Blog do Flavio Gomes
F-1

N’ISTAMBUL PARK (3)

RIO (perfeito) – Lewis Hamilton se tornou neste domingo, 15 de novembro de 2020, o maior piloto de todos os tempos. Nos números, igualou os sete títulos mundiais de Michael Schumacher. Também recordista de vitórias, poles, pódios e pontos, já havia superado o alemão nas estatísticas. Mas nem só delas se faz a trajetória de […]

RIO (perfeito) – Lewis Hamilton se tornou neste domingo, 15 de novembro de 2020, o maior piloto de todos os tempos. Nos números, igualou os sete títulos mundiais de Michael Schumacher. Também recordista de vitórias, poles, pódios e pontos, já havia superado o alemão nas estatísticas. Mas nem só delas se faz a trajetória de um atleta. O inglês da Mercedes se coloca, a cada dia que passa, como um dos esportistas mais importantes da história. Ao usar uma plataforma global como a Fórmula 1 para se fazer ouvir, ultrapassa o alcance da modalidade como simples competição e entretenimento. Torna-se um militante de causas essenciais para a humanidade como a luta contra o racismo, a defesa da sustentabilidade e do meio-ambiente, o combate às injustiças sociais e, agora, a cruzada pelos direitos humanos.

Hamilton ganhou o GP da Turquia de forma espetacular, mas isso fica para depois. No pódio, revelou que sua próxima batalha pode ser das mais incômodas para países que recebem etapas da categoria em todos os continentes, menos a África. “Temos de encarar os problemas dos direitos humanos em vários países onde corremos. Não podemos mais ignorar a necessidade de se fazer algo nesses países, engajá-los e empoderá-los para que as coisas possam mudar não daqui a dez, vinte anos, mas agora. Há muitas organizações que fecham os olhos para muita coisa que está acontecendo e usa a desculpa de que isso é política, não deve se misturar com o esporte. Mas direitos humanos não são uma questão de política. Direitos humanos devem ser iguais para todos, e nós vamos a países que precisam discutir essas questões”, discursou.

Hamilton e sua turma na Mercedes: casamento perfeito entre piloto e equipe

Lewis não mencionou nenhum país em particular, mas está na cara que o recado tem alguns endereços bem definidos. A Arábia Saudita, por exemplo, que foi incluída no Mundial do ano que vem, é alvo certo — uma ditadura fundamentalista tolerada pelas nações mais livres do planeta única e exclusivamente por conta de seu papel como fornecedora de petróleo e derivados. A lista de países onde os direitos humanos são uma falácia, quando se olha para o calendário da F-1 para 2021, tem muitos outros párias internacionais. Bahrein, China, Azerbaijão, Hungria, Rússia, Brasil e Abu Dhabi estão longe de atender os princípios básicos que se esperam de sociedades realmente civilizadas.

Hamilton vai continuar na luta. Por poles, vitórias, títulos. Porque tem uma talento extraordinário para pilotar e a vida fez com que, em algum momento, os caminhos dele e da melhor equipe de todos os tempos, a Mercedes, se cruzassem. E do alto da condição de estrela maior de uma categoria vista por bilhões de pessoas em todo o mundo, vai seguir brigando por aquilo em que acredita. A elitista e excludente Fórmula 1, que sempre se colocou acima do bem e do mal, que ao longo de suas sete décadas desprezou olimpicamente mazelas universais como o apartheid na África do Sul ou as ditaduras sanguinárias da América do Sul, passará a ser questionada por seu personagem mais vitorioso.

Preparem-se. Ao lançar sua nova cruzada justo na Turquia de Erdogan, Hamilton mostrou que não está brincando. Que bom.

Largada em Istambul: início de prova cor-de-rosa na ensaboada pista turca

À corrida, agora.

E que corrida!

A meteorologia acertou em parte suas previsões para o gelado domingo de Istambul, 13°C na hora da largada. De fato, na maior parte da tarde turca não choveu. Algumas nesgas de céu azul até se insinuaram entre as nuvens naquele lindo ponto do planeta em que a Europa encontra a Ásia. O problema é que a chuva parou momentos antes da largada, o que deixou o asfalto recém-refeito do circuito totalmente encharcado — e muito, muito escorregadio.

