Blog do Flavio Gomes
F-1

EU NÃO IRIA

ITACARÉ (passou) – Tenho profundo respeito por tradições e costumes locais ao redor do mundo. Mas há limites. OK, se você quer ir à Arábia Saudita, deve saber que lá as mulheres não podem usar saias curtas, blusas de alça, shortinhos. Beleza. Melhor não ir, mas se tiver de ir — a trabalho, sei lá […]

ITACARÉ (passou) – Tenho profundo respeito por tradições e costumes locais ao redor do mundo. Mas há limites. OK, se você quer ir à Arábia Saudita, deve saber que lá as mulheres não podem usar saias curtas, blusas de alça, shortinhos. Beleza. Melhor não ir, mas se tiver de ir — a trabalho, sei lá –, que as regras sejam seguidas, por mais estapafúrdias que sejam. E o melhor a fazer é ficar o menor tempo possível num país como esse.

Só que a F-1 é visita convidada. Não deveria, de jeito nenhum, se dobrar às imposições medievais desses idiotas que tomam conta do petróleo do mundo e se fingem de puritanos. Qualquer um que conhece a vida real dos homens sauditas sabe que eles pregam uma coisa e se comportam de uma maneira completamente diferente. Basta ir a um cabaré no Bahrein, por exemplo, para encontrá-los na mais pura esbórnia. Os barenitas não são fundamentalistas como os sauditas. Lá se pode beber até cair, alimentar a prostituição abastecida por países do Leste Europeu, esquecer Alá e o Alcorão. E os sauditas são os, digamos, maiores beneficiários dessa liberdade dos vizinhos. É só atravessar os 25 km de pontes e viadutos que ligam a cidade de Khobar ao arquipélago — que também tem seu GP — para cair na gandaia.

Fazer um GP num país tão escroto deveria servir, pelo menos, para chacoalhar a realeza local. Dar recado, mostrar que o mundo é maior e mais livre do que um pedaço de deserto onde homens decidem, por exemplo, o que as mulheres podem fazer. “Olha aqui, nós vamos, mas só se vocês não inventarem nenhuma restrição babaca, pelo menos no nosso galinheiro”. E o que seria uma restrição babaca? Determinar a maneira como as pessoas podem se vestir, por exemplo.

Pois a Arábia Saudita publicou um “código de comportamento” para quem for à corrida. E, imagino, ele se aplica também a quem trabalha na categoria. Assim, as muitas mulheres das equipes e da imprensa não poderão usar saias, vestidos mais curtos, shorts, bermudas, calças rasgadas nos joelhos. Nem maquiagem “excessiva”. Tudo em nome da “decência”. Ou do que os sauditas acham que é decente. Lembrando que eles também acham decente proibir mulheres de votar, dirigir, tomar conta de seus destinos, que acham decente reprimir e prender homossexuais, que acham decente esquartejar jornalistas opositores em suas embaixadas.

Na boa, se um país quer impor aos seus cidadãos o que eles podem vestir, azar dos seus cidadãos. Se eu nascesse num lugar assim, iria embora o mais rápido possível. Ou lutaria com todas minhas forças para derrubar essa e outras estupidezes. Mas entendo que não é tão fácil assim, nem todo mundo pode se mandar do seu país a hora que quiser etc. e tal. No entanto, o mundo civilizado poderia e deveria dizer o que pensa dessas coisas. E a melhor resposta seria boicotar nações assim — economicamente, culturalmente, esportivamente. Mas, ao contrário, ninguém faz porra nenhuma. A grana manda. Uma instituição globalizada como a F-1 também se curvar a isso por dinheiro é, como se diz, de cair o cu da bunda. É de foder.

Estou usando linguajar chulo de propósito. Porque é como gostaria de me dirigir a um sheik desses, se pudesse. “Meu caro, vão se foder você, sua barba, seu petróleo e suas idiotices. Respeitem os seres humanos. Respeitem os direitos humanos! Se quiserem se vestir de branco da cabeça aos pés, ou de sunga verde néon enfiada no rabo, fiquem à vontade. Mas jamais, jamais obriguem outras pessoas, especialmente as mulheres, a serem como vocês.” Ah, eu adoraria dizer isso a um cara desses. E a F-1 poderia dizer algo parecido, talvez em termos mais elegantes.

Mas não vai. Vai dizer que é um prazer correr na Arábia Saudita, oferecer um lindo espetáculo ao povo saudita, respeitando suas tradições e costumes. Por mais ridículos que sejam. E ofensivos a quem defende um mundo mais livre, menos desigual, em que os direitos humanos estejam acima de babaquices inspiradas por um livro religioso.

Espero que Hamilton e Vettel, que se transformaram em figuras de ponta do esporte mundial na militância por causas importantes, essenciais, metam a boca no trombone. Espero que Lewis use saia de patês e botas enormes como as da Pabllo Vittar, passe batom e pinte os olhos. E que Sebastian se vista de arco-íris o tempo todo. Espero que alguém fale alguma coisa. Para valer a pena um GP num lugar como esse.