do alto de sua afiadíssima e duvidosa capacidade de julgamento, gritou pelo rádio: “Que coisa mais louca! Querem nos matar a todos?”.

Depois de 26 minutos interrupção, lá estavam 13 carros alinhados para a segunda largada. Seis haviam abandonado por causa dos acidentes e um, Ocon, desistira com problemas nos freios. Nos boxes, todo mundo trocou os pneus, mas só a dupla da Mercedes e dois que estavam mais para trás, Russell e Raikkonen, optaram por compostos médios. Os demais repetiram os macios.

Na nova largada, nona das 59 voltas previstas para o GP toscano, Hamilton deu o troco em Bottas. Subiu a reta colado no companheiro e na San Donato, a curva 1, passou por fora para assumir a primeira posição. Os dois foram embora e deixaram para os coadjuvantes a missão de entreter a audiência. Leclerc, em terceiro, era presa fácil para todos. Entre as voltas 18 e 21, foi ultrapassado, pela ordem, por Stroll, Ricciardo, Albon e Pérez. A Ferrari avisou pelo rádio ao monegasco: “Vamos ao plano C!”. Charlinho pensou com o zíper de seu macacão: “C de quê? Carroça? Cadeira elétrica? Caraca, como podemos ser tão lentos?”. Foi para os boxes na volta 22 e colocou pneus duros.

Voltou em último. Levou cinco voltas para chegar em Grosjean e fazer sua primeira ultrapassagem na corrida, sem contar as posições que ganhara na largada. Era um duelo de Uno Mille contra Palio 1.0 com ar-condicionado. Os dois com os lamentáveis motores Ferrari, que no passado eram considerados fortes e charmosos.

Vettel e Leclerc: apesar da lerdeza, dupla da Ferrari pontua no milésimo GP da equipe

A prova então seguiu em seu curso normal e sem maiores sobressaltos até a volta 28, quando a turma começou a ir para os boxes para trocar pneus de novo. Bottas, então, usou de toda sua indignação para exigir, pelo rádio: “Na hora que a gente parar eu quero o oposto de Lewis!”. Não vi, mas me contaram. Naquela hora os caras da Mercedes no pitwall se entreolharam, desligaram os rádios e começaram a gargalhar atrás de suas máscaras.

Cerca de 1s5 atrás de Hamilton quando fez sua exigência de forma categórica, duas voltas depois Bottas estava 7s atrás. Com os pneus em frangalhos. Aí parou e colocaram em seu carro os compostos duros. Na volta seguinte, Lewis parou. Colocou os mesmos. Não vi, mas me contaram. Naquela hora alguém entrou no rádio do Bottas e perguntou se ele queria parar de novo para fazer o oposto de Lewis. Não vi, mas me contaram. Valtteri respondeu “mene vittu itse”, em finlandês.

Ricciardo: por pouco não conseguiu o primeiro pódio do ano para a Renault

Quem fazia uma corridinha bem honesta naquela altura era Ricciardo, em terceiro com o Twingo amarelo da Renault. A briga pelo último lugar no pódio era bem interessante, com Stroll e Albon perseguindo o sorridente australiano. Então, na volta 44, um susto: Lance foi direto na segunda perna da Arrabbiata e se estampou na barreira de pneus.

Não se sabe ainda o que aconteceu. De início, a Racing Martin falou num pneu furado, mas pode ser que tenha quebrado a suspensão traseira, também. Só sei que foi uma panca de respeito, o safety-car foi chamado mais uma vez e a corrida teve de ser interrompida novamente com bandeira vermelha.

O carro de Stroll quase se partiu ao meio. Perda total. E como começou a pegar fogo, os comissários se encarregaram de estragar o que sobrou com dezenas de extintores de incêndio. O pastelão foi registrado pela TV, como se vê abaixo. Stroll ficou meio grogue, mas depois voltou aos boxes na garupa de uma lambreta.

O relógio do Vaticano marcava 16h50 do dia 13 de setembro do ano da graça de 2020 quando todos foram para os boxes de novo se preparar para a terceira largada de nossa corrida 3 em 1. Eram 12, agora, os sobreviventes. Pneus macios para todo mundo, já que faltavam apenas 13 voltas para o final da prova.

Na torre, a direção aproveitou para analisar a entrada de Raikkonen nos boxes, cortando a linha tricolor para aproveitar a entrada do safety-car segundos antes. Pouco depois seria avisado que teria 5s acrescidos ao seu tempo total de prova pela infração. Ficou bem pistola, Kimi.

Raikkonen corta a linha dos boxes: punição quase tira os primeiros pontos do finlandês no ano

Foram 22 minutos até a nova largada, agora com Hamilton, Bottas, Ricciardo, Albon, Pérez e Norris nas três primeiras filas. Valtteri pensou: “Vou dar o troco, pegar o vácuo, passar o negão na primeira curva e ganhar essa porra!”.

Esqueceu de combinar com os russos (se não entenderam, é uma referência a clássico episódio envolvendo Garrincha e Vicente Feola na Copa de 1958, leiam aqui). Porque antes mesmo de terminar a frase “ganhar essa porra” foi ultrapassado por Ricciardo, permitindo a Lewis escapar na frente e assumir o controle da parte final da prova.

Bottas acabaria recuperando o segundo lugar na volta seguinte, mas aí já era tarde. Quem melhor aproveitou nossa terceira e curta corrida no domingo 3 em 1 foi Albon, que na volta 51 passou Ricciardo e conseguiu o primeiro pódio de sua carreira. Ricciardo, Pérez, Norris, Kvyat, Leclerc, Raikkonen (já com a punição) e Vettel fecharam a zona de pontos — pelo menos os dois ferraristas pontuaram na milésima corrida da equipe. Russell e Grosjean foram os dois últimos a ver a quadriculada. Por pouco a Williams não marcou um pontinho.

Albon olha para a bandeira tailandesa no pódio: primeiro troféu do piloto na F-1

Hamilton chegou à sua sexta vitória na temporada e 90ª na carreira, ficando a apenas uma de igualar o recorde de Michael Schumacher, maior vitorioso da categoria. A marca deve cair logo, e será um momento histórico da F-1.

Mas Lewis não faz história apenas ganhando corridas. Assim que saiu do carro, vestiu uma camiseta preta com a seguinte inscrição: “Arrest the cops who killed Breonna Taylor”, referência a uma agente de saúde preta assassinada por policiais em março deste ano em Louisville, nos EUA — crime impune até hoje.

E foi com essa camiseta que subiu ao pódio, ocultando marcas de patrocinadores e tudo mais. Algo, até onde me lembro, inédito. E de enorme relevância. Espero que continue com essas atitudes. Inclusive, se ele quiser nomes de pessoas pretas mortas pela polícia no Brasil cujos assassinos nunca pagaram por seus crimes podemos lhe fornecer uma lista telefônica. Só com as vítimas deste ano.

Na camiseta de Hamilton, o pedido por justiça: inglês segue militando por causas importantíssimas

“Foram três corridas numa só, estou esgotado”, confessou Lewis ao final das 59 voltas e três largadas debaixo de um sol implacável e temperatura batendo nos 30°C. E rasgou elogios à pista, que descreveu como “fenomenal”. “Foi muito duro manter Valtter atrás de mim, ele foi rápido o fim de semana todo, estou muito, muito feliz.”

Com a vitória, o inglês pulou para 190 pontos no Mundial, contra 135 de Bottas, que ampliou sua diferença para Verstappen. O holandês, que considerou seus problemas de embreagem e perda de potência na largada “inaceitáveis”, segue com 110. Para os registros, Max disse que está “tudo uma merda” na Red Bull desde Monza. Quem pontuou pela primeira vez no ano foi Raikkonen, nono colocado.