Por isso, com exceção dos carros da Williams, que partiram dos boxes com pneus intermediários, todo mundo que alinhou calçava os pneus para chuva forte — conhecidos candidamente no Brasil como “biscoito”. Na pole, o surpreendente Lance Stroll. Ao lado dele, Max Verstappen, conhecido por sua habilidade em piso molhado. Hamilton era só o sexto no grid.

O canadense da Force Martin partiu muito bem, assim como seu companheiro Sergio Pérez. Max, no entanto, patinou miseravelmente e foi ultrapassado por alguns carros, entre eles os de Hamilton e Vettel, que fez uma largada excepcional saindo como um raio de 12º para quarto nos primeiros metros da corrida.

Vettel: largada impressionante e pódio conquistado na última volta

A primeira volta foi quase caótica, mas ninguém bateu e as únicas vítimas que tiveram algo a lamentar foram Ocon e Bottas, que rodaram logo na primeira curva. Lewis deu uma escorregada um pouco adiante e foi ultrapassado por Vettel e Verstappen. Logo depois veio Albon, deixando o inglês ainda mais para trás. A prova prometia ser das mais animadas.

Com três voltas, Stroll tinha disparado na frente e já colocava mais de 5s de vantagem sobre Pérez e 12s em cima de Vettel, o surpreendente terceiro colocado. Leclerc, lá atrás em 14º, foi o primeiro a perceber que o asfalto começava a secar e parou na sétima volta para colocar pneus intermediários. Começou a registrar tempos cerca de 3s por volta mais rápidos que a turma dos pneus para chuva forte, o que valeu como senha para todo mundo fazer o mesmo. Entre as voltas 9 e 13, pela ordem, foram para os boxes Vettel, Hamilton, Stroll, Pérez, Verstappen e Albon. Com intermediários para todos, na volta 14 Stroll retomava a liderança com 9s3 de vantagem para Pérez, que era seguido por Verstappen, Vettel, Hamilton e Albon nas seis primeiras posições.

Hamilton passa Pérez e assume a liderança: décima vitória na temporada

O curioso desta corrida foi como cada carro passou a render com os novos pneus. Alguns, como os da Ferrari e da Mercedes de Hamilton, passaram a andar melhor. Mesmo dentro da mesma equipe os desempenhos se alteravam. Na Red Bull, Verstappen sofria como um cão e Albon se virava bem. Na Racing India, Stroll acabou com os seus em meia-dúzia de voltas e Pérez se estabilizou adotando uma estratégia inteligente de cuidar de sua borracha para não ter de parar mais.

Lance chegou a ter 10s de vantagem para o mexicano na volta 19, quando de repente sua performance começou a despencar. Hamilton, em quinto, estava mais de meio minuto atrás do líder — aparentemente fora da luta pela vitória, distante até de um eventual pódio. Leclerc resolveu fazer uma segunda troca na volta 31, de novo para intermediários — ninguém arriscou colocar slicks. Vettel fez o mesmo três voltas depois. Lá na frente, porém, o calvário de Stroll atingia seu ápice. Sua diferença para Pérez, na volta 35, caíra para mero 1s2. E Hamilton, em terceiro, vinha na mesma balada.

Os dois, Pérez e Hamilton, foram os pilotos que melhor administraram seus pneus, evitando que eles se esfarelassem escorregando de um lado para o outro e preocupando-se apenas em ficar na pista num ritmo razoável, sem querer andar mais do que o carro. Quem partia para uma segunda troca conseguia fazer três ou quatro voltas muito rápidas, mas depois a performance caía drasticamente. Desesperada com a perda de rendimento de Stroll e a iminente perda da liderança, a equipe rosa resolveu chamar o ponteiro para novo pit stop, na volta 36. Quando ele voltou para a pista, estava em quarto, atrás de Verstappen — que já tinha feito outra parada. Ali sua corrida acabou. Pérez e Hamilton estavam bem à frente, e pelo jeito não pretendiam parar mais.

Stroll na sofrência: depois da segunda troca, desempenho despencou

Lewis passou o mexicano na volta 37, assumindo a liderança de maneira espantosa para quem, pouco antes, amargava mais de meio minuto de desvantagem para o então líder Stroll. O canadense, depois da segunda parada, não conseguiu encontrar um ritmo decente e foi sendo ultrapassado sem dó por uma numerosa tropa: Vettel, Leclerc e Albon jantaram o pole-position todos ao mesmo tempo; pouco depois, Norris também deixaria o carro rosa para trás.

“Não sei o que aconteceu, não entendi nada, foi ridículo. Estou muito frustrado”, choramingou Lance depois da corrida. Charlinho, logo depois, passou por Sebastian e se colocou na briga pelo terceiro lugar no pódio contra Verstappen, que na volta 44 parou pela terceira vez para mais um jogo de pneus. Hamilton, com incrível leitura da prova, tratando seus pneus com desvelo e respeito, já abria mais de 13s para Pérez. Este, por sua vez, tinha como única ameaça um velocíssimo Leclerc, que vinha tirando coisa de 2s por volta do mexicano.

Foi só na última volta, porém, que o monegasco chegou em Pérez, e foi para cima decidido a arrancar um troféu a fórceps daquela epopeia. Passou, mas na curva seguinte errou a freada e tomou o troco. Vettel, que observava a briga de perto, aproveitou e foi junto, para receber a bandeirada em terceiro, seu primeiro pódio desde o GP do México do ano passado.

Pérez se segurou em segundo, coroando com louvor uma atuação inteligente desde o início da prova. Depois dele e Vettel vieram, na zona de pontos, Leclerc (que se autoflagelou dizendo estar com raiva de si mesmo por ter feito o que fez a três curvas do final da corrida), Sainz Jr., Verstappen, Albon, Norris, Stroll e Ricciardo. Hamilton venceu pela décima vez no ano e 94ª na carreira. Bottas, com o outro carro da Mercedes, terminou em 14º depois de rodar seis vezes na corrida — talvez sua pior na F-1.

Vettel cumprimenta Hamilton ainda no carro: o primeiro a dar os parabéns ao campeão

Hamilton chorou muito quando cruzou a linha de chegada. Pelo rádio, mandou mensagem “para todas as crianças que sonham com alguma coisa”, dizendo a elas para “nunca desistirem”, numa clara referência a sua história de vida. Quando estacionou o carro, a primeira pessoa que viu foi Vettel. O alemão se agachou ao lado da Mercedes #44 e cumprimentou aquele que, depois, nas entrevistas, chamou de “o melhor de nossa era”. Foi um momento emocionante.

Pérez estava tão feliz quanto com o segundo lugar, já que segue atrás de um cockpit para o ano que vem. Sua única possibilidade é a Red Bull, uma vez que será substituído na futura Aston Martin, novo nome do time, justamente por Vettel. Para isso, terá de tirar o lugar de Albon, que não tem garantida, ainda, sua permanência no time. “Mais uma volta com esses pneus, acho que eles iriam explodir”, disse o mexicano do alto do nono pódio de sua carreira. Explicou que no fim foi surpreendido por Leclerc porque não enxergava nada pelo retrovisor. “Ficou embaçado a corrida toda, e eu só sabia o que acontecia atrás de mim porque meu engenheiro narrava”, contou.

Pérez, segundo colocado: nono pódio do piloto mexicano na F-1

Hamilton disse que no finalzinho, apesar da sugestão da equipe, descartou a possibilidade de uma nova parada — seus pneus, depois de 49 voltas, estavam praticamente carecas. Na hora ele lembrou do incidente que teve na entrada dos boxes na China em 2007. “Perdi um campeonato ali”, disse. “A entrada de box deve estar muito escorregadia, melhor não”, falou pelo rádio.

Campeão mundial em 2008, 2014, 2015, 2017, 2018, 2019 e 2020, Lewis Carl Davidson Hamilton, 35 anos, ainda não tem contrato para o ano que vem. As conversas com a Mercedes devem acontecer nas próximas semanas e tudo indica que ele continuará correndo, embora tenha deixado no ar alguma dúvida sobre o assunto em entrevistas recentes. O discurso, hoje, foi em outra direção, no sentido de continuar usando a F-1 como palanque para defender as causas pelas quais tem militado intensamente neste ano “diferente”, como definiu. “Com a Covid, o isolamento, não saio de casa, fico dentro da minha bolha, e tenho tido mais tempo para refletir e focar em alguns assuntos que me parecem muito importantes, como o movimento Black Lives Matter”, falou. “Quero muito estar aqui no ano que vem e ajudar a Fórmula 1 e a Mercedes nessa jornada para que a gente possa ser relevante como esporte.”

Graças a Hamilton, pode-se dizer que nunca a F-1 foi tão relevante quanto agora.

As lágrimas no cockpit: muita lenha para queimar ainda, na F-1 e fora dela