Blog do Flavio Gomes
F-1

N’URSS (3)

RIO (voltei) – Nastola, Finlândia, 26 de setembro de 2061. Diante do prédio onde há anos se reúne o Conselho Municipal da pequena cidade de pouco mais de 15 mil habitantes no sul do país, uns 120 km distante da capital Helsinque, um senhor de olhos muito azuis e cabelos louros bem curtos caminha lentamente […]

RIO (voltei) – Nastola, Finlândia, 26 de setembro de 2061. Diante do prédio onde há anos se reúne o Conselho Municipal da pequena cidade de pouco mais de 15 mil habitantes no sul do país, uns 120 km distante da capital Helsinque, um senhor de olhos muito azuis e cabelos louros bem curtos caminha lentamente de mãos dadas com um garotinho de não mais que 8 anos de idade. Ele acena para as poucas pessoas que passam por ali, o que dá a entender que é conhecido no povoado. É começo de outono, mas as temperaturas ainda são bem aceitáveis para esta época do ano: 14°C, céu azul, e um sol que permite ao menino que passeia com aquele que parece seu avô dispensar as luvas e usar apenas uma jaqueta de nylon cinza e um gorro de lã azul escuro.

O vovô compra uma saquinho de pipoca doce no carrinho de pipoca automático — há décadas os vendedores de pipoca foram substituídos por esses carrinhos automáticos que fazem a leitura da íris do usuário e debitam o valor direto de sua conta — e leva o neto até um dos bancos desocupados da praça. Senta aqui do meu lado, Juha, vou te contar uma história.

Compreendendo que o preço que teria de pagar por aquelas pipocas doces que tanto amava seria ouvir de novo aquela história, que só no verão o avô já havia contado quatro vezes (e renderam, pela ordem: um sorvete de pistache, um boné com o número 77 bordado nas laterais, um objeto para colocar no pulso com números e ponteiros que ele não sabia para que servia e uma pizza entregue pelo drone vermelho que falava “ciao”, e que ele adorava por causa do sotaque esquisito), o pequeno Juha se acomodou no banco, abriu o saquinho e ensaiou mentalmente as reações que teria de demonstrar a cada frase daquele relato mais do que conhecido. Seu avô gostava de suas expressões de espanto, medo, incredulidade e, na hora do gran finale, das gargalhadas que arrancavam até lágrimas de seus olhos. E Juha gostava de ver o avô feliz, e por isso se esforçava para que suas reações parecessem autênticas — especialmente as gargalhadas finais e os olhos vermelhos de tanto rir, que no fim eram autênticos mesmo, Juha achava aquilo tudo engraçado de verdade.

Foi em 2020, Juha, começou o avô. No sábado, todo mundo caçoou de mim. (Juha faz cara de indignado, como podem caçoar de você, vovô?) Só porque fiquei em terceiro, ninguém achava que o vovô poderia ganhar aquela corrida. (Ele às vezes se referia a ele mesmo na terceira pessoa, “o vovô”, e Juha também gostava daquele jeito de contar histórias, embora não soubesse exatamente para que serviam as tais corridas das quais o avô falava; sabia apenas que era uma espécie de competição disputada por uns carros esquisitos para uma pessoa só que tinham quatro rodas e vagamente lembravam o furgão elétrico da prefeitura que passava todos os dias em sua casa pontualmente às 10 da manhã para levá-lo à escola junto com seus coleguinhas do bairro, com a diferença de que o furgão não tinha ninguém dirigindo, como aquelas coisas que seu avô jurava que dirigia sozinho — Juha achava que era mentira, mas não dizia isso ao avô –, e não fazia barulho algum.)