Entre os construtores, a Mercedes está tranquila na ponta, a Red Bull vem um ano depois em segundo e a McLaren segue firme em terceiro com 106, seguida por Force Martin (92, que seriam 107 não fossem os 15 perdidos pelo uso dos dutos de freio copiados da Mercedes), Renault (83) e Ferrari (66). O resultado da prova está aí embaixo, com a lista de pit stops e tipos de pneus usados por cada um na corrida maluca de Mugello.

Para encerrar, uma palavrinha sobre a transmissão da TV Globo, algo em que todo mundo fica de olho quando tem novidade na área. No caso, hoje, a narração de Everaldo Marques, 42, estreando na TV aberta depois de ter sido contratado no começo do ano para atuar principalmente no braço esportivo da emissora, o SporTV.

Everaldo começou comigo em 1997, quando tinha 18 anos, me ajudando a produzir o Fórmula Jovem Pan — programa semanal sobre automobilismo que eu fazia aos sábados na antiga emissora da avenida Paulista. Quando nasceu o Grande Prêmio com esse nome, em 2000, o contratei para ser um dos redatores ao lado de Tales Torraga. Éramos os três fazendo o site. Em setembro de 2001, saí da Pan, onde também cobria F-1. A rádio o colocou em meu lugar e foi ótimo, porque ele continuava fazendo seu trabalho no site e começava a viajar para as corridas.

Marques deixou o Grande Prêmio três anos depois, foi para a ESPN, lá ficou por 15 anos e chegamos a fazer F-1 juntos na rádio Estadão-ESPN em 2011 e 2012. Ele narrando, eu comentando. Há uma passagem bacana, e a gente se emociona sempre que relembra, quando fiz minha última corrida pela Pan, o GP dos EUA de 2001. Everaldo, salvo engano, fazia sua primeira prova pela rádio como narrador, dos estúdios de São Paulo. Eu estava em Indianápolis. Sempre que terminava uma transmissão, eu tinha um bordão meio chinfrim que era assim: “Um abraço aos ouvintes da Jovem Pan e a você (o narrador), e nosso próximo encontro fica marcado para o dia tal, no GP tal”. Nesse dia, quando Evê se despediu de mim no ar, eu falei: “Everaldo, eu costumo encerrar nossas transmissões de GPs mandando um abraço para o ouvinte e marcando nosso próximo encontro para a próxima corrida. Hoje, deixo apenas um abraço”. Eu e ele choramos no ar, mas como rádio não tinha imagem na época, ninguém viu.

Marques na Globo: transmissão sóbria e descontraída com equilíbrio e conhecimento de causa

A empatia que Everaldo conseguiu com o público em seus anos de ESPN foi enorme, por sua capacidade de narrar qualquer esporte e criar bordões divertidos nas transmissões, principalmente, da NFL e da NBA. É um dos caras mais queridos das redes sociais, entre outras coisas porque a turma que segue esportes americanos é muito grata a quem transmite os jogos com conhecimento de causa e sem falar bobagens. Foi a marca de sua narração hoje, o que agradou em cheio o também exigente público da F-1: sóbria e descontraída no tom exato, sem ser chata ou metida a engraçadinha, dando o devido espaço aos comentaristas e sem querer ser a estrela da companhia. Natural, em resumo, como sempre foi. Acho que é uma de suas maiores virtudes, a naturalidade, além da bela voz, do domínio do tema, e do talento nato que tem para a coisa.

Pena que a Globo deu um pé na F-1. Não tivesse feito isso, creio que o novo titular da emissora para as corridas teria se firmado hoje. Aliás, que simpatia a mensagem do Galvão Bueno no início da transmissão! Marques deve fazer mais algumas provas até o fim do ano, e agora só resta torcer para que quem comprar os direitos da F-1 para a TV brasileira no ano que vem faça boas escolhas na hora de montar sua equipe.