Às vezes Juha interrompia a história para dar algum ritmo à narrativa, quando o avô se perdia em algumas digressões incompreensíves, falando de ângulos de asa, carga de bateria, mapa de motor, borracha mole e borracha dura (isso ele fazia ideia do que poderia ser, afinal tinha uma borracha mole para usar quando apagava coisas escritas a lápis em seus cadernos, e outra dura para apagar caneta, mas não entendia direito a relação que o avô fazia entre borracha dura, borracha mole e quanto corriam aquelas coisas que dirigia; quando falava de borracha média, então, Juha se perdia completamente no raciocínio, mas deixava rolar senão a história não terminaria nunca), e gostava bastante quando o avô contava como eram as reuniões no fim do dia com as pessoas que trabalhavam com ele, porque aí desembestava a falar palavrões, e Juha achava muito engraçado o avô falando coisas que, em casa, resultariam num ralho danado da mãe. Juha morria de rir principalmente quando ele dizia “engenheiro filho da puta”, “viado do Toto”, “negão desgraçado de rápido” e “mecânicos de merda”.

Juha já sabia o fim daquela história: o avô ganhava a corrida, xingava o engenheiro (ele adorava quando o avô imitava o engenheiro dizendo parabéns pelo rádio, e então reproduzia a resposta: vai se foder, você e todo mundo!), chutava a bunda do tal Toto, que Juha nunca entendeu exatamente quem era, e gritava “chupa Lewis!” — ao que parece, um amigo que corria com aqueles carros que precisavam de gente para dirigir.

Se a foto for ampliada um milhão de vezes, será que veremos algo estranho na viseira de Bottas?

Mas a parte que Juha mais gostava, e para ouvi-la ele reservava a parte mais gostosa do saquinho de pipoca doce, que era o fundinho com calda de framboesa, era a da abelha gigante. Como foi no começo da corrida, vô, por que você não passou logo o seu amigo? O avô fazia uma pausa, limpava os óculos nas fraldas de sua camisa de flanela vermelha e preta, parecida com a de um sujeito que vinha todo começo de novembro trazer o estoque de lenha sintética para o inverno, e dizia, separando bem as sílabas no começo da frase e olhando nos olhos de Juha: por cau-sa de u-ma a-be-lha… GIGANTE!, e ele falava “gigante” bem alto, de um jeito muito assustador, mas que divertia Juha até não poder mais.

As versões da história da abelha gigante variavam dependendo do presente que Juha ganhava. Às vezes o avô tinha pouco tempo para contar, como no dia do sorvete de pistache, e aí a abelha apenas se espatifou no seu capacete, espalhando um veneno gosmento amarelado pela viseira, e ele teve de correr a corrida toda sem enxergar, e mesmo assim ganhou. Quando ganhou o boné eles estavam numa praia de água geladíssima, então ficaram na areia um tempão e o avô contou a Juha que a abelha gigante pousou no seu colo e tinha um ferrão de 50 centímetros de comprimento, e que ele teve de socá-la no nariz com uma mão, enquanto com a outra segurava o volante (Juha não sabia o que era volante, mas nem perguntava para não esticar demais a história), a mesma abelha gigante, que mudava de tamanho a cada versão, tentou arrancá-lo do carro no dia em que o avô lhe deu o objeto de prender no pulso, mas ele se livrou dela enforcando-a com o cinto de segurança, e a melhor variação do caso foi contada no dia do drone que entregava pizza, porque ela demorou um pouco para chegar e o avô teve tempo de descrever como foi que convenceu a abelha gigante a agarrar seu carro com suas pernas gigantes, para depois bater suas asas mais gigantes ainda e voar por cima dos outros carros, e colocá-lo na frente de todo mundo, e foi assim que ele ganhou aquela corrida. Nessa hora, e Juha se divertia muito com isso porque era sempre igual, vovó vinha lá da cozinha com o pano de prato nas mãos enxugando uma xícara ou um bule e dizia, com ar de censura: Valtteri, para de contar essas coisas para o menino! Ele vai ficar assustado! E então o avô piscava cúmplice para Juha, que gargalhava até saírem lágrimas de seus olhos, e o vovô ficava feliz, e os dias, assim, se sucediam naquela pequena vila finlandesa.

Bottas: nona vitória na carreira, segunda no ano, primeira com abelha gigante

Valtteri Bottas ganhou o GP da Rússia de hoje, na verdade, não por causa, mas apesar da abelha gigante. Teve isso, sim. Foi ele quem contou, e quem sou eu para duvidar? E foi mesmo na largada, a única parte mais ou menos fiel aos fatos nas histórias que contará a Juha daqui a alguns anos. Porque Valtteri largou bem, chegou a colocar o carro na frente de Hamilton depois de passar Verstappen — estava em terceiro no grid –, e aí a abelha gigante bateu na sua viseira. “Massive bee”, foi como ele descreveu o apavorante inseto depois da corrida.

O fato é que, ao ser nocauteado pela abelha gigante, Bottas garante que perdeu o ponto de freada, e só por isso Hamilton recuperou a ponta, para caminhar rumo a uma vitória fácil em Sóchi.

Só que não, porque Lewis foi punido e acabou em terceiro. Verstappen foi o segundo.

Numa prova chata pra cacete, que nem mesmo uma abelha gigante seria capaz de salvar, o que definiu o resultado foi mesmo a punição a Hamilton. Quando se dirigia ao grid, o inglês fez dois treinos de largada, parando o carro e realizando todo o procedimento de início de corrida para testar o equipamento. É algo corriqueiro ao longo de todo um fim de semana na F-1 — o treino de largada. Mas tem lá suas regras, que mudam de pista para pista.

Pelo que entendi, Hamilton fez seus treininhos onde não podia, em pontos do circuito onde era proibido parar o carro, embora seu engenheiro o tenha orientado o tempo todo pelo rádio, dizendo que estava OK, sem problemas, aí pode, vai na boa. Entrou em modo full pistola quando, na sexta volta, foi informado de que teria de pagar 10 segundos nos boxes quando fizesse sua parada para troca de pneus. Cinco segundos para cada infração.

Hamilton ficou puto: se tivesse o VAR, pediria revisão do lance

Teve mais. Levou dois pontos na carteira, chegando a 10 (só podem 12 em um ano), e correu o risco de ser suspenso em caso de novas infrações. Depois, devolveram os pontos da carteira e multaram a equipe em 25 mil euros, já que ficou claro, pelo rádio, que foi o time que o orientou a fazer o treino de largada.

Mas o modo full pistola permaneceu depois da corrida. Porque Lewis, quando pagou os 10 segundos nos boxes, na volta 17, caiu de primeiro para 11º, ficando a 35s9 do novo líder Bottas, a quem só veria de novo no pódio — ele se recuperou, passou um aqui e outro ali, os demais foram parando para trocar pneus e já na volta 32 estava em terceiro, onde terminaria. “Eles fazem regras para me deter, e não é de hoje”, desabafou, com certo exagero no tom de voz e esquecendo onde tinha deixado as sandálias da humildade que vinha calçando nos últimos tempos.

Assim, não foi neste domingo ensolarado e quente de Sóchi, 29°C, que Hamilton igualou a marca de 91 vitórias de Schumacher, o maior vencedor da história. Ainda bem. O palco não seria apropriado — o circuito russo é horrível, sem graça, sem alma. Lewis, mesmo largando com pneus macios contra os médios de seus dois mais diretos perseguidores, Bottas e Verstappen, teria a chance de vencer em condições normais. Mas foi punido e parou cedo, o que também o deixou full pistola com seu engenheiro. Até ali, de qualquer forma, não havia construído uma diferença muito grande para Bottas, algo que pudesse anular o tempão que perderia pagando a punição nos boxes. Isso porque as cinco primeiras voltas da corrida foram realizadas atrás do safety-car por conta de dois acidentes logo nos primeiros metros: Sainz Jr., que arrebentou sozinho sua McLaren no muro, e Stroll, que rodou e bateu depois de ser tocado por Leclerc.

O carro de Sainz: bateu no muro sozinho, num acidente patético

Resumindo, a punição acabou com qualquer chance de Hamilton, e especular o que teria acontecido se adiasse seu pit stop não faz sentido a essa altura. Bottas parou na volta 27, não perdeu mais a liderança e em nenhum momento foi ameaçado por Verstappen, que terminou quase 8s atrás dele, muito menos por Hamilton, que só viu a quadriculada 22s7 depois do finlandês. Pode-se discutir, quando muito, se a caneta dos comissários pesou demais sobre Lewis. Ele e Toto Wolff acharam que sim. Mas nada apaga o fato de que a Mercedes errou na orientação ao piloto.

E, também, não faz muita diferença. Hamilton será campeão da mesma forma.

Aí em cima, a classificação final do GP da Rússia. Como se nota, tirando a diferença entre Ocon e Kvyat no final, inferior a um segundo, todos os demais correram sozinhos, sem ameaçar ninguém e sem ser ameaçados. O que não quer dizer que não houve uma disputa ou outra, um destaque ou outro. Magnussen, por exemplo, ganhou nove posições na largada — de 18º para nono. Grosjean e Latifi, seis. Giovinazzi, cinco. Mas o que aconteceu com eles? Nada, foram despencando com o andar da carruagem e terminaram onde sempre terminam, atrás.

Pérez, sim, conseguiu um bom quarto lugar — mas fez uma corrida solitária. Valeu pelos pontos e por ser o “primeiro dos outros”, considerando “outros” todos menos a dupla da Mercedes e Verstappen, que estão em um nível diferente neste campeonato. Ricciardo também foi bem, quinto, tendo recebido 5s em seu tempo final de prova por ter feito uma ultrapassagem por fora dos limites da pista — quando seu engenheiro o avisou, ele disse que ia “guiar mais rápido” para abrir mais de 5s para o sexto colocado, e foi o que fez.

Leclerc: largou bem, terminou em sexto e fez milagre com um carro ruim

Leclerc tirou leite de pedra da Ferrari e terminou em sexto, Ocon foi burocrático e acabou atrás do monegasco, e Kvyat, Gasly e Albon fecharam a zona de pontos sem fazer nada de mais, nem de menos. Engraçado foi ver Grosjean arrebentar placas de isopor na área de escape, mas ter de contar com as patetadas de Grosjean para salvar um GP é um pouco demais. Só o pessoal da Netflix curte.

Lewis tem 205 pontos no campeonato, contra 161 de Bottas, que se distanciou bem de Verstappen — 128 agora. A briga legal está daí para trás, com Norris (que foi mal hoje e segue com 65), Albon (64), Ricciardo (63), Leclerc (57), Stroll (57) e Pérez (56). Da mesma forma, entre os construtores, apenas a disputa pelo terceiro lugar oferece alguma emoção, com McLaren (106), Force Point (104) e Renault (99) numa briga de foice no escuro. A Ferrari, com 74, ficou para trás e ocupa uma medíocre sexta posição. Vettel, antes que perguntem, terminou hoje em 13º. Atrás de uma Alfa Romeo e de uma Haas.

Não sei se informaram o público pagante em Sóchi, mas notei gente à beça nas arquibancadas, sem distanciamento social nem porra nenhuma. Os russos cagaram para a pandemia. Um absurdo, que a F-1 — que vive dias muito estranhos em algumas decisões fora do âmbito esportivo — nem mencionou. Se houver um surto de coronavírus na cidade, de qualquer forma, creio que não saberemos. Porque Putin também caga para todo mundo. Já disse, nos tempos de URSS não seria essa zona. Mas dane-se, cada um se atira de peito na lança como quiser.

Sei que vocês devem estar se perguntando sobre Gola Profonda, meu informante em Maranello. Lamento, mas hoje não teremos muita coisa, não. Quando terminou a corrida, vi uma mensagem que dizia apenas: “Tenho de sair correndo, só pode comprar o que eu quero no mercado até as 18h”. Lembrei dos quase dois meses que passei em Moscou, na Copa. E é verdade. Depois das 18h tem coisa que é proibido vender no mercado. Ou seria depois das 22h?

Os russos são estranhos